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2 Referencial Teórico

2.1 A teoria dos campos sociais

2.1.3 Agentes, disposições e habitus

Para fins dessa pesquisa, agentes e atores sociais são tratados com o mesmo sentido. Contudo, as obras bourdieusianas adotam o termo “agente”.

O campo só existe porque são os agentes que criam o espaço por meio de relações objetivas e por meio das suas disposições. A estrutura das relações objetivas entre os agentes definem o que eles podem e o que eles não podem fazer (BOURDIEU, 2004). “A propriedade se apropria de seu proprietário, encarnando-se sob a forma de uma estrutura geradora de práticas perfeitamente conformes à sua lógica e às suas exigências” (BOURDIEU, 2009B, p. 95).

O entendimento sobre como os atores sociais agem varia segundo correntes objetivistas e subjetivistas. Para os objetivistas, as estruturas seriam responsáveis por limitar as práticas dos atores sociais, o que ocorreria independentemente da vontade dos mesmos. Já para os subjetivistas, os atores participam ativamente da construção da realidade, sem que as estruturas limitem de forma única suas práticas. A Teoria dos Campos Sociais de Bourdieu tem o mérito da superação da dicotomia objetivismo/subjetivismo (CARVALHO; VIEIRA, 2007).

Essa superação pode ser explicada a partir do conceito de habitus. O habitus de um campo advém da própria história do campo. São sistemas de disposições, sistemas que norteiam os atores, que predispõem as práticas dos agentes de forma duradoura (BOURDIEU, 2009b). Bourdieu pretendia explicar com o conceito de habitus como se dava a apreensão do social sob sua forma incorporada, ou seja, “o que o mundo social deixa em cada um de nós na forma de propensões a agir e reagir de certa forma, de preferências e detestações, de modos de perceber, pensar e sentir” (LAHIRE, 2002, p. 45).

Assim, o autor entende o habitus como as disposições que o agente tem para agir em prol da permanência de alguma situação ou em prol da sua mudança. Tais disposições resultam da estrutura objetiva (estrutura estruturada) e da estrutura subjetiva (estrutura estruturante). Conforme ler-se abaixo:

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro” (BOURDIEU, 2009b, p. 87, grifos do autor).

Cada campo exige certas disposições dos agentes. Quando o agente não possui as disposições que o campo no qual está inserido exige, ele estará fadado a ser deslocado do campo ou ele terá que tentar mudar as estruturas do campo para que se adéquem às suas disposições, como explica Bourdieu (2004, p. 28-29):

Os agentes sociais, evidentemente, não são partículas passivamente conduzidas pelas forças do campo [...]. Eles têm disposições adquiridas que chamo de habitus, isto é, maneiras de ser permanentes, duráveis que podem, em particular levá-los a resistir, a opor-se às forças do campo. Aqueles que adquirem, longe do campo em que se inscrevem, as disposições que não são aquelas que esse campo exige, arriscam-se, por exemplo, a estar sempre defasados, deslocados, mal colocados, mal em sua própria pele, na contramão e na hora errada, com todas as consequências que se possa imaginar. Mas, eles podem também lutar com as forças do campo, resistir- lhes e, em vez de submeter suas disposições às estruturas, tentar modificar as estruturas em razão de suas disposições, para conformá-las às suas disposições.

Apesar da palavra habitus não expressar o poder gerador do agente justamente por lembrar o que é habitual, Bourdieu (2009a) desejava evidenciar a capacidade de agir do agente, sua capacidade criadora quando desenvolveu a noção de habitus. Essa capacidade de agir não se dá de forma consciente, mas isso não quer dizer que o agente deixa de ser um operador prático da realidade. O habitus indica uma “espécie de sentido do jogo que não tem necessidade de raciocinar para se orientar e se situar de maneira racional num espaço” (BOURDIEU, 2009a, p. 62).

Assim, o agente não tem consciência das suas ações. Estas inscrevem-se dentro da estrutura objetivada da qual participa, ou seja, as ações do ator situam-se dentro de uma

margem que ao mesmo tempo dá liberdade de agir e apresenta uma liberdade limitada, conforme se pode ver no trecho abaixo:

“[...] o habitus torna possível a produção livre de todos os pensamentos, de todas as percepções e de todas as ações inscritas nos limites inerentes às condições particulares de sua produção, e somente daquelas. Por meio dele, a estrutura da qual é o produto governa a prática, não de acordo com as vias de um determinismo mecânico, mas por meio das pressões e dos limites originariamente atribuído a suas invenções. Capacidade de geração infinita e, no entanto, estritamente limitada, o habitus só é difícil de ser pensado enquanto se permanece confinado às alternativas ordinárias, que ele pretende superar, do determinismo e da liberdade, do condicionamento e da criatividade, da consciência e do inconsciente ou do indivíduo e da sociedade. Porque o habitus é uma capacidade infinita de engendrar em toda

liberdade (controlada) produtos – pensamentos, percepções, expressões,

ações – que sempre têm como limites as condições historicamente e socialmente situadas de sua produção, a liberdade condicionada e condicional que ele garante está tão distante de uma criação de imprevisível novidade quanto de uma simples reprodução mecânica dos condicionamentos iniciais” (BOURDIEU, 2009b, p. 91, grifos meus).

