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6 ORIGEM E FUNDAMENTOS DA AGROECOLÓGICA

6.5 AGROECOLOGIA E ECOFEMINISMO

A intersecção entre a ecologia e o feminismo amplificou os debates e práticas na agroecologia, da mesma forma que intensificou as discussões em vários setores organizados da sociedade. Desde os anos 1960 o diálogo entre as duas perspectivas teóricas acompanhou a luta de vários movimentos contra as relações de dominação estabelecidas não só pelo capitalismo, mas pelo socialismo configurando, de modo geral, uma crítica aos valores de formação dos indivíduos e às instituições. Com as denúncias ao modelo de desenvolvimento e em especial aos estragos causados sobre o meio ambiente pela Revolução Verde e o avanço técnico-científico da sociedade moderna, o movimento feminista assumiu uma fase mais radical criando-se assim a tendência ecofeminista. Como sinaliza a filósofa feminista Alicia Puleo,

Hace ya casi tres décadas que el feminismo ha aceptado el desafío de reflexionar sobre la crisis ecológica desde sus claves propias. El resultado ha sido la aparición en escena del ecofeminismo: un intento de abordar la cuestión medioambiental desde las categorías de mujeres, género, androcentrismo, patriarcado, sexismo, cuidado, etc. Tal enfoque facilitaría la comprensión de los problemas específicos de las mujeres en relación con el medio ambiente y enriquecería la misma teoría ecológica con la lectura

feminista de la realidad, corrigiendo sus sesgos androcéntricos y contribuyendo a encontrar soluciones para alcanzar la sostenibilidad. (2008, p. 44).

Na base deste enfoque se encontra uma crítica ao lugar destacado que o homem tem como responsável da exploração da humanidade e da natureza. No limiar, as teorizações ecofeministas denunciam o lugar que a natureza ocupa em relação à sociedade criando um paralelo com o lugar de exploração que a mulher sofre na relação com o homem, isto é, um lugar de inferioridade outorgado pelo poder androcêntrico instaurado na sociedade Assim, a fórmula criada para representar o pensamento ecofeminista estaria dada pela equação Sociedade-Homem/Natureza-Mulher. Visto isto, a tarefa histórica do ecofeminismo seria criar os dispositivos necessários para inverter dita relação, colocando a mulher e a natureza como centro vital e reprodutivo da sociedade., É sobre esta cifra, a natureza como principal alvo de proteção, que as mulheres nos anos 1980 se vinculam aos movimentos pacifistas diante da política guerreirista do primeiro mundo, à resistência contra as políticas desenvolvimentistas no terceiro mundo e, por este caminho, ao combate do modelo agroalimentar das monoculturas, agroquímicos e transgênicos no mundo rural. Nos anos 1990 o protagonismo das mulheres levou a incluir suas pautas e reivindicações no quadro das conferências internacionais sobre meio ambiente como aconteceu na Eco-92 realizada no Brasil e em 1995 na China. (SILIPRANDI, 2015)

A medida que o movimento feminista ganhava visibilidade nos espaços de luta dominado pelos homens, a forma em que a mulher era representada pelo ecofeminismo foi tornado-se uma figura mais poderosa e emblemática da luta ambientalista. Assim, começou a surgir a ideia de um “olhar feminino sobre o mundo” a partir do qual as ecofeministas retomavam as pautas das primeiras feministas (sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres) enquanto acrescentavam críticas ao modelo consumista dos países desenvolvidos, destacavam a importância das ações locais e reivindicavam o papel das mulheres como saída à crise socioambiental instalada na sociedade. (SILIPRANDI, 2015). Dessarte, uma sensibilidade existente a priori na mulher foi ganhando um lugar inusitado dentro da política dos movimentos sociais, em especial desde a Eco-92, a partir da qual os valores da maternidade, o cuidado e a figura de mãe cuidadora do mundo se estabeleceram como referentes a uma alternativa à cultura patriarcal. Desta forma,

O ecofeminismo ganhou a cena também porque reivindicava mais do que um posicionamento racional, reivindicava um envolvimento afetivo, emocional, com os temas tratados. Apelava para a identificação das mulheres, enquanto mães (potencialmente “criadoras de vida”), com a Mãe Terra, o que lhes dava legitimidade para, com outros grupos sociais considerados defensores da natureza (indígenas, populações tradicionais), ser as “melhores” portadoras de um projeto não destruidor do planeta. (SILIPRANDI, 2015, p. 60).

