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A AGENDA E O CALENDÁRIO: DOMINAÇÃO E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA O recado ao lado chegou às professoras e aos professores da rede estadual de ensino do

No documento IRACEMA, HORIZONTE DE MEMÓRIAS (páginas 54-58)

Ceará em 2017. É uma agenda e, na capa, a imagem de José de Alencar. Ao longo da encadernação, informações sobre a vida do escritor e trechos das obras.

Nada mais significativo que a lembrança venha em formato de agenda, objeto criado justamente para não nos deixar esquecer e planejar o futuro. Agenda e calendário caminham juntos na constante tentativa de controle do tempo. Como diz Le Goff (1994, p. 494), “os que controlam o calendário controlam indiretamente o trabalho, o tempo livre e as festas”.

Em 30 de dezembro de 2011, a ex-prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins, sancionou a lei 9884 em que oficializa “a personagem Iracema, criada pelo romancista José de Alencar, como Ícone Cultural do Município de Fortaleza”. O projeto de lei é do vereador Guilherme Sampaio, que, ao longo de 2015, foi secretário de Cultura do Estado do Ceará. No artigo 4º, lê-se: “fica instituído e incluído no calendário oficial do Município de Fortaleza o Dia de Iracema, a ser celebrado em 1º de maio, data de nascimento do escritor José de Alencar”. Assim, a prefeitura estaria autorizada

[...] a promover e apoiar programação especial de eventos comemorativos relacionados às finalidades da presente Lei, durante o mês de maio, a cada ano, com o objetivo de difundir o Ícone Cultural do Município e suas representações e preservar o patrimônio cultural relacionado à obra e à memória de José de Alencar (FORTALEZA, 2011).

Primeira página da agenda de 2017 destinada a docentes do Ensino Médio no Ceará.

Essas duas pequenas ações – a agenda e a data comemorativa – talvez sejam pouco representativas no sentido de popularizar as imagens de Iracema e Alencar. No entanto, considero-as significativas no esforço permanente do Estado em legitimar Iracema e Alencar como elementos importantes para a memória e a cultura do Ceará.

Pierre Bourdieu, em uma série de conferências/cursos sobre o Estado, destina um pequeno tópico sobre os calendários. E a sua primeira conclusão é que “não se presta tanta atenção ao calendário” (BOURDIEU, 2014, p. 34). Por meio do calendário, o Estado constrói suas comemorações de festas cívicas e determina, de certa forma, o que deve ser lembrado, assim, aos poucos, o Estado vai construindo e controlando uma memória coletiva. Ele alerta: o calendário, “essa espécie de compatibilidade do tempo, que supõe tanto o tempo público como uma relação pública com o tempo, é uma invenção mais ou menos recente, que tem a ver com a construção de estruturas estatais” (p. 37). O calendário é uma forma de o Estado manter a ordem pública.

Para Bourdieu, Estado “é o nome que damos aos princípios ocultos, invisíveis da ordem social, e ao mesmo tempo da dominação tanto física como simbólica assim como da violência física e simbólica” (p. 34). É importante perceber que a teoria de Bourdieu revê a teoria weberiana sobre o Estado e, em vez de “monopólio da violência legítima”, ele propõe

“monopólio da violência simbólica legítima”, “na medida em que o monopólio da violência simbólica é a condição da posse do exercício do monopólio da própria violência física” (p. 30).

Vamos por partes. Em Economia e Sociedade, Weber diferencia os conceitos de poder e dominação. O primeiro seria a “probabilidade de impor a própria vontade numa relação social”

(WEBER, 2000, p. 33), enquanto que o segundo seria a “probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas” (p. 33). Em uma nota de rodapé, Weber explica que o conceito de poder é amorfo, podendo qualquer pessoa exercer em determinado momento. Dominação é mais preciso e está ligado “à presença de alguém mandando eficazmente em outros” (p. 33). Weber acrescenta, no entanto, existir variações de dominação, entre elas, a dominação política que se dá quando uma ordem, dentro de um determinado território geográfico, esteja garantida “de modo contínuo mediante ameaça e aplicação de coação física por parte do quadro administrativo” (p. 33). A dominação política se dá por meio do Estado “quando e na medida em que seu quadro administrativo reivindica com êxito o monopólio legítimo da coação física para realizar as ordens vigentes” (p. 34). Bourdieu (1989, p. 224) apropria-se de Weber e propõe o conceito de poder simbólico, “que se exerce de maneira tão invisível que até nos esquecemos de sua existência e que aqueles que o sofrem são os primeiros a ignorar sua existência já que ele só se exerce por ignorar sua existência”.

Em vez de dominação, Bourdieu recorre ao poder, pois não se trata, necessariamente, de uma ação deliberada. Em um texto mais antigo, Sobre o Poder Simbólico, Bourdieu busca uma síntese entre a tradição neokhantiana, na qual vincula Durkheim, que compreende as formas simbólicas a partir de uma construção histórica, arbitrária e socialmente determinada, na qual “os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação [...] a integração lógica é a condição da integração moral” (BOURDIEU, 1989, p. 10), e a tradição marxista, que entende “as ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo”

(p .10).

