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Roletenburgo – a heterotopia sagrada

No documento O SAGRADO NO ROMANCE (páginas 84-87)

Assim começa “O jogador”:

Finalmente, regressei, após duas semanas de ausência. Havia três dias já que a nossa gente estava em Roletenburgo. Pensei que me esperassem, sabe Deus com que ansiedade, mas enganei-me. O general tinha um ar muito independente, falou comigo de modo altivo e ordenou-me que fosse ver a sua irmã. Era evidente que haviam conseguido dinheiro em alguma parte. Tive, mesmo, a impressão de que o general se encabulava um pouco na minha presença. Maria Flípovna estava numa azáfama fora do comum e falou comigo ligeiramente; todavia, aceitou o dinheiro, conferiu-o e ouviu todo o meu relatório. Para o jantar, esperavam Miézientzov, o francesinho e ainda um certo inglês: como de costume, mal se consegue dinheiro, dá-se um jantar pomposo, à moda moscovita. Apenas me viu, Polina Aleksândrovna perguntou por que demorara tanto a voltar e, sem aguardar resposta, retirou-se. Naturalmente, agiu assim de propósito. No entanto, tínhamos que nos explicar. Muitos fatos se acumularam nesse ínterim.

Reservaram-me um cômodo pequeno, no quarto andar do hotel. Aqui se sabe que pertenço à comitiva do general. Tudo indica que eles já conseguiram fazer-se conhecer. Todos consideram o general um riquíssimo dignatário russo. Ainda antes do jantar, teve tempo de me dar, além de outros encargos, o de trocar duas notas de mil francos. Troquei-as no escritório do hotel. Agora, vão olhar-nos como milionários, pelo menos uma semana a fio. Quis levar Micha e Nádia a um passeio, mas, quando já me achava na escada, o general mandou chamar-me; queria saber para onde eu os levaria. Decididamente, este homem não me pode encarar; até gostaria de fazê-lo, mas, de cada vez, respondo-lhe com um olhar tão fixo, isto é, desrespeitoso, que ele parece ficar acanhado. Numa alocução extremamente empolada, aglomerando frases uma sobre a outra e, por fim, confundindo-se completamente, deu-me a compreender que eu devia passear com as crianças no parque, o mais longe possível do cassino. Acabou mesmo por irritar-se e acrescentou abruptamente:

– Senão, é capaz de leva-los ao cassino, à mesa da roleta – acrescentou – mas eu sei que o senhor ainda é bastante leviano e, provavelmente, capaz de ir jogar.

(DOSTOIÉVSKI, 2004, p. 9)

Demoramo-nos nestes parágrafos iniciais em virtude da síntese extraordinária que Dostoiévski faz por meio do narrador Aleksiei Ivanovitch. Aí temos implícitas as relações do protagonista com o General que o contrata, com a Polina, a mulher que ama, e mesmo com as crianças, das quais é

outchitel, preceptor, professor. Fica claro, neste introito, todo o ambiente social

e psicológico em que se dará a trama. Além disso, e sobretudo, desde já, evidencia a sua condição de jogador.

Contudo, neste momento, iremos observar atentamente o que se pode depreender do nome dado à cidade imaginária onde se passa o romance: Roletenburgo situa-se em uma região alemã que se consagrou como uma estação de águas, com inúmeros hotéis que, certamente aproveitando o

ambiente turístico, também passaram a ser conhecidos como lugares de grandes cassinos. Essa cidade imaginária fica próxima das reais, citadas na narrativa em mais de uma oportunidade, como Homburgo e Baden-baden, cidades da Alemanha, na região de águas termais.

Boris Schnaiderman, o tradutor de “O jogador”, em seu posfácio afirma que o enredo se passa “inverossimilmente e perversamente (na) chamada Roletenburgo.”, deduzindo a metonímia que se encerra na escolha do nome da cidade. (DOSTOIÉVSKI, 2004, p. 218). O biógrafo Joseph Frank lembra também que, inclusive, a obra, antes de ser “O jogador”, “no começo tinha o título de Roulettenberg” (FRANK, 2013, p. 213).

Parece evidente que o nome, no romance, afirma a região mais como um espaço de jogo, cidade da roleta, do que propriamente um espaço de saúde e bem-estar em que as águas termais se destacam. Roletenburgo, assim, é um espaço flagrantemente criado pelo autor para produzir um efeito literário muito rico através de uma heterotopia, como explica Foucault.

Roletenburgo constitui um espaço imaginário, mas situado em um lugar real, efetivo. É localizável e se oferece no texto de Dostoiévski como uma metonímia da região alemã das águas. Assim como afirma Michel Foucault, que estes lugares são posicionamentos que contrastam com todas as outras posições existentes, também o que simboliza e representa Roletenburgo opõe- se tanto à vida regular na Rússia, origem da família protagonista, quanto à sociedade organizada da própria Alemanha. É, pois, uma heterotopia:

(...) espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias. (FOUCAULT, 2013, p. 418)

O que enunciamos aqui, portanto, é que o espaço do jogo, as casas de jogo e os cassinos constituem uma heterotopia. A função dela, anteriormente explicitada, ou reside no fato de criar um espaço de ilusão que é capaz de evidenciar que o real é mais ilusório ou no fato de criar um espaço perfeito,

ordenado, que se opõe ao mundo desorganizado em que vivemos. Em relação à primeira função, Michel Foucault cita os bordéis como exemplo; para a segunda, as colônias. O jogo extraordinariamente exerce a dupla função da heterotopia: suspende o cotidiano, como estudamos, e instaura a ilusão, de um lado; de outro, considerando a característica essencial do ordenamento próprio, cria um mundo perfeito com regras definidas. E os jogadores são “os indivíduos cujo comportamento desvia em relação à média ou à norma exigida.” (FOUCAULT, 2013, p. 419). Por isso que Foucault afirma que “a heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional.” (FOUCAULT, 2013, p. 421). O jogo é isto: uma atividade temporária, aspecto que igualmente caracteriza a heterotopia.

E, em que momento, a partir desta relação entre o conceito de heterotopia e o início de “O jogador”, o roteiro cumpre o seu objetivo de perceber o sagrado em Dostoiévski? O filósofo francês é categórico na conferência “Outros espaços” quando analisa as oposições reconhecidas, por exemplo, o espaço privado e espaço público, ou espaço de família e espaço social, e conclui: “todos são ainda movidos por uma secreta sacralização.” (FOUCAULT, 2013, p. 416). As heterotopias são contraposicionamentos, como já vimos. Roletenburgo cumpre, rigorosamente, o papel de um espaço que se opõe ao conjunto de posicionamentos alheios ao jogo, cidades de vida regular onde o cotidiano se realiza. O romance passa em Roletenburgo, um espaço imaginário em que, no desenrolar da história, o protagonista buscará no jogo o instrumento para mudar de vida, para superar a condição em que vive. Recorre-se com efeito ao sagrado para influenciar a vida real, como afirma Roger Caillois, “para se garantir a vitória, a prosperidade, todos os efeitos desejáveis do favor divino” (CAILLOIS, 1988, p. 158).

E seguramente Aleksiei Ivânovitch segue no esforço de ser senhor do destino, sempre em um cassino de Roletenburgo, a heterotopia sagrada de “O jogador”.

No documento O SAGRADO NO ROMANCE (páginas 84-87)