• Nenhum resultado encontrado

A COLONIZAÇÃO COMO UM ESTUPRO

No documento IRACEMA, HORIZONTE DE MEMÓRIAS (páginas 146-153)

A COLONIZAÇÃO COMO UM ESTUPRO

Iracema é a única personagem feminina em todo o romance, e, como dissemos, não temos nenhuma informação sobre sua mãe ou se ela tem alguma irmã. Após a flechada dada em Martim, seguindo a tradição, a tribo dela, os Tabajaras, o acolhe. Araquém, o pai de Iracema, saúda o homem branco: “Bem vieste. O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém. Os Tabajaras4 têm mil guerreiros para defendê-lo, e mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te obedecerão” (ALENCAR, 1964, v. II, p. 1068).

Quem recebe a missão de ir buscar as mulheres para servir ao hóspede é Iracema.

Martim pergunta se ela não poderia ficar com ele, como as outras, mas ela responde:

“Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da Jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o pajé a bebida de Tupã” (ALENCAR, 1964, v. II, p. 1069). A partir desse momento, não temos mais nenhuma referência a outras mulheres no romance. A única amiga de Iracema é a Jandaia, uma periquita. Depois, Martim inicia um diálogo com Iracema: “Virgem formosa do sertão, esta é a última noite que teu hóspede dorme na cabana de Araquém, onde nunca viera para teu bem e seu. Faze que seu sono seja alegre e feliz” (p. 1087).

Ela responde: “Manda; Iracema te obedece. Que pode ela para tua alegria?” (p. 1087). Ele diz:

4 Benedito Prezia (2017, p. 32), no livro História da Resistência Indígena: 500 anos de luta, conta que Tabajara também recebeu a variação Tobajara. “Em Tupi significa ‘inimigo’, nome certamente dado pelos seus vizinhos Tupinambás”.

“A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema5 que são doces e saborosos!” (p. 1088). Ela alerta: “O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém; e ele quer que o sono já feche suas pálpebras, e o sonho o leve à terra de seus irmãos!”. Ele insiste: “O sono é o descanso do guerreiro, e o sonho a alegria d’alma. O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema! Vai, e torna com o vinho de Tupã” (p. 1088).

Iracema pega escondida a bebida, Martim a bebe. A partir daí, constrói-se uma imagem onírica, sem muito saber o que é ação ou delírio do português. Neste limiar, o colonizador

[...] agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo [...]. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.

O gozo era vida [...]; o mal era sonho e ilusão, que da virgem ele não possuía mais que a imagem.

Iracema se afastara opressa e suspirosa.

Abriram-se os braços do guerreiro e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.

[...] Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro (ALENCAR, 1964, v. II, p. 1088).

No dia seguinte, Iracema “em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores” e sentiu que Martim “já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali se espanejava [...] A filha de Araquém escondeu no coração a sua alegria. Ficou tímida e inquieta [...] Afastou-se rápida, e partiu” (p. 1088). O capítulo XV se encerra com a frase: “Tupã já não tinha sua virgem na terra dos Tabajaras”.

Pode ter sido uma noite de amor, mas ninguém sabe ao certo. É tudo muito ambíguo.

Sabemos apenas que ele estava alucinado pelo efeito da bebida e que Iracema perdeu a

5 O culto da Jurema é ainda muito comum no Ceará. A bebida possui variações de acordo com a região. Em Fortaleza, existe a entidade Cabocla Iracema, cultuada em algumas casas de Jurema. De acordo com Arnaldo Burgos, no livro Jurema Sagrada, “é um culto oriundo da pajelança ameríndia que, inicialmente, tinha como objeto de adoração unicamente os ‘espíritos da natureza’, como por exemplo: Tupã, o deus Sol; Yara, a mãe das águas;

bem como, os espíritos de bravos guerreiros”. Entre eles, o autor cita Iracema. “No decorrer de seu culto, outros personagens foram sendo absorvidos pelos mesmos motivos [...] Um bom exemplo é a presença de Malunguinho.