O esforço de Bourdieu é mostrar que o poder simbólico exerce uma dominação sem necessariamente passar pela coação física nem pelo controle econômico, embora esteja sob interesse de uma elite política e econômica. Tem-se, assim, um “sistema simbólico” que cumpre a “função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação” e contribui

“para assegurar a dominação de uma classe sobre outra” (p. 11). A esse processo de dominação, Bourdieu chama de violência simbólica. Para compor essa violência, Bourdieu lembra que, nesse contexto, existem os “especialistas da produção simbólica”, responsáveis por difundir

“instrumentos de conhecimento arbitrários” constituintes da “realidade social” (p. 12). A luta simbólica, para Bourdieu, é também uma luta de classe.

O pensamento de Bourdieu compreende a noção de violência não apenas por meio de uma coerção física, mas também por mecanismos imperceptíveis. O Estado, aqui analisado, acompanhado de seus “especialistas da produção simbólica”, ao impor as lembranças das imagens de Alencar e Iracema produz uma política de memória violenta na qual busca a imposição de que o povo cearense é originário de um mito determinante para a sua compreensão no presente.

Voltemos ao texto da lei municipal já citado. Lá, está escrito: “preservar o patrimônio cultural relacionado à obra e à memória de José de Alencar”. Por que se tem tanto medo de esquecer José de Alencar? O esquecimento seria uma distorção do passado? No também já citado livro A memória, a história, o esquecimento, Paul Ricoeur apresenta a noção de memória feliz. Ele ressalta que vivemos num momento de “obsessão do passado”, que se dá na posteridade do acontecimento e, assim, “a memória revela-se como uma organização do esquecimento”. O esquecimento, neste caso, funciona como um processo de “lembrança encobridora”, focada principalmente na “exaltação do acontecimento” (RICOEUR, 2007, p.

457). Acontece que, no processo seletivo, alguns acontecimentos ficam de fora das lembranças

e podem ser “rapidamente recalcados”. “As comemorações ratificam a lembrança incompleta e seu fundo de esquecimento” (p. 458).

Exaltar a imagem de José de Alencar e Iracema pode ter dois entendimentos. Não resta dúvida que Alencar foi um personagem importante na história da literatura brasileira e que, em parte, o seu sucesso se deu por conta da publicação do romance Iracema, dedicado ao Ceará.

Diante de um país continental, em que as políticas culturais e econômicas se concentram no eixo Sudeste há, pelo menos, dois séculos e que, como resultado dessa concentração, a noção de nacional muitas vezes se restringe ao Sudeste, ou melhor, Rio de Janeiro e São Paulo, é compreensível a elite intelectual cearense demonstre orgulho de ter um conterrâneo fixado na escrita da história nacional.

Por outro lado, o jogo da lembrança de Alencar como um gênio ou profeta esquece de olhar criticamente para o que se produziu em Iracema. Renato Jeanine Ribeiro (1998, p. 405) sintetiza:

[...] o sacrifício de Iracema legitima a ocupação da terra pelo invasor. [...] o que Martim Soares Moreno efetua é, possuindo, desvirginando, engravidando e de certa forma levando à morte a moça, possuir, desvirginar, engravidar e conquistar sua outra identidade, o continente da América.

A proposição nos lembra a noção de “memória impedida” apresentada por Ricoeur. O autor, para pensar a memória, recorre ao conceito de trauma de Freud, do qual ele tira algumas lições. Entre elas, a principal é que “o trauma permanece mesmo quando inacessível, indisponível” e “porções inteiras do passado reputadas esquecidas e perdidas podem voltar”

(RICOEUR, 2007, p. 453). Em resumo: “o passado vivenciado é indestrutível” (p. 453). Uma outra lição é que “o trabalho de rememoração não se dá sem o trabalho de luto pelo qual nos desprendemos dos objetos perdidos do amor e do ódio” (453). As políticas de memória de exaltação de Alencar impedem o exercício do luto diante da violência sofrida por Iracema. Na introdução de seu livro Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?, Judith Butler mostra como os conceitos de vida e luto estão relacionados. Em linhas gerais, os corpos que não têm direito ao luto muitas vezes estão em condições tão vulneráveis que não se conhece sua vida: “a condição de ser reconhecido precede o reconhecimento” (BUTLER, 2015, p. 19).

Trata-se de um paradoxo curioso. Não existe luto diante da morte e do sofrimento de Iracema por não haver o reconhecimento pelo Estado de ser uma narrativa sangrenta e cruel. Diante desse esquecimento, o que se percebe é a exaltação de um crime sem permissão para o luto.

No documento IRACEMA, HORIZONTE DE MEMÓRIAS (páginas 54-58)