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A Europa também tem seu movimento na contramão do cinema clássico dominante americano. A ideia de um cinema arte, sem a obrigatoriedade narrativa, é da França, também da década de 20. Essa primeira vanguarda francesa é marcada pelo amplo uso de recursos de manipulação temporal como câmera lenta e montagem acelerada. É a deformação do tempo representado. Efeitos esses que permitiam a criação de universos fantásticos por cineastas como Jean Epstein e Louis Delluc (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1992).

Se a primeira vanguarda é impressionista, a segunda é dos dadaístas e surrealistas. E é em meio às imagens de impacto, do anarquismo e da provocação dos filmes dos dadaístas, que a montagem acelerada se apresenta em filmes como Entreato (Entr'acte, de René Clair, 1924). Mas são dos surrealistas dois dos filmes que, segundo Vanoye e Goliot-Lété (1992), vão lançar as bases de narrativa não clássica; Em Um Cão Andaluz, de Luiz Buñuel, e A Idade do Ouro, (L'Age d'Or, de Salvador Dali, 1930) a lógica linear dá lugar à ruptura e é deliberada a confusão entre objetividade e subjetividade (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1992).

Em Um Cão Andaluz a questão temporal está inserida na proposta de ruptura. Como relatado no capítulo anterior, as montagens transparente e expressiva são usadas na obra para estabelecer, entre as sequências e os planos, uma descontinuidade de tempo. É através do uso de ambas que é possível reproduzir na obra um tempo em muito semelhante ao dos sonhos. Um tempo onírico sem linearidade.

A concepção de um tempo onírico no filme é possível se for levado em conta a proximidade entre cinema e sonhos. “O parentesco existente entre o universo do filme e o do sonho foi frequentemente apercebido e analisado e todos nós, frequentadores do cinema, obscuramente identificamos sonho e filme.” (MORIN, 1956, p. 97). Metz (1980), autor de O Significante Imaginário - Psicanálise e Cinema, também partilha essa percepção:

[...] o fluxo fílmico assemelha-se mais ao fluxo onírico do que os outros produtos da vigília. É recebido, já o dissemos, num estado de menor vigilância. O seu significante próprio (as imagens sonoras e em movimento) confere-lhe certa afinidade com o sonho, visto que coincide de entrada com o significante onírico num dos seus traços maiores, a expressão “por imagens”, a capacidade de figurabilidade, segundo o termo de Freud. (METZ, 1980, p. 129).

A questão onírica está intricada com as questões temporais do filme. O tempo representado na obra de Buñuel busca aludir ao tempo onírico. Um tempo sem lógica definida ou, visto de outra forma, com várias formas possíveis. Há espaço para o tempo descontínuo, para o circular e mesmo o causal. Tal como nos sonhos, em Um Cão Andaluz essas representações temporais se mesclam, interagem e se sobrecolocam. A sequência da bicicleