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O CARNAVAL E O DRAGÃO, UMA TESE E UMA DISSERTAÇÃO

No documento IRACEMA, HORIZONTE DE MEMÓRIAS (páginas 42-46)

Iracema se encontra com o Bode Ioiô1 e se casa com ele. Do cruzamento inusitado das duas personagens, nasce o carnaval. Esse é o enredo do bloco carnavalesco Iracema Bode Beat que, desde 2017, sai nas ruas de Fortaleza, em especial no bairro Praia de Iracema. Na narrativa, a personagem Iracema é uma travesti e o bode um homem. No seu cartaz de divulgação, o bloco informa que conta com a correalização do Governo do Estado do Ceará e do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, local onde há um palco armado para receber o encerramento do cortejo e começar show da Banda Bode Beat. Em entrevista realizada com um dos organizadores do bloco, ele explica: “O Iracema Bode Beat entrou para o calendário de pré-carnaval e carnaval do Dragão do Mar, logo, eles disponibilizaram não só estrutura de som e luz, como também parte dos cachês artísticos”2.

Inaugurado em 1999, nas proximidades da Praia de Iracema, o Centro Dragão do Mar3 é um dos equipamentos culturais mais pomposos de Fortaleza. Foi idealizado por Paulo

1 O Bode Ioiô é uma personagem folclórica de Fortaleza. O bode, no começo do século XX, andava pelas ruas da cidade e frequentava os redutos boêmios. Quando morreu, em 1931, seu dono o empalhou e o doou para o Museu do Ceará, onde até hoje é uma das peças mais visitadas no equipamento cultural.

2 Entrevista realizada com o Tauí Castro, coordenador do bloco, em 03 de abril de 2017.

3 O nome do Centro Cultural homenageia o jangadeiro Francisco José de Nascimento, também conhecido como Chico da Matilde ou Dragão do Mar. Ele entra para a história oficial do Ceará como símbolo da luta contra o tráfico negreiro no Estado. Na dissertação Dragão do Mar: a construção do herói jangadeiro, Patrícia Xavier (2014) mostra como a personagem é construída pela historiografia oficial do Ceará e quais disputas estão em torno de seu nome. O Ceará é um estado que se vangloria por ter sido o primeiro a libertar as pessoas negras escravizadas no Brasil. Daí, criou-se a alcunha Terra da Luz. Segundo Paulo Linhares, o mito Terra da Luz foi construído pela historiografia cearense para se inserir no “mito maior da nacionalidade, que se firmou a partir do triângulo das três raças. [...] Se assim não fosse, sem participar deste mito intacto, o Ceará não estaria integrado ao Brasil”

(LINHARES, 2013a, p. 19). No século XIX, segundo Eurípides Funes (2007), prevalecia a mão de obra livre e havia uma escravidão pouco expressiva. Tornou-se um senso comum dizer que no Ceará não há negros. Essa ideia,

Linhares, quando secretário de cultura do Estado do Ceará. A gestão do centro é realizada pelo Instituto Dragão do Mar, organização social que, desde o final de 2012, é dirigida também por Paulo Linhares. Idealizador vira gestor. Uma de suas primeiras ações no comando do instituto foi inaugurar o Porto Iracema das Artes em agosto de 2013, centro de formação artística, localizado nas proximidades do Dragão do Mar. É também sob sua gestão que nasce o Iracema Bode Beat.

Poderia ser apenas coincidência o nome Iracema se repetir, pelo menos, duas vezes em ações comandadas por Paulo Linhares. Poderia ser apenas coincidência se não pensássemos Iracema como um projeto de elite intelectual e política que insiste em apresentar o romance como a formação do povo cearense. Poderia ser só coincidência, se não pensássemos Iracema como uma “tradição inventada” (HOBSBWAM, 1997).

Em 1992, Paulo Linhares publica o livro Cidade de Água e Sal: por uma antropologia do litoral Nordeste sem cana e sem açúcar, no qual apresenta Fortaleza como um lugar de trocas simbólicas. Na publicação, defende Iracema como o mito fundador de Fortaleza, e, quase num

“determinismo simbólico”, desenvolve uma espécie de tratado sobre a personalidade da capital cearense. “Por que não um mito fundador? Afinal, as cidades com um mínimo de história sempre trataram de buscar suas origens na lenda” (LINHARES, 2013a, p. 15), pergunta na tentativa de inscrever Fortaleza, a exemplo das cidades europeias, como lugar com história.