Rebelde afro-americano que, no período da libertação dos negros escravos [...] tornou-se, tal como Elegbarano, no culto Yoruba, o grande protetor das portas de casas onde o culto a jurema se faz presente”. O culto da Jurema absorve “novas facções, de novos ritos dentro de sua própria ritualística inicial. Primeiramente, sofreu grande influência da religião negra, assimilando vocábulos, comidas e inclusive algumas formas de sua ritualística, sendo hoje largamente utilizados vocábulos de origem Yorubá, tais como, ebó (oferenda), epó (óleo de palma), xana (fósforo), ossé (comida em geral)”. O culto ainda possui ligação com a Igreja Católica, “estes mesmos trouxeram para dentro da Jurema, as suas rezas, as suas ‘mandingas’, as suas penitências. Não sendo raro que, esta ou aquela entidade, indique a um consulente que frequente missas e, após estas, o ato de receberem água benta, a entrega de pães aos pedintes, e outras práticas do catolicismo” (BURGOS, 2012, p. 25-27).

virgindade. Pode ter sido um estupro. O dia seguinte é também o dia de Martim partir, Iracema o leva ao encontro de Poti. Após sair da terra dos Tabajaras, Martim quer se despedir de Iracema.

Ela, no entanto, responde: “Iracema não pode mais separar-se do estrangeiro” (ALENCAR, 1964, v. II, p. 1091). Ele questiona que seu pai a espera. Ela insiste “Araquém já não tem filha”

(p. 1091). Martim deixa claro que não quer fazer uma inimizade com Araquém. Ela, então, revela algo que Martim não lembrava: “Iracema te acompanhará, guerreiro branco; porque ela já é tua esposa”6 (p. 1091). Ele estremece e tenta desconversar: “Os maus espíritos da noite turbaram o espírito de Iracema” (p. 1091). Ela deixa mais explícito: “O guerreiro branco sonhava, quando Tupã abandonou sua virgem, porque a filha do Pajé traiu o segredo da Jurema”

(p. 1091). Martim empalideceu, estremeceu os lábios e clama: “Deus!...” (p. 1091). Os tabajaras começam a querer a vingança, Poti alerta que eles têm de fugir. E fogem para os Potiguaras com Iracema.

Na carta de Pero Vaz de Caminha, ele comenta, em momentos diferentes, como os corpos atraiam sua admiração e a de seus colegas de viagem: “bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleireiras que, de muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha” (CAMINHA, 2009, p. 100). Não haver vergonha é algo repetido por Caminha em outro trecho: “suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha”

(p. 105).

Enquanto Caminha reparava nas vergonhas, Américo Vespúcio (1984, p. 59) era mais direto: “e nós assim que vimos tão grandes mulheres, acordamos roubar duas delas que eram jovens de quinze anos para fazer presente delas a este rei, que sem dúvida eram criaturas fora da estatura dos homens comuns”. Em outra carta, ele comenta o hábito dos povos indígenas de, no “maior sinal de amizade”, oferecer ao colonizador “sua filha, ainda que seja moça virgem, que se durmam com ela, e nisto usam todo termo de amizade” (p. 111). Essa prática é denominada por Darcy Ribeiro (1995, p. 81) como cunhadismo, “velho uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade”. Os registros sobre cunhadismo, segundo o antropólogo, são mais ricos na América Espanhola, embora ele defenda que esse processo foi fundamental também para a formação do povo brasileiro. O colonizador não só passava a constituir a família como contava com os novos parentes “a seu serviço, seja para seu conforto pessoal, seja para a produção de mercadorias” ou “mão-de-obra para os trabalhos pesados” (p.

