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3.2 EMBODIMENT E INSTRUMENTALIZAÇÃO DA ATIVIDADE DE

3.2.1 Sobre a Atividade Instrumental no Trabalho

Quando se fala em “atividade instrumental”, referindo-se ao comportamento humano, em psicologia, faz-se referência a dispositivos artificiais voltados ao domínio dos próprios processos psíquicos (VYGOTSKY, 1996).

Portanto, não são ferramentas, instrumentos ou técnicas conforme as idéias do senso comum, mas sim ferramentas, instrumentos e técnicas psicológicos (interiores). Entretanto, conforme será discutido, entre estes e aqueles do senso comum (ferramentas de trabalho, técnicas de trabalho, etc.) há uma estreita relação, visto que os instrumentos psicológicos são oriundos do universo social no qual o indivíduo se insere ao longo de sua história (VYGOTSKY, 1996), utilizando os meios necessários para suprir necessidades, agir sobre a natureza e trabalhar.

A atividade instrumental é algo artificial, ou seja, o homem não nasceu com ela. Foram desenvolvidas por meio de uma história de intercâmbio social e, portanto, são dispositivos tanto sociais quanto artificiais (VYGOTSKY, 1996). Não são orgânicos ou essencialmente individuais, conforme atesta esta abordagem instrumental em psicologia.

Tais instrumentos destinam-se ao domínio dos próprios processos psicológicos, em analogia com a técnica que se volta para o domínio dos processos da natureza. A linguagem, o uso de numerações, de dispositivos mnemotécnicos, de símbolos, diagramas, mapas, etc., são exemplos de instrumentos no sentido de uma atividade instrumental em psicologia (VYGOTSKY, op cit).

Quando se insere no comportamento, as funções psíquicas são modificadas pelo instrumento. A atividade instrumental possui, assim, a propriedade de desenvolver-se

com o próprio uso dos instrumentos, avançando por sobre o real do trabalho de novas formas e com novas possibilidades de ação (CLOT, 1999).

Assim, um comportamento instrumental (adquirido) difere de um comportamento natural (inato). O comportamento instrumental, seus usos em atividade, evoluíram historicamente, num cenário social de atividade sobre os objetos de trabalho e sobre o mundo físico. A atenção involuntária, por exemplo, é um comportamento natural, enquanto a atenção voluntária é um instrumento artificial, historicamente desenvolvida em atividade pelas necessidades por ela postas (VYGOTSKY, 1996).

Vygotsky (op cit) afirma que esses atos instrumentais não devem ser tidos como algo sobrenatural, visto que eles nada mais são que os próprios atos naturais re- configurados por uma trajetória histórica e social. Logo, no pensamento do próprio Vygotsky (op cit), existe uma abertura para a compreensão biológica e individual de potencialidades que foram interiorizadas, pelo indivíduo, ao longo de sua história no meio social. Ou seja, os instrumentos, de algum modo, estão num corpo e numa mente individuais, operam neles e partem (emergem) deles para a ação no mundo, e estes fatos não podem descartar uma análise biológica, individual e, sobretudo, ontológica da atuação do indivíduo sobre o seu mundo.

Ou seja, conforme palavras do próprio Vygotsky,

“Os atos artificiais (instrumentais) não devem ser considerados como sobrenaturais ou supranaturais, criados segundo determinadas leis novas, especiais. Os atos artificiais são precisamente os mesmos atos naturais, que podem ser decompostos até o fim e reduzidos a estes últimos, da mesma maneira que qualquer máquina (ou instrumento técnico) pode ser decomposta em um sistema de forças e processos naturais” (VYGOTSKY, 1996, p. 94).

Portanto, não há incompatibilidade entre o pensamento de Vygotsky sobre a atividade instrumental e a abordagem da ação que focalize um indivíduo, biológico, dotado de um sistema nervoso autônomo, encarnado (atuante) num dado contexto que faz emergir propriedades ou potencialidades necessárias à atividade de trabalho.

