• Nenhum resultado encontrado

Agir, pensar e representar com o corpo no processo de trabalho

3.3 AÇÃO E PERCEPÇÃO NO PROCESSO DE TRABALHO

3.3.3 Agir, pensar e representar com o corpo no processo de trabalho

Um objeto ou fato corriqueiro colocado diante do operador não é reconhecido pela visão e depois representado. Muitas vezes, não é reconhecido pela visão de um operador aquilo que é visto frequentemente mas, por outro lado, ele reconhece de uma só vez o objeto. A “representação visual deste objeto, no seu corpo, é invisível” (MERLEAU- PONTY, 1976).

A ligação entre segmentos objetivos do corpo, e a ligação entre a experiência visual e a experiência tátil não ocorrem gradativamente ou por uma acumulação de dados, fatos e regras numa localização específica do substrato fisiológico. Os dados táteis não são traduzidos e representados em dados e linguagens visuais e vice-versa. Na realidade, essa conversão de linguagens sensoriais ocorre de uma só vez, num instante, no campo, no corpo fenomenal. Na verdade, elas são o próprio corpo. O corpo constitui uma forma de unidade que não se subordina a uma lei única ou, nas palavras do autor:

“O que reúne as sensações táteis de minha mão e as liga às percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções dos outros segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão, que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu corpo. Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de arte” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 208).

Logo, não há como separar um hábito perceptivo de um hábito motor e negar que é pelo corpo que se faz a significação. É preciso olhar para ver – o ato intencional, a atitude ativa do corpo conduz à percepção:

“O olhar obtém mais ou menos das coisas conforme o modo como ele as interroga, desliza ou se apóia nelas. (...) Sistema de potências motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é objeto para um “eu penso”: ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio. Por vezes forma-se um novo nó de significações: nossos movimentos antigos integram-se a uma nova entidade motora; os dados iniciais da visão a uma nova entidade sensorial; subitamente, nossos poderes naturais vão ao encontro de uma

cujo advento reorganiza subitamente nosso equilíbrio e preenche nossa expectativa cega” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 212).

Disso resulta que um sujeito incorporado pode alternar sua visão conforme alterne as diferentes posições tomadas para olhar. É graças à mobilidade do corpo que se pode apreender uma dada aparência no mundo objetivo. Em parte, trata-se de um abandono do pensamento simbólico pela aproximação do ser espacial e singular que compreende, em conjunto, os predicados do mundo. Ou seja, no espaço objetivo, sem que haja um sujeito psicofísico nele encarnado, não existe “nenhuma direção, nenhum dentro, nenhum fora” (MERLEAU-PONTY, op cit.).

É pela experiência perceptiva que o sujeito adentra na constituição ontológica do mundo. Em outras palavras, objeto (coisa) e mundo não estão numa geometria natural, mas em uma “conexão viva” análoga à que existe entre as partes do corpo. A própria percepção exterior caminha conjuntamente com a percepção do corpo como partes integradoras de um mesmo ato. Uma certa consciência do próprio corpo advém de uma certa modalidade de experiência externa. No caso do campo visual, por exemplo, existe uma equivalência com a consciência do corpo como “potência deste campo”, que se situa numa capacidade de redistribuir as funções sensoriais no corpo. Não há percepção exterior que não esteja correlacionada a uma certa percepção do corpo e, reciprocamente, as percepções do corpo se manifestam numa “linguagem da percepção exterior” (MERLEAU-PONTY, op cit.).

O sujeito capaz de agir eficazmente frente aos eventos é um sujeito perceptivo dotado de um corpo e de esquemas de ação incorporados, arraigados na motricidade corporal:

“A teoria do esquema corporal é implicitamente uma teoria da percepção. Nós reaprendemos a sentir nosso corpo; reencontramos, sob o saber objetivo e distante do corpo, este outro saber que temos dele porque ele está sempre conosco e porque nós somos corpo. Da mesma maneira, será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo. Mas, retomando assim o contato com o corpo e com o mundo, é também a nós mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo é um “eu natural” e como que o sujeito da percepção” (MERLEAU- PONTY, 2006, p. 278).

O saber necessário à produção contemporânea acomoda-se no campo desenhado pela percepção. É pelo fato de possuir um campo perceptivo, sempre presente e atuante na

ação, que o operador interage com os estímulos do mundo físico. É uma superfície de contato arraigada no mundo pela percepção que confere sentido aos objetos do processo de trabalho.

A análise bem próxima dos fenômenos da sensação e da percepção na atividade demonstra a existência de uma conexão viva do corpo com o mundo do trabalho. Cada uma das qualidades percebidas no processo de trabalho se insere em uma certa conduta. Uma qualidade visível suscita uma certa modificação no corpo fenomenal, ou seja, são percebidas porque “atingem uma certa montagem geral pela qual adapta-se ao mundo”, conforme Merleau-Ponty (op cit.). Um convite a uma nova maneira de avaliar o mundo circundante, pela motricidade que anexa os padrões de percepção do ser em seu mundo do trabalho. A qualidade sensível depende de uma certa maneira de olhar. Uma qualidade, antes de ser percebida, passa pela experiência de uma certa atitude do corpo, a ela associada e que a determina. A qualidade depende de um certo comportamento antes de estar unicamente amarrada a um fenômeno do mundo objetivo regido por leis físicas. “O sujeito da sensação não é nem um pensador que nota uma qualidade, nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela; é uma potência que co-nasce em um certo meio de existência ou se sincroniza com ele” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 285).