Logo em seguida, explica a narrativa do mito:

Iracema, com seus cabelos, “mais negros que as asas da graúna”, encontra o conquistador português que vai fecundá-la (terra/mulher). Eis a construção do mito, “por uma sucessão de metáforas naturais, mistura indissolúvel de assunto e descrição”. O assunto é a fundação/destruição de uma civilização. A descrição é a paisagem cearense (p. 15).

Iracema, para Linhares, “serve para reafirmar a utopia que se firma da felicidade natural e infinita que só poderia existir nos trópicos e o determinismo racional, que exalta a superioridade da raça branca” (p. 18). Ao pensar a cidade, ele apresenta Iracema “cristalizada no imaginário cearense” a partir de três lugares específicos: Casa José de Alencar, Theatro José de Alencar e a Estátua de Iracema, a inaugurada por Castelo Branco, em 1965. Esses locais

“significam um sacro original da cidade, que se realiza menos pela repetição do passado do que pela vaticinação de certo presente” (p. 29). Fortaleza, para ele, é um “projeto futuro” (p. 214).

para Funes, marca um equívoco histórico e perverso, pois associa o negro única e exclusivamente à existência de escravidão.

O tom conservador do texto de Paulo Linhares se agrava quando diz que parte dos dilemas contemporâneos do “cearense” repete o mito de Iracema. O principal exemplo disso, para ele, é a migração. Como sabemos, Iracema migra da região do Ipu para Fortaleza.

Ora, parece-me que esta emblemática teodisseia tupi-guarani é um recito (discurso mítico) que possui uma pregnância simbólica (cassirer) que se repete no mito do sertanejo pobre que foge da seca (terra do mal) à procura da terra sem mal (o litoral), um espaço onde se apagam as relações sociais, onde o tempo corre sem marcas e sem cronômetro. [...] O dilema de Iracema, condenada pelo mar a esperar o guerreiro branco amado, se renova. Como o povo de Iracema pode ascender à cultura (branca, europeia), sem se tornar infeliz? Como ser feliz fora do espaço da natureza que aprendemos a amar?

(LINHARES, 2013a, p. 204).

Fortaleza nasce, na análise de Linhares, a partir de um contexto de “uma civilização em fuga” (p. 210) e, daí, vem toda a instabilidade da cidade. O determinismo de origem simbólica dá espaço para o determinismo ambiental:

Fortaleza não é a capital da civilização das águas. É, sim, neste caso, a capital nascida da falta delas (os migrantes rurais) e do seu excesso (as cheias, o litoral). Em termos simbólicos, seria a luta incessante entre o sol, com sua força, seu cortejo de beleza e miséria, pois seu excesso representa a seca (p.

212).

Por fim, Linhares monta um esquema que Fortaleza nasce a partir do encontro da natureza (Iracema) com a cultura (Martim Soares Moreno). Esse encontro é resultado de uma fuga de um povo que sai do sertão (seca/sol) para o mar (cheias/águas). O fato do corpo de Iracema – sempre lembrado como a América – ter sido violentado4 pelo colonizador é, para Linhares, a chave de entendimento para compreender Fortaleza como uma cidade de “intensa disponibilidade para recepção” e mais, por sermos “povos jovens, sem história, [com o mito]

compreendemos nossa existência como disponibilidade permanente e incondicional para o futuro”. Ele conclui quase agradecendo a Martim Soares Moreno e aos demais colonizadores por terem tido coragem e “vontade de romper as amarras que os ligavam ao velho continente.

Moreno esqueceu as tradições e se deitou a conquistar o futuro” (p. 215).

Quase 20 anos depois da escrita da dissertação, Linhares conclui sua tese de doutorado.

Se antes havia uma preocupação com Fortaleza/Iracema, ele parte para José de Alencar com o trabalho O profeta e o chocolate: sociologia do pai fundador do campo literário brasileiro. Ele argumenta que se criou uma “ilusão biográfica” em torno da imagem de Alencar. “Os biógrafos, hipnotizados pela figura mirrada, tímida e doente do escritor, sempre o trataram como um

4 Violentado é termo utilizado por mim. Paulo Linhares utiliza fecundado.

outsider” (LINHARES, 2013b, p. 42). Os biógrafos de Alencar, segundo Linhares, o apresentam “como um teimoso predestinado a ocupar o lugar único de gênio artístico da literatura brasileira, então nascente” (p. 43). A imagem de gênio encobre a vida social de Alencar. Esquecem de apresentá-lo oriundo de “uma família senhorial de grande status e renda, na corte de seu tempo, e isso lhe permitiu todos os empurrões para uma tranquila ascensão social” (LINHARES, 2013b, p. 42). Assim como não explicita que “Alencar vive e sofre uma dupla exclusão, que seria sentida como um rebaixamento da sua vida pública: a expulsão do campo político e a superação estética do romantismo atingindo seu prestígio literário” (p. 223).

