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A TELEOLOGIA DA I DEIA EM SEU S ER O UTRO E EM SEU RETORNO A S

3.1. Hegel intérprete de Aristóteles: física e psicologia

3.1.1. O agir conforme a um fim na Natureza

Segundo as Lições sobre a História da Filosofia, de Hegel, a Física aristotélica seria mais propriamente uma metafísica da natureza, (VGPh-M, p. 299; LHF II, p. 270), pois embora essa filosofia da natureza se debruce sobre o empírico, trata-se mais propriamente do conceito da natureza (Bregriff der Natur) (VGPh-M, p. 299; LHF II, pp. 269-270).

Hegel afirma que a Filosofia da Natureza aristotélica é o “modo mais verdadeiro (die höchst wahrhafte Weise)” (VGPh-GJ, p. 74) de exposição do conceito geral da natureza e nela Aristóteles concebe uma determinação interior da coisa natural, concebendo a natureza como vida. Nessa concepção de natureza Hegelafirma que Aristóteles distingue o conceito de necessidade e o conceito de fim (teleologia). A necessidade na natureza tem um caráter exterior, relacionado a uma causalidade que não lhe é inerente, enquanto que a teleologia pode ser de dois modos, exterior e interior (VGPh-GJ, p. 74).

Hegel desenvolve a reflexão acerca da posição de Aristóteles no que se refere ao conceito de finalidade a partir da afirmação aristotélica de que “o natural é o que conserva a si mesmo” (De an. II, 8, 199a apud VGPh-M, p. 303; LHF II, p. 27325). Hegel considera

haver limitações na concepção de natureza de Empédocles na medida em que este considera o natural apenas de uma causa externa de necessidade na natureza, que poderia ser reconhecida, por exemplo, na chuva; segundo essa perspectiva, a chuva não ocorre para que uma planta cresça, mas a planta não cresce se não houver chuva; nisto há uma relação necessária relativa; no entanto, segundo Hegel, isso não quer dizer que esse princípio prevalece, pois as partes de um corpo, por exemplo não são obras do acaso (VGPh-M, p. 304; LHF II, p. 274). Assim, para Hegel, o que ocorre na natureza não se limita ao necessário, mas também ocorre conforme a uma finalidade, como no organismo, na espécie e na vida (VGPh-GJ, p. 75). Nas palavras de Hegel: “Quem supõe a formação fortuita, anula a natureza e o natural. O natural é o que um princípio tem em si, é ativo e por si age conforme o seu fim (Zweck) ou o princípio (Prinzip) alcançado” (VGPh-GJ, p. 76).

25A passagem citada por Hegel na tradução de Angioni é a seguinte: “Portanto, o em vista de algo está

Nesse sentido, Hegel considera haver limitações na perspectiva de causalidade relativa de Empédocles e exalta a Filosofia da Natureza de Aristóteles no que concerne ao princípio de vivacidade compreendida como enteléquia: “Mas a natureza, como enteléquia, aquilo que se produz a si mesmo” (VGPh-M, p. 304; LHF II, p. 274). O que Hegel exalta em Aristóteles é o conceito de finalidade na natureza, pois as partes de um corpo estão ali para a efetivação de um propósito na interioridade de sua singularidade, que se relaciona com o externo, que, por sua vez, se relaciona com o outro como a ele mesmo para o propósito da conservação da espécie. Eis o que Hegel interpreta como o profundo e verdadeiro conceito vivo na natureza (VGPh-M, p. 306; LHF II, pp. 275-276). Desse modo, Hegel tem Aristóteles em alta conta por não limitar o conhecimento da natureza a causas fortuitas, mas ao “em vista de algo”. E na Enciclopédia Hegel compreende ainda no âmbito do natural um agir conforme a um fim em seu conceito de vida.

Portanto, o que Hegel destaca na Filosofia da Natureza aristotélica é a determinação da teleologia interna, o conceito de vida. O Adendo ao § 337 da Enciclopédia explicita com clareza o conceito hegeliano de vida, enquanto culminância dos desdobramentos da matéria. A vida, no sentido especulativo hegeliano, tem seu fim em si mesma e sua ação se desdobra na efetivação dessa finalidade. Esse agir, para Hegel, é o idealismo absoluto que reafirma o que já se expressara na Fenomenologia do Espírito. Nas palavras de Hegel: “[...] O agir continuado da vida é assim idealismo absoluto” (Enc. II, § 337, Z, p. 353; Enz. II, § 337, p. 338). Hegel explica que a vida é distinta do inorgânico, porque sempre suprassume o externo, já que está sempre na relação com o outro, mas enquanto vivo, suporta o processo químico, mas na morte é o químico que pode se fazer valer. Enquanto vivo sempre toma o externo para si, e, por isso, a vida, segundo Hegel é especulativa.