6 Esta frase dita por Iracema foi completamente modificada entre a primeira e a segunda edição do romance. A frase aqui reproduzida é da segunda edição, a, digamos assim, definitiva e mais reproduzida. Na primeira edição, a fala de Iracema era “Tua escrava te acompanhará, guerreiro branco; porque teu sangue dorme em seu seio”.

82). Além do cunhadismo, havia também, segundo Ribeiro, um desejo “obsessivo” do colonizador em “multiplicar-se nos ventres das índias”. A mulher indígena, lembra o antropólogo, era posta em cativeiro e utilizada pelos portugueses como força de trabalho “para plantar e colher suas roças, para caçar e pescar o que comiam” (RIBEIRO, 1995, p. 48).

No artigo Imagens da terra fêmea: a América e suas mulheres, a historiadora Mary Del Priori argumenta que, diante da “obsessão da mestiçagem e da pureza racial”, a questão do estupro constituiu um mecanismo de confronto e distinção social. A historiadora repara que, além da violação física, havia um estupro cultural, ou seja, a violação de “uma cultura pela outra”. “Com o tempo, o estupro da terra americana e de suas mulheres transmutou-se em intercâmbio, em troca, em mestizaje” (DEL PRIORI, 1992, p. 160). De forma mais politizada, Sueli Carneiro, no artigo Gênero, raça e ascensão social, lembra o estupro como um procedimento de colonização no “momento de consolidação da vitória de um grupo de homens sobre outro” (CARNEIRO, 1995, p. 548), por isso, ela chama de “estupro colonial”. A violação não se restringia às mulheres indígenas, atingia também a mulher negra. “A miscigenação daí decorrente criaram as bases para a fundação do mito da cordialidade e democracia racial brasileira” (p. 546).

Segundo Silvia Federici, “na fantasia europeia, América em si era uma mulher nua, sensualmente reclinada em sua rede, que convidava o estrangeiro branco a se aproximar7”. Com as uniões poligâmicas dissolvidas, “nenhuma mulher indígena se encontrava a salvo do estupro ou do rapto”. Ao mesmo tempo, “as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial”, pois elas se negavam a ir à missa, “batizar seus filhos ou qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e com os sacerdotes” (FEDERICI, 2017, p. 402).

Pelo fato de o corpo feminino ser o gerador de vidas, é recorrente a comparação da mulher com a terra que germina a semente e dá o fruto. Ao mesmo tempo, terra não é apenas a terra que dá natureza, mas seu lugar de nascimento, a terra natal. Em Iracema, uma transa amazônica, o diálogo entre o extrativista Tião e seu amigo exemplifica bem essa comparação.

Tião: Mãe só tem uma. Mãe é a mãe da gente. Não tem nada desse negócio de natureza-mãe, não.

Amigo: Mãe não é só aquela mãe que a gente nasce. Nós temos as outras. A maior mãe nossa é a nação.

7 Segundo Darcy Ribeiro (1995, p. 89), até a segunda metade do século XVI, não chegavam ao Brasil mulheres solteiras europeias. Ele justifica essa ausência como o motivo para o acasalamento entre portugueses e mulheres indígenas. Os jesuítas eram contra essa atitude e, para evitar pecados e impedir o aumento da população mameluca, pediram ao reino de Portugal que enviasse meretrizes.

No Brasil, como veremos em breve, Iracema é associada à gênese tanto da nação brasileira como da América. Iracema seria, assim, a nossa grande mãe, natureza e nação. Assim, como explica Ria Lemaire, “a mãe metonímica, concreta, real, passa a ser a mãe simbólica, abstrata de uma nação”. Trata-se de uma “transferência semântica” que “oculta o fato cruel que a civilização do homem branco se baseia tanto na morte da mulher, como na eliminação da raça e da cultura indígenas” (LEMAIRE, 1989, p. 273).

O idealismo indígena produzido por Alencar e outros contemporâneos, perpetuado até hoje, oculta também, de acordo com Lemaire, “um aspecto importantíssimo para a compreensão do mito: essa ‘Gênese’ da nação brasileira é ao mesmo um mito sobre a luta pelo poder entre os sexos”. Iracema reproduz “as estruturas básicas da divisão do poder entre os sexos” (p. 261).

Para a pesquisadora, “era preciso um mito das origens comuns a todos os participantes no processo, um mito que legitimasse a violência imposta aos que resistem à unificação” (p. 271) em prol de uma suposta igualitária miscigenação. A miscigenação narrada de forma

“harmoniosa e igualitária”, em Iracema, oculta “uma política e luta racial e sexual muito desiguais e com fins nitidamente antropofágicos”. E conclui: “essa política racial e sexual [...]

une toda a elite branca do Brasil. Baseia-se no medo que essa elite minoritária” sente diante dos não-brancos (p. 278).

No artigo Iracema ou a fundação do Brasil, Renato Janine Ribeiro argumenta que “o sacrifício8 de Iracema” que “legitima a ocupação da terra pelo invasor [...] parece ter recebido atenção menor que a merecida, até hoje”. Lembrando sempre Iracema como a virgem dos lábios de mel, “a invasão e a conquista da América” é deslocada para uma “história do amor de dois jovens”, enquanto o que Martim Soares Moreno, o colonizador, “efetua é, possuindo, desvirginando, engravidando e de certa forma levando à morte a moça, possuir, desvirginar, engravidar e conquistar sua outra identidade, o continente da América” (RIBEIRO, 1998, p.

405).

8 Em Dialética da Colonização, Alfredo Bosi apresenta o índio de Alencar “em íntima comunhão com o colonizador”. Para ele, tanto Peri, personagem de O Guarani, como Iracema se entregam aos brancos de forma

“incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono da sua pertença à tribo de origem. Uma partida sem retorno”. Bosi conclui que o “complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar” no qual “a pobreza dos fracos só se conquista pelo sacrifício de suas vidas” (BOSI, 1992, p. 177-179). Renato Ortiz (2006, p. 38), no artigo O Guarani: mito de fundação da brasilidade, diz que “mitos tendem a se apresentar como eternos, imutáveis, o que de uma certa forma se adequa ao tipo de sociedade em que são produzidos”. A narrativa mítica acontece em “tempos imemoriais, num passado longínquo” e se renova no tempo contemporâneo. “Isto significa que o mito, ‘para’ a história, situa-se aquém dela, e ao descrever o momento idealizado da odisseia, vivifica a continuidade do presente” (ORTIZ, 1992, p. 80).

Em Iracema, o estupro não é explícito. No entanto, a pena de José de Alencar faz referência à cena de estupro em seu outro romance indianista, O Guarani, de 1857. Na segunda parte, o capítulo IX chama-se O testamento. Nele, Dom Antonio de Mariz, sentindo-se velho, conversa com D. Diogo, seu filho, e Álvaro, seu aliado, sobre a necessidade de um testamento.

Após deixar Cecília, sua filha, destinada a Álvaro, o patriarca faz uma revelação bombástica:

“Tenho uma filha natural: a estima que voto a minha mulher e o receio de fazer essa pobre menina corar de seu nascimento, obrigaram-me a dar-lhe em vida o título de sobrinha”

(ALENCAR, 1964, v. II, p. 131). Diante da reação dos que escutam a confissão, ele continua:

“Sim, Isabel é minha filha”. Depois, pede que a tratem com afeto e carinho e manifesta o desejo de “que ela possa ser feliz, e perdoar-me a indiferença que lhe mostrei e a infelicidade involuntária que causei à sua mãe” (p. 131). Isabel é apresentada no começo do romance como a sobrinha de D. Antônio, que companheiros e amigos dele “suspeitavam ser o fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações” (p. 32)9.

De forma explícita, o estupro também aparece em Os Lusíadas. No décimo canto, entre as estrofes 44 e 49, após a tomada de Malaca, uma base portuguesa nas chamadas Índias Orientais, Afonso Albuquerque condena um “brando companheiro”. Camões, dito o grande poeta da língua portuguesa, toma partido e se volta contra o castigo:

Mas em tempo que fomes e asperezas,

Se o peito, ou de cioso, ou de modesto, Ou de usado a crueza fera e dura, Cos seus uma ira insana não refreia,

Põe, na fama alva, nódoa negra e feia (CAMÕES, 1980, pp. 593-594).

9 No mesmo ano de publicação de O Guarani, fora lançado Simá, romance histórico no alto amazonas, também romance indianista de Lourenço Amazonas. Esquecido na historiografia literária, a personagem Simá é literalmente filha do estupro que o português Régis comete em Delphina, filha de um índio bem-sucedido no alto amazonas. O romance apresenta uma imagem menos idealizada da imagem dos índios. Há ainda poucos estudos sobre este romance.

Depois, Camões cita outros exemplos de personagens que cometeram o mesmo crime e foram perdoados. Embora Os Lusíadas narre as navegações portuguesas para o lado que convencionou chamar de oriente, ele demonstra o sentido da viagem colonial de Portugal e apresenta o estupro como uma prática recorrente. A poeta Luiza Romão, no livro Sangria, de 2017, apresenta a narrativa colonial como um estupro. Logo no primeiro poema, Nome completo, ela fala da dificuldade de se escrever a palavra Brasil. A caneta se recusa a escrevê-la e escrevê-lança a pergunta: “DE ONDE VEM ESSE NOME?”. O poema segue:

PAU-BRASIL cotidiano. Sueli Carneiro (2011), em outro texto, Enegrecer o Feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero, ressalta que o que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão. Como lembra Silvia Cusicanqui (2010, p. 19), em Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores, “en el presente de nuestros países continúa en vigencia una situación de colonialismo interno”.

No capítulo Primeiros Contatos, de A queda do céu, Davi Kopenawa narra um episódio ocorrido, por volta da década de 50, quando seu povo recebeu uma inspetoria de brancos. A citação é longa, porém creio que valha a pena para o debate:

Trouxeram várias espingardas para nos dar de presente. Deram uma, novinha, a meu padrasto, que era o grande homem de nossa casa. Foram tratados por nossos maiores como amigos, e ficaram conosco algum tempo, como convidados. Então, seu chefe, que se chamava Oswaldo, começou a querer

uma de nossas mulheres. Desejava uma das moças da gente de Sina tha, cuja casa era um pouco a jusante da nossa. Eu a chamava de irmã. Ela acabara de ter a primeira menstruação. Oswaldo morava numa pequena cabana que a gente de Sina tha tinha construído para ele nas imediações. Ele começou a oferecer carne de caça e farinha de mandioca aos pais da moça, como nós fazemos para obter uma esposa. A mente dele estava fixada na beleza da menina. Ele queria mesmo copular com ela. Insistia cada vez mais para tê-la.

Meu padrasto teria concordado em cedê-la, temendo a ira dele se recusasse, mas as pessoas mais velhas de Sina tha eram contra. Os pais e avós da jovem não queriam aquilo de jeito nenhum. Sabiam que o branco jamais ficaria na floresta. Tinham receio de que ele a levasse rio abaixo, e que acabasse por abandoná-la na cidade depois de algum tempo. Sabiam que nunca mais iriam revê-la. Além disso, um rapaz de sua casa já a tinha pedido em casamento”

(KOPENAWA; BRUCE, 2015, p. 248).

A narrativa sintetiza como a relação dos povos indígenas com os brancos é vulnerável, se dá mediada pelo medo de um conflito iminente na disputa pelas terras e mulheres. O receio dos avós da jovem yanomami foi exatamente o que ocorreu com Iracema. Depois que ela chegou na terra dos Potiguaras, ela fora abandonada por Martim.

No documento IRACEMA, HORIZONTE DE MEMÓRIAS (páginas 146-153)