Em linhas gerais, Linhares defende que a figura de gênio em torno de Alencar é insuficiente para compreender o trabalho e o esforço de Alencar na formação do “campo literário brasileiro”. “Mesmo com a férrea capacidade de trabalho, a determinação, o talento literário” (p. 30), Alencar não viu nascer o campo. O campo literário brasileiro, para Linhares, só se constituiu no Brasil em 1897, vinte anos após a morte de Alencar, com a fundação da Academia Brasileira de Letras, por Machado de Assis. No entanto, Alencar é fundamental para a formação desse campo, pois ele é responsável por iniciar o “trabalho da construção da crença”

na formação do campo.

Alencar tem a tarefa de criar novo espaço de poder que é o sistema literário brasileiro. A ele cabe o papel de profeta ao produzir uma doutrina para os sacerdotes, um sistema intelectual e racional capaz de ligar os sacerdotes e atrair os leigos. Este papel de oferecer uma visão unitária totalizante, ao sistematizar e ordenar a nova visão da vida, deu a Alencar as condições de, em troca, receber o que Weber chama de congregação, as bases materiais para prosseguir seu trabalho de assentamento (p. 185).

Em vez de gênio, Linhares usa o conceito de “profeta” para explicar a contribuição de Alencar na literatura nacional.

Se a ideia do gênio incompreendido, cheio de interesses desinteressados, realmente encobre a alquimia da vida social, a tentativa de entender Alencar como profeta parece que parte desse esforço de desvendar a própria estruturação do espaço social no qual ele estava situado (p. 224).

A mudança de gênio para profeta, proposta por Paulo Linhares, não muda – talvez até agrave – o caráter mágico e mítico construído em torno da imagem Alencar. Em última instância, se ele não o aceita como gênio, ele reforça a importância de Alencar, tanto que o subtítulo de sua tese é “sociologia do pai fundador do campo literário brasileiro”. O que Linhares faz é mostrar que o campo literário se constitui após a morte de Alencar, mas sob total influência do

profeta. Essa análise, se por um lado delimita historicamente a criação do campo literário brasileiro sem o testemunho do escritor, não tira, no entanto, Alencar do pedestal de mito de origem da literatura brasileira, muito menos de sua plena dominação.

Em última instância, apesar de fazer uma crítica à figura de gênio posta pelos antigos biógrafos, Linhares consolida a consagração de Alencar como vulto literário que não deve ser esquecido. Essa consolidação se dá menos por sua tese em si do que pelo seu papel como gestor cultural. Linhares esquece de mostrar, em sua tese, que, após a morte de Alencar, a elite literária brasileira utilizou diversas ações cívicas – construção de monumentos, edições comemorativas, hino de exaltação etc. – para registrar Alencar na história da literatura brasileira. O esforço se repete até hoje, quando, por exemplo, se batiza uma escola de formação na cidade de Fortaleza de Porto Iracema das Artes ou quando se lança um bloco Iracema Bode Beat, ambos sob sua responsabilidade. Perpetua-se, assim, a dominação de Alencar na história da literatura brasileira.

Ao final de sua tese, Linhares pergunta: “Por conseguinte, temos afinal o direito de perguntar: a igreja fundada por Alencar vingou nestas plagas como ele sonhou?”. E responde:

“Numa medida importante, sim, pois a partir dos românticos e de algumas obras fundadoras, como Iracema, o país se criou como Nação Literária” (LINHARES, 2013b, p. 274). Ele poderia responder de uma forma mais fácil, assumindo: “sim, e eu sou um dos seus devotos”.

Situar Paulo Linhares como um dos membros da congregação de Alencar é apenas uma pequena mostra de como o Estado, suas instituições culturais e seus intelectuais, de forma deliberada, constroem as lembranças de Alencar e Iracema. Em linhas gerais, como mostro no caderno Alencar, Iracema e Alencar são exaltados conjuntamente. Para o Estado, eles são os construtores da pátria brasileira. Alencar é o grande escritor defensor da língua e da literatura nacional. Iracema, a virgem dos lábios de mel, mito de fundação do Ceará, do Brasil e da América. Lembramos, no entanto, não existir memória sem esquecimento.

No documento IRACEMA, HORIZONTE DE MEMÓRIAS (páginas 42-46)