De acordo com Hegel, a vida é unidade de conceito e da realidade (Einheit des

Begriffs und der Realität) na autoconservação de si (Enc. II, § 337, Z, p. 353; Enz. II, § 337, Z, p. 339). Essa realidade considerada em si mesma é a imediatez da existência da multiplicidade de propriedades materiais independentes em si que se dirigem ao externo como processo químico. Por outro lado, o conceito abstrato do organismo tem essas particularidades como momentos passageiros de um sujeito que são subsumidos ao conceito. E a individualidade do quimismo pode ser submetida a uma potência estranha, ao contrário da vida, que tem sua totalidade em si mesma, já que no quimismo a relação é de exterioridade e de dependência em relação ao outro, enquanto a vida tem a finalidade em si mesma, na unidade de sua totalidade e, embora se relacione com o externo, o suprassume, enquanto não morre, na medida em que é especulativa e toma para si a exterioridade (Enc.

II, § 337, Z., p. 353; Enz. II, § 337, Z., p. 338). A vida é meio, mas ao contrário do processo químico, não é meio para um outro, mas sim para si mesma, sendo o seu conceito a sua finalidade. Portanto, na vida há a teleologia interna, que torna efetiva a suprassunção do mecanismo e do quimismo, na unidade do conceito e da realidade (Enc. II, § 337, Z, pp. 353-354; Enz. II, § 337, Z, pp. 339-340).

Portanto, no conceito de vida orgânica, Hegel reconhece a efetividade do agir conforme a um fim próprio da Ideia, que na natureza é imediatez. Nas palavras de Hegel: “[...] A vida é onde o interior, causa e efeito, fim e meio, subjetividade e objetividade etc., [tudo isso] é uma e mesma coisa”, por isso a si retorna, pois é Ideia em sua imediatez. (Enc. II, § 337, Z, p. 353; Enz. II, § 337, Z, p. 339).

Segundo Hegel (Enc. II, § 251, p. 38; Enz. II, § 251, p. 36), a natureza não tem sua verdade em si mesma, e o conceito em sua interioridade só se manifesta na singularidade da vida (Enc. II, § 249, p. 33; Enz. II, § 249, p. 31). A verdade da natureza está no Espírito, por isso a ele se dirige como seu alvo:

A natureza é assim um todo vivo; o movimento ao longo da marcha dos seus degraus é antes isto: que a ideia se ponha como aquilo que ela em si é, ou, o que é o mesmo, que ela de sua imediatez e exterioridade, que é a morte, vá para dentro de si, para ser primeiro como vivente; mas a seguir suprassuma também esta determinidade na qual ela é somente vida e se transporte à existência do espírito, o qual é a verdade, o alvo final da natureza e a verdadeira efetividade [realidade] da ideia. (Enc. II, § 251, p. 38; Enz. II, § 249, p. 36).

Essa dependência da natureza em relação ao Espírito demonstra a atividade do pensar na interioridade da natureza, mas limitada por ela. O que significa que embora a razão não esteja cindida dela, pela própria característica da liberdade da Ideia, que em sua interioridade se pôs em seu ser-Outro, enquanto conceito no sensível e por ser conceito, não se limita ao sensível.

O orgânico já é em si o que ele é efetivamente; ele é o movimento de seu vir-a-ser [devir]. Mas o que é resultado é também o precedente – o início é o mesmo que o fim; isto que até agora era só conhecimento nosso agora entrou para a existência. Visto que a vida, como ideia, é o movimento de si mesma, pela qual por agora se faz sujeito, então a vida faz de si mesma seu outro, o contra-arremesso de si própria; ela se dá a forma de ser como objeto, para voltar e ter voltado a si. Assim, só no terceiro

[reino]26 a vida como tal está presente, pois a principal determinação dela é a subjetividade; [...] (Enz. II, § 337, Z., p. 340; Enc. II, p. 354 Enz. II, § 337, Z., p. 340).