O mundo sensível do trabalho abriga uma “significação motora e vital” e depende de uma certa maneira de “ser-no-mundo-do-trabalho”, de uma forma de se posicionar frente às situações da produção. Como afirma Merleau-Ponty (op cit.), a sensação é, literalmente, uma comunhão. O objeto apenas se torna visível por meio de experiências possíveis, e somente existe para um sujeito que atravessa uma experiência em seu campo.

Há um saber latente alojado no corpo, o qual possibilita o acesso às qualidades sensíveis no mundo. Trata-se de um processo intencional, visto que é “no sensível que ocorre a sintonia com um certo ritmo de existência” (MERLEAU-PONTY, op cit). O sujeito é que faz, intencionalmente, a sintonia, ao ressoar em uníssono com o modo de ser da qualidade sentida. O que se vê depende da forma de olhar e o que se sente depende da forma de tocar.

No processo de trabalho, repleto de sensações primordiais para a condução da produção na normalidade, o operador apreende, afora a sua vida pessoal e seus atos próprios, uma vida de consciência na qual emergem sentidos e significados como que se os olhos, as mãos ou os ouvidos tivessem vidas próprias e consciências próprias, como se fossem tantos “eus” naturais. Toda sensação experimentada no trabalho remete não a um ser próprio e particular, mas sim àqueloutro situado no mundo do trabalho e harmonizado com seus aspectos.

“Entre minha sensação e mim há sempre a espessura de um “saber originário” que impede minha experiência de ser clara para si mesma. Experimento a sensação como modalidade de uma existência geral, já consagrada a um mundo físico, e que viceja por mim sem que eu seja seu autor” (MERLEAU- PONTY, 2006, p. 291).

Ou seja, não é possível aprofundar-se por completo no objeto, e não há uma antecipação ou apreensão sensorial que o contemple por inteiro. Um operador não abstrai inteiramente a operação de trabalho, e esta permanece como um background no qual ele adentra por meio de “habilidades específicas” recortadas pela especificidade da situação. Uma familiaridade que permeia “partes do ser” atuante na atividade de trabalho.

“Toda sensação pertence a um certo campo. Dizer que tenho um campo visual é dizer que, por posição, tenho acesso e abertura a um sistema de seres, os seres visuais, e que eles estão à disposição de meu olhar em virtude de uma espécie de contrato primordial e por um dom da natureza, sem nenhum esforço de minha parte; é dizer, portanto, que a visão é pré-pessoal; e é dizer, ao mesmo tempo, que ela é sempre limitada, que existe sempre em torno de minha visão atual um horizonte de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis. A visão é um pensamento sujeito a um certo campo e é isso que chamamos de um sentido” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 292).

Um sentido é, portanto, a consciência operando, ou seja, atuando no mundo: a consciência em exercício numa dada situação. Toda experiência na situação de trabalho é experiência de um mundo, e a experiência sensorial na atividade é uma superfície de contato com o ser, uma estrutura de consciência. Por isso, Ponty (op cit) afirma que cada sentido constitui um pequeno mundo necessário ao todo. Em outras palavras, os “dados dos diferentes sentidos dependem de tantos mundos separados, cada um deles, em sua essência particular, sendo uma maneira de modular a coisa, e todos eles se comunicam através de seu núcleo significativo”.

Reforça-se, novamente, o papel do corpo, em sua intencionalidade, como síntese da fenomenologia perceptiva na produção. Tal síntese não é resultante de representações de um “sujeito epistemológico”, e sim do corpo, ao abandonar sua dispersão e se orientar para os movimentos demandados pela atividade. A percepção está, então, no campo, no “corpo fenomenal” e, conforme sintetiza brilhantemente Ponty:

“Nós só retiramos a síntese do corpo objetivo para atribuí-la ao corpo fenomenal, quer dizer, ao corpo enquanto ele projeta em torno de si um certo “meio”, enquanto suas “partes” se conhecem dinamicamente umas às outras, e seus receptores se dispõem de maneira a tornar possível, por sua sinergia, a percepção do objeto. Ao dizer que essa intencionalidade não é um pensamento, queremos dizer que ela não se efetua na transparência de uma consciência, e que ela toma por adquirido todo o saber latente que meu corpo tem de si mesmo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 312).

Aparentemente, a síntese faz-se no objeto ou no mundo, embora de fato ela se efetue no sujeito atuante na atividade de trabalho. O movimento (não o objetivo, mas o “virtual”) é o que funda a unidade dos sentidos no trabalho. “Os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de um intérprete; compreendem-se uns aos outros sem precisar passar pela idéia”, conforme Merleau-Ponty (op cit.). É no esquema corporal que ocorre a unidade dos sentidos e a do objeto. O corpo funciona, no trabalho, como a “textura comum de todos os objetos” e, no mundo percebido, no seu “toque”, que ocorre a significação, a compreensão das particularidades de cada situação. É ele que confere sentido aos objetos naturais e até mesmo aos objetos culturais como a linguagem e as palavras. A palavra frio depende, em sua significação plena, em sua aquisição de sentido no mundo, de uma experiência incorporada.

Vejamos então a perspectiva teórica anteriormente apresentada aplicada na presente tese...