O “artificial” é resultante de uma construção, valendo-se, em essência, do próprio uso de processos naturais. Não há dualismo entre o natural e o artificial em Vygotsky, visto

que este último é uma montagem ou construção cujas peças são os elementos naturais daquele (dados num indivíduo biológico, corporificado e encarnado num mundo de ação). A contribuição de Vygotsky foi postular que esta construção, artificial, é função da trajetória histórica do indivíduo no interior de um tecido social que o abarca e o confere um suporte de instrumentos superiores: o indivíduo, carnal, biológico, é instrumentalizado, artificialmente, pelo meio social.

Na atividade instrumental, o estímulo pode, antes de ser uma causa, desempenhar a função de objeto para o qual se volta o “instrumento” ou o “ato instrumental”, já interiorizado e corporificado para uso nestes casos. Por exemplo, o uso de um dispositivo para lembrar de verificar uma máquina.

“Dentro da relação geral estímulo-reação (excitante-reflexo), formulada pelos métodos científico-naturais em psicologia, o método instrumental distingue dois tipos de relação entre o comportamento e o fenômeno externo: este último, o estímulo, pode, em certos casos, desempenhar o papel de objeto para o qual se dirige o ato de comportamento para resolver alguma das tarefas a que o indivíduo se propõe (...); em outros casos, pode desempenhar o papel de meio com a ajuda do qual dirigimos e executamos as operações psíquicas necessárias para resolver essas tarefas” (VYGOTSKY, 1996, p. 96).

Um estímulo se converte, portanto, em objeto ou ferramenta psicológica de uma atividade instrumental.

O instrumento psicológico pode ser entendido como um componente intermediário entre o objeto e a operação psicológica, no ato instrumental. Este se converte no centro funcional do próprio ato instrumental. Atos de comportamento podem, assim, converterem-se em operações intelectuais (VYGOTSKY, op cit).

Com a introdução do instrumento, surgem funções novas no comportamento, atreladas ao uso do instrumento. Estas vêm substituir certas funções naturais, que são abarcadas pelo funcionamento psicológico do instrumento (VYGOTSKY, op cit). Mas são justamente estas “funções naturais” que permanecem como recursos potenciais, atrelados ao organismo biológico, sobretudo ao corpo e ao substrato físico do sistema nervoso como um todo, que são rearticuladas dentro de um novo esquema (inclusive em esquemas corporais e em atos sensoriomotores recorrentes) disponível para a ação.

O instrumento modifica, também, os processos psíquicos na atividade instrumental, havendo substituição de certas funções por outras (CLOT, 1999). O comportamento é, assim, recriado em uma nova estrutura que não funciona com base na incorporação do agente em seu mundo de atuação, com corpo e mente, no contexto, na situação, no seu ambiente de trabalho e, enfim, em seu mundo. O ato instrumental pode, assim, ser tido como uma nova estrutura, nova forma de operar no mundo (e de o reconfigurar) conforme necessidades da atividade em questão.

Nesta tese, postulamos que o ato instrumental não deixa de ser um ato incorporado, visto que sua gênese e ativação, em seu exercício, não dispensam o uso do corpo, o manejo do próprio corpo, os seus movimentos num mundo físico que o acolhe como pano de fundo. Estão no corpo os esquemas armazenados para ação, resultantes de padrões sensório-motores recorrentes que, ao longo da história instrumental, emergiram como dispositivos que dão suporte ao agir no mundo.

Atuando sobre o mundo exterior, o homem recria a si mesmo. A dialética entre o exterior e o interior, abordada na psicologia sócio-histórica, solicita que se explique, como se dá esse processo de interiorização de funções que, num primeiro momento, estiveram disponíveis no mundo social para, posteriormente, constituírem o funcionamento psicológico do indivíduo (CLOT, 1999). Demanda, também, explicar como se dá esta “recriação” do homem (em seu corpo, em sua mente, em seu aparelho biológico...) que é afirmada, de modo bastante genérico, no pensamento marxista, sobretudo nas correntes de psicologia que nele se embasaram.