Sob o ponto de vista hegeliano, a vida tem a atividade da subjetividade, atividade em que a finalidade é ela mesma e é efetivada por ela mesma, enquanto Subjetividade Pura. Aliás, Hegel lamenta que essa concepção de teleologia interna aristotélica – que culmina no princípio da vivacidade (Lebendigkeit) imanente, de atividade – tenha se perdido na modernidade, com a prevalência do mecanismo, da causa exterior eficiente e do quimismo (VGPh-GJ, p. 76):

Em todas essas expressões de Aristóteles estavam contidas o conceito de vida, e este conceito aristotélico de natureza, da vivacidade é posteriormente perdido, ausentando-se na consideração das coisas orgânicas, onde se põe o impulso e a colisão [ou] se supõem condições químicas ou condições externas como causas. (VGPh-GJ, p. 76).

Segundo Hegel, foi Kant o filósofo responsável por trazer de volta à modernidade o princípio da teleologia interna, pelo menos ao que é vivo: da vida que tem seu propósito em si mesma (VGPh-GJ, p. 76). Porém, para Hegel, o filósofo de Königsberg o fez de modo insatisfatório, pois a teleologia interna imanente à vida foi um conceito aristotélico retomado por Kant na forma subjetiva e limitado a uma analogia, a um “como se”, que a razão utiliza para compreender a natureza, especialmente a vida orgânica. A razão, para compreender a natureza, considera que os organismos vivem como se houvesse uma finalidade imanente.

[Hegel] frequentemente louva Kant pela revitalização da noção de organismo; porém, como sabemos [...], quando o faz, Hegel sempre apressa-se por acrescentar que a noção kantiana é limitada por não ser a cognição da coisa em si mesma, mas um julgamento reflexivo, enquanto Aristóteles já tinha determinado a natureza mais filosoficamente como finalidade interna. (FERRARIN, 2001, p. 213).

Hegel, diferentemente de Kant, não apresenta a teleologia interna apenas como um recurso da razão, mas como a finalidade imanente do conceito de vida em seu sistema como um todo, pelo qual a Ideia, pela teleologia interna, se torna efetiva na vida lógica; no

26 Hegel considera a vida e a relaciona aos reinos mineral, vegetal e animal. Na passagem, Hegel se refere

ser-Outro de si da Ideia, na efetividade da vida na natureza, na finalidade da vida orgânica; e na Filosofia do Espírito na efetividade da Ideia em seu retorno a si.

Desse modo, segundo a perspectiva hegeliana, a filosofia kantiana teria se limitado a conceber o princípio da teleologia interna na vida como se essa finalidade da vida se devesse ao mero entendimento subjetivo, e não na efetividade racional da Ideia em seu todo sistemático (VGPh-GJ, pp. 74-76).

O fim é o Lógos, o verdadeiro fundamento, e este Lógos é o movimento/movente (das Bewegende). Ambos são princípios, mas o ό ος é o princípio mais alto, o que de fato tem necessariamente necessidade, mas guarda seu poder (Gewalt), não permitindo deixar fora de si, mas ele mesmo governa. O fim, a atividade livre, pode ser apresentado (dargestellt) como um círculo que a si retorna. A necessidade externa é como uma linha, como se fosse à frente e se estende para trás, porque a relação é meramente irracional (Unvernünftiges), apenas externa, sem determinar-se a si mesma. O fim presta-se a isso, conduzindo ao retorno, muda a necessidade, assimila-se e a si recebe, tal como um círculo que a si retorna. Esses dois princípios em um são o principal e a dificuldade. Este é o principal conceito do natural. (VGPh-GJ, p. 78).

Portanto, ao conceber o fim como o Lógos, como a Ideia em si e por si mesma que a si retorna em seu movimento, Hegel chega a uma concepção na qual a Ideia se manifesta na natureza enquanto princípio da vida. E nas Lições sobre a História da Filosofia, é o caráter teleológico interno da natureza que Hegel exalta em Aristóteles. O que há de mais alto e verdadeiro para Hegel na Filosofia da Natureza é o que Aristóteles exprime em sua

Física. Contudo, o mais importante é que, no sistema hegeliano, o conceito se torna efetivo pelo agir conforme a um fim interno, regido pela Ideia que parte de sua interioridade lógica, se põe em seu Outro e retorna a si na Filosofia do Espírito e, por conseguinte, na filosofia da história.