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Embora tenha um papel encadeador e ordenador dentro do processo de produção de um filme, esse está longe de ser o único conceito dado à montagem. Para Eisenstein (2002), o jogo envolvendo cortes e distribuição de planos interligados - mas não necessariamente - com outros elementos como enquadramento, por exemplo, é capaz de criar e alterar sentidos. Novas ideias e sensações são originadas a partir da junção de planos, indo muito além da imagem de cada um.

As possibilidades criativas construídas pelas relações das imagens são comprovadas pelo experimento de Kulechov. Nele o plano de um mesmo sorriso muda o sentimento passado de acordo com a imagem que o precede. É a chamada montagem produtiva ou expressiva. Ao tratar do tema Aumont (1995, p. 66) dá um conceito: “A colocação, lado a lado, de dois elementos fílmicos que acarretam a produção de um efeito específico, que cada um desses elementos, considerado isoladamente, não produz”.

A montagem expressiva vem acrescentar algo inexistente na montagem invisível. Se na montagem usual do cinema clássico a montagem nada diz, apenas possibilita uma boa fluidez narrativa, na expressiva a montagem ganha poder narrativo, transmitindo sensações e informação. Faz isso sem perder o papel narrativo e, indo além, agregando novos elementos ao filme. Porém é possível

entender que ela tem mais uma possibilidade; além de permitir a narração e exprimir sensações também subtrai informações outrora presentes nos filmes. Assim como constrói, a montagem destrói sentidos ou, posto de outra forma, as ligações de elementos fílmicos feitos através da montagem possibilitam também a construção de sentidos de ausências. Suprimem sensações do espectador. É ela que permite a falta de uma precisa localização geográfica de uma ação representada. Assim como é a montagem que retira a noção de tempo, de duração, de uma ação. O jogo de disposição de planos pode suspender a percepção de tempo. Ela pode, e cria, hiatos temporais.

Eisenstein demonstrou isso em seus filmes. Em Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potiomkin, de Sergei Eisenstein, 1925), baseado na revolta de marinheiros russos de 1905, em que a população de Odessa é violentamente reprimida pelas forças czaristas, a fragmentação de ações dramáticas e distribuição alternada de planos destas ações criaram novo valor para a montagem. Foi através dela que o diretor conseguiu dilatar o tempo a ponto de o espectador não ter uma ideia clara de quanto tempo as ações representadas duram.

O recurso está presente na sequência da escadaria de Odessa, mais precisamente no despencar de um carrinho de bebê pela escada. Três ações são representadas na sequência: o despencar do carrinho, o desespero de quem vê o confronto, o carrinho desgovernado e o pelotão de soldados atirando com seus rifles. Planos das três ações são intercalados. A disposição alternada dos planos de cada uma das ações (tiros - rostos - carrinho - rostos - tiros - carrinho) não compromete a compreensão da narrativa: em meio aos tiros do confronto a mãe vê o carrinho sem controle despencar pela escadaria e também é ferida; os soldados avançam e, enquanto alguns assistem apavorados, outros fogem.

Se o entendimento da fábula é claro, o mesmo não é possível dizer quanto à localização espacial e ao tempo de duração de cada uma das ações representadas. Graças à montagem, não nos é permitido saber se o despencar do carrinho durou poucos ou muitos segundos ou se foram vários minutos, por exemplo. A relativização do tempo neste caso parece conspirada para que o envolvimento do espectador seja apenas nas outras sensações suscitadas pelas imagens. A sequência transmite desespero, gera apreensão, medo e instiga o suspense no espectador.

A manipulação temporal representada se dá com descontinuidade da ação e a intercalação de ações. Um plano do carrinho caindo é seguido por um plano da mãe em desespero e assim sucessivamente. A distribuição dos planos, desta forma, permite a dilatação do tempo ou cria um hiato temporal. Assim o cineasta russo demonstra uma das formas de manipular a temporalidade no cinema através da montagem.

A montagem da sequência da escadaria é também uma montagem paralela. São muitas as ações e as personagens em movimentos simultâneos. É possível notar: o despencar do carrinho, o cair e o desespero da mãe, os soldados atirando, o desespero e a tentativa de revide de duas personagens. Todos com planos intercalados. O emaranhado disposto das imagens reforça a agitação e a confusão da história. Transmite aflição.

Figura 8 - Sequência do filme Encouraçado Potenkin, de Sergei Eisenstein, 1925. Fonte: Arquivo do autor

A perda da noção temporal também se dá, em boa parte, pelo emaranhado de ações e sua simultaneidade. É como que uma montagem paralela levada ao extremo, que cria sensações e retira outras. “[...] a montagem, cujos fundamentos haviam sido colocados pela cultura cinematográfica norte-americana, mas cujo uso total, completo e consciente foi o reconhecimento mundial foi obtido por nossos filmes” (EISENSTEIN, 1949, p. 183).

Encouraçado Potemkin se tornou um marco no cinema, não apenas por seu apelo ideológico ou pela autoria, mas também pela capacidade criativa da

montagem, que, entre outros feitos, conseguiu criar outra noção de tempo e de espaço. O tempo e o processo de localização espacial diegéticos já não eram os mesmos dos de fora da sala escura.

Na montagem invisível também era possível criar outro tempo para as ações. A representação podia dilatar ou encurtar as representações, mas nela havia a intenção de manter um tempo - mesmo que irreal - para as ações. Situação diferente de Encouraçado Potemkin, por exemplo, onde mais do que preocupação em ampliar ou reduzir o tempo representado, parece existir a intenção de retirar por completo a questão temporal da narrativa. O tempo e a localização dos objetos da ação passam a ser secundários.

Eisenstein (2002) não foi o único a defender o papel preponderante da montagem no cinema, assim como Bazin (1991) também não estava só na busca de uma relativização deste papel, mas os filmes e as teorias de Eisenstein ajudaram e foram fundamentais para criar o conceito que considera a montagem como o elemento diferencial do cinema em relação às demais artes. O próprio Eisenstein via de alguma forma a montagem em outras artes e muito anteriores ao surgimento do cinema. A poesia japonesa, por exemplo, com mais de dois mil anos, para Eisenstein já continha a montagem, assim como o teatro. Mas foi o cinema que deu relevância a ela. Essa relevância se dá, entre outras, pela possibilidade expressiva que vai além da própria ação representada, presente em cada plano, cada sequência.