Quando o indivíduo atua sobre a natureza, sobre o objeto exterior, está atuando sobre si mesmo, segundo este ponto de vista, modificando sua própria natureza. Portanto, algo deve ocorrer em seu corpo e em sua mente, estruturas devem ser recriadas, novas formas de acoplar-se ao mundo certamente estarão sendo fomentadas neste complexo processo. Para dominar a si mesmo no ato instrumental, a partir de fora, o uso de instrumentos psicológicos é necessário e, também, necessário se faz detalhar como tais instrumentos se tornam encarnados no indivíduo e o permitem atuar em seu mundo de atividade, o fazem “estar no mundo” em corpo, em mente, incorporado ao mundo e atuante nele. Há estruturas que viabilizam o próprio ato instrumental, sua condição

ontológica de existência, seu exercício concreto. E estas estão situadas no corpo, incorporadas, operando num organismo biológico que acopla-se a um mundo dado e se desenvolve nele modificando e o transformando.

O desenvolvimento da atividade instrumental ocorre como uma contradição, um movimento dialético entre o interior do indivíduo e os fatores exteriores (CLOT, 1999). A lei de desenvolvimento psicológico resulta do sujeito inserido entre os objetos, os instrumentos, os signos e a atividade de outros, que os usando como meios de sua própria atividade, a seu serviço, modifica-se a si e, também, a todos estes elementos. Portanto, o desenvolvimento consiste em inserir-se no mundo social, usando-o a seu serviço, de modo a construir um mundo para si - “un monde por soi” (CLOT, op cit, pág. 122), com o objetivo de integrar-se, de reformular o próprio mundo, participando da elaboração de novas significações.

Não há, segundo Clot (op cit), interiorização sem exteriorização, e a passagem do interior ao exterior transforma, pelo sujeito e pelos outros, o objeto e o meio social dos quais eles se utilizam, assim como a passagem do exterior ao interior transforma o funcionamento do sujeito:

1 - Primeiramente, no domínio social (interpsicológico); 2 – Posteriormente, no interior do sujeito (intrapsicológico); 3 – Novamente, no domínio social-pessoal (agir sobre o mundo).

A interiorização, de alguma forma ela se materializa, corporalmente, mentalmente, (encarnada, incorporada), no “sujeito” anteriormente citado. Isso precisa ser detalhado. Como se passa desse domínio social ao domínio interpsicológico anteriormente citado? Onde estão situadas, concretamente, no sujeito encarnado, suas novas funções internalizadas? Qual é a configuração que elas assumem no aparelho biológico, no sistema fisiológico, no complexo corpo-mente, encarnados e atuantes no mundo do trabalho? Qual é a forma de uma função interiorizada? Qual é o seu desenho ou esboço sensoriomotor, perceptivo, fenomenal?

Se ocorre uma ação sobre o mundo, resultante daquilo que primeiramente fora internalizado, como, ontologicamente, ela se ativa, partindo do corpo e da mente do

“sujeito”, tornando-se um ato concreto sobre o objeto? Que esquemas corporais, mentais, fenomenológicos, e atrelados ao aparelho perceptivo individual situado/encarnado no mundo, fazem parte deste “agir pós-internalização”?

Os poderes de agir não pertencem à ordem da invariância genérica, mesmo se

eles se prolongam suas raízes e se alimentam de construções e elaborações sistêmicas que realizam. A essência dos poderes de agir residem no campo do temporalmente e localmente situado (RABARDEL, 2005, p. 19).

Os conceitos, instrumentos, signos apropriados pelos sujeitos são por eles transformados em outros conceitos, em outras ferramentas, em outros signos (CLOT, 1999). Cada sujeito re-elabora seus instrumentos. Como isso ocorre no corpo e na mente resta por explicar. A apropriação do signo modifica a atividade de pensamento do sujeito e lhe confere uma significação. Segundo o ponto de vista do próprio sujeito, entre a significação social e a atribuição individual desenvolve-se uma entidade mista. Ou seja, o instrumento transforma-se num instrumento pessoal de ação. Há, portanto, uma construção pessoal que ocorre no próprio sujeito. Resta conhecê-la do ponto de vista de sua ação encarnada, corporificada, situada, incorporada... no mundo, que demanda o uso intenso destas estruturas que se tornaram parte do próprio sujeito que age.