Deste feminismo, classificado como cultural, outras formas foram aparecendo no espectro político. O ecofeminismo espiritual iniciou como uma crítica à religião monoteísta dominante pelo vínculo histórico com o patriarcado que proclamava a superioridade do homem sobre a natureza e por extensão sobre a mulher. Uma das mais destacadas representantes deste ecofeminismo, a ativista indiana, Vandana Shiva também forneceu uma vasta teorização à espiritualidade prolongando a crítica androcêntrica ao ideal de progresso da modernidade entendida como o acople entre a ciência e o desenvolvimento que seriam as responsáveis pelo extermínio da vida, isto é, das pessoas e da natureza. Esta violência da ilustração teria como resposta a luta por parte das mulheres criticando a conceptualização do patriarcado ocidental em torno do feminino, da natureza, da ciência e do desenvolvimento. Em função dessa crítica, surgiria o “princípio feminino” a partir da qual novos conceitos emergiriam, assim como outras sensibilidades, especialmente no homem, na tentativa de dar visibilidade às culturas apagadas pelos universais ocidentais (SHIVA, 1988). No Brasil, esta tendência espiritual do ecofeminismo se expressaria na criação da rede Con-spirando. Guiada pela teologia da libertação, a Rede defendia sua participação vinculada à justiça social, ambiental, racial e de gênero na América Latina, pelo qual foi amplamente aceita nos movimentos indígenas e nas populações pobres do subcontinente (SILIPRANDI, 2015).

Não obstante a criatividade que as vertentes cultural e espiritual do ecofeminismo concederam, e concedem, às lutas ambientais e agrárias num amplo número de movimentos sociais, nos anos 1990 estas seriam alvo de crítica por parte do chamado ecofeminismo ilustrado. Tematizada sobre o pensamento crítico, o ecofeminismo ilustrado aponta três discordâncias com as vertentes precedentes. A primeira destaca que a ecologia e o feminismo são o resultado do longo processo que reconhece e reinventa a tradição ilustrada, justificativa mais que suficiente para não cair num “romantismo obscurantista” como o propõem estas vertentes do ecofeminismo; a segunda critica a tendência a exercer uma leitura oblíqua das comunidades tradicionais onde acreditam existir as sementes de um novo relacionamento

entre a humanidade e a natureza; finalmente, o ecofeminismo ilustrado condena o reencantamento do mundo e toda a prática de subjetivação que veicula na sociedade sobre argumento que o ressurgimento de mitos e religiões pagãs só são aplicáveis a parcelas muito reduzidas da sociedade perante o alto nível de fé necessário para que eles operem na subjetividade dos indivíduos. A particularidade das críticas que o ecofeminismo ilustrado levanta sobre as outras vertentes transborda o cenário do ecofeminismo para se instalar como uma crítica incisiva a projetos emancipatórios que procuram abrir mão da razão e se encaminham pelas propostas de reencantamento do mundo que precisa do sujeito ecologizado para funcionar. Desta forma, sendo uma leitura destacada para este trabalho por razão do entendimento da dimensão espiritual, trazemos o debate que o próprio ecofeminismo ilustrado coloca no cenário atual:

Tanto el feminismo como la ecología son productos de la Ilustración. Sin embargo, viendo en la ‘jaula de hierro’ de la racionalidad moderna la causa de la destrucción medioambiental, la mayor parte de las teorías ecofeministas han exacerbado su crítica, proponiendo un reencantamiento del mundo natural destinado a devolverle a este último la dignidad que le había sido arrebatada. En ocasiones, este reencantamiento se plantea desde tradiciones con fuerte contenido patriarcal. Algunas teóricas, en el esfuerzo por desmarcarse de la demonización del varón propia del feminismo llamado «cultural» y para denunciar las nuevas formas de colonización que afectan a los países del Sur y crear amplios frentes de resistencia junto a los hombres, omiten toda crítica a las costumbres y prejuicios de las culturas pre- modernas. Sólo merece su condena el patriarcado capitalista occidental y tienden a idealizar la vida de las comunidades originarias. […] En otras corrientes y latitudes distintas, el reencantamiento se propone a través de la creación de nuevos mitos. [...] Para quienes sientan necesidad de ritos y creencias en los que expresar su espiritualidad, es indudable que el culto neopagano de la Diosa y ciertas formas de la teología ecofeminista cristiana ofrecen opciones compatibles con un ethos emancipador. Pero son cosmovisiones que precisan de la fe, la cual, como es sabido, es un don que no todo el mundo recibe. Probablemente, para muchas personas esta vía esté cerrada. (PULEO, 2008, p. 45-46).