A conservação ou a transformação das relações dentro do campo dependem dessa liberdade controlada, dito de outro modo, depende do que Bourdieu (1996a) chama de espaço de possibilidades.

É certo que a orientação da mudança depende do estado do sistema de possibilidades (por exemplo, estilísticas) que são oferecidas pela história e que determinam o que é possível e impossível de fazer ou de pensar em um dado momento do tempo, em um campo determinado; mas não é menos certo que ela depende também dos interesses (frequentemente ‘desinteressados’, no sentido econômico do termo) que orientam os agentes – em função de sua posição no pólo dominante ou no pólo dominado no campo – em direção a possibilidades mais seguras, mais estabelecidas, ou em direção aos possíveis mais originais entre aqueles que já estão socialmente constituídos, ou até em direção a possibilidades que seja preciso criar do nada (BOURDIEU, 1996a, p. 63, grifo do autor).

O espaço de possíveis é o responsável por permitir uma relativa autonomia dos atores em relação às determinações do ambiente, pois tal espaço implica as possibilidades/ações propostas pelo campo para orientar os atores sociais que participam desse campo, ou seja, “todo um sistema de coordenadas que é preciso ter em mente – o que não quer dizer na consciência – para entrar em jogo” (BOURDIEU, 1996a, p. 53). Quando um grupo de agentes ocupa uma posição similar, eles acabam por compartilhar um sistema de referências comuns, ou seja, compartilham de um espaço de possibilidades similar.

Para Bourdieu (1996a), o bom jogador se antecipa ao que ainda acontecerá no jogo, pois ele tem incorporado as tendências do jogo. Já o mau jogador ou está muito à frente do que irá acontecer ou muito atrasado, de modo que não tem o sentido do jogo. “Ter o sentido do jogo é ter o jogo na pele; é perceber no estado prático o futuro do jogo” (BOURDIEU, 1996a, p. 144). Ainda sobre o habitus, o autor explica:

O habitus preenche uma função que, em uma outra filosofia, confiamos à consciência transcendental: é um corpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que incorporou as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor particular desse mundo, de um campo, e que estrutura tanto a percepção desse mundo como a ação nesse mundo. [...] E quando as estruturas incorporadas e as estruturas objetivas estão de acordo, quando a percepção é construída de acordo com as estruturas do que é percebido, tudo parece evidente, tudo parece dado. É a experiência dóxica pela qual atribuímos ao mundo uma crença mais profunda do que todas as crenças (no sentido comum) já que não se pensa como uma crença (BOURDIEU, 1996a, p. 144).

Desse modo, quando os agentes estão imersos em um campo, eles têm conhecimento das leis que fazem parte daquela realidade e passam a ter o sentido do jogo, sabendo quais são as tendências do campo (BOURDIEU, 2004). A trajetória de cada agente é determinada pela relação entre as forças do campo e a inércia apresentada por cada um (BOURDIEU, 1996b).

Apesar de Bourdieu ter conseguido com a noção de habitus trabalhar a questão do social incorporado no agente, Lahire (2002) entende que tal conceito é abstrato e utilizado inapropriadamente, como ele explica:

Embora atraído por essa vontade de pensar o social como incorporado e, portanto, individualizado, parece-me que, se Pierre Bourdieu abriu vias para resolver problemas, por uma vez, ele permaneceu evocativo e abstrato demais. Ele enfrentara tantas questões e começara a melhor colocar tantos problemas que não podia mais aceitar sozinho todos os desafios científicos que vislumbrava e apontava sutilmente em suas diferentes obras. Habituados à leitura de Pierre Bourdieu, muitos sociólogos acabaram agindo como se soubessem perfeitamente o que vem a ser uma disposição ou um esquema (schème), um sistema de disposições ou uma fórmula geradora das práticas, como se a existência de um processo sociocognitivo tal como o de ‘transferibilidade’ das disposições ou dos esquemas constituintes do habitus fosse um fato empírico claramente estabelecido (LAHIRE, 2002, p. 46).

A posição de cada ator no campo tem a ver com a propriedade dos capitais que ele possui. A seguir, apresenta-se a discussão sobre posições e capitais.