De certa forma, o ecofeminismo de Puleo aponta críticas que bem podem ser entendidas como a necessária inquietação do pensamento. Desde esta perspectiva, as colocações da autora dizem respeito a teorias que fundamentam as práticas dos movimentos sociais contraculturais como sendo alvo de petrificação e, por conseguinte, cooptadas pelos dispositivos de poder no capitalismo ecologizado. Não obstante sua pertinência, é difícil pensar o momento contemporâneo da humanidade como falto de fé e proclive ao um tipo de

pensamento racional derivado da ilustração; muito pelo contrário, diversos trabalhos apontam à falência do projeto emancipador da razão com o surgimento de uma nova era onde religião e espiritualidade são constantemente misturadas deixando está última neutralizada na sua capacidade de agenciar poderosos insight relacionados à formação humana, que é um dos elementos do prisma teórico adotado nesta pesquisa.

Desde esta necessária contextualização do ecofeminismo se pode entender como algumas tendências reverberaram e dominaram o cenário agroecológico no Brasil. Inicialmente as pesquisas apontam que a vertente ecofeminista na agroecologia é resultado do legado das lutas femininas vinculadas à questão agrária, à visibilidade do gênero no mundo camponês e articuladas em movimentos como o MST, a CUT e a Contag (LUZZI, 2007). No debate dominado pela tradição classista, as pautas das mulheres foram ganhando espaço e permitindo uma participação mais protagonística. Curiosamente, a partir dos anos 1990, quando a agroecologia começa a emergir como um paradigma ou enfoque supra autônomo das agriculturas alternativas, as pautas do ecofeminismo essencialista e espiritual vão se abrir passo dentro da agroecologia que procurava mudar as relações machistas e patriarcais instaladas no centro dos movimentos sociais de esquerda. Para autoras como Siliprandi (2015, p. 143),

Propõem-se a construir outro “modo de vida” em que ganham relevo valores éticos de justiça e equidade social. Por isso, são destacadas como importantes as mudanças no relacionamento entre as pessoas, não apenas no relacionamento dos seres humanos com o meio natural. É aí que se abre espaço para o questionamento, dentro do ideário agroecológico, das desigualdades de poder existentes entre os homens e as mulheres no meio rural.

Desde a década dos anos 1990 uma variação de fatos no espaço brasileiro foram feitos acrescentando a influência do ecofeminismo no novo paradigma agroecológico. Lugar destacado tem a realização dos seminários nacionais e internacionais em Porto Alegre por parte da Emater-RS, assim como pelos congressos, a criação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a formação da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Também foram de vital importância para o reconhecimento do ecofeminismo a participação de ONGs, acadêmicos vinculados às universidades e técnicos dos órgãos públicos do país, ganhando assim um campo social criado por pesquisas, publicações e políticas públicas que fortaleceram algumas das propostas produtivas que o novo paradigma estava criando. Neste

contexto, dois acontecimentos no percurso das lutas ecofeministas no Brasil merecem ser revisitados. O primeiro foi o Seminário realizado em Porto Alegre, “Construindo um Diálogo entre Feminismo e Agroecologia”, no qual

foram apontadas as dificuldades de se abordarem gênero e agroecologia dentro de algumas redes que faziam parte da ANA: que essa incorporação nas ações das entidades estava se dando “sem o acúmulo do movimento feminista”; que se enalteciam as relações tradicionais entre homens e mulheres, em nome da cultura local; e que também se enaltecia a relação mulher/natureza, mantendo a mulher no lugar subordinado que lhe era imposto tradicionalmente. (SILIPRANDI, 2015, p. 149).

O outro foi o II Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) realizado no ano 2006 em Recife por parte da ANA. A relevância deste encontro pode ser descrita não só pelo número de trabalhos que foram sistematizados, mais de 1000 casos, mas pela incorporação de uma boa parte das pautas que as ecofeministas vinham elaborando no transcurso de décadas, tais como a construção do conhecimento, a soberania alimentar, as propostas de comercialização integrando as mulheres e de saúde recuperando saberes tradicionais.

Neste percurso descrito até aqui surge uma pergunta de vital importância para entender acontecimentos futuros no alvo desta pesquisa. Assim, nós nos perguntamos, qual seria a ressonância da luta ecofeminista na agroecologia brasileira nas últimas décadas? Depois das discussões que se apresentaram entre um e outro evento o papel das mulheres finalmente ganhou um lugar destacado no processo de construção da agroecologia no Brasil, determinando uma cota do 50% da participação de mulheres nos espaços de delegados do ENA, o que permitiu um maior número de militantes do enfoque feminista dentro da agroecologia, assim como a elaboração de diretrizes para a organização do trabalho das ONGs, dos grupos locais e para a realização de novos eventos. Igualmente, é possível encontrar enunciados vinculados ao ecofeminismo essencialista e espiritualista na literatura produzida pela agroecologia e que formam parte das práticas agroecopedagógicas veiculadas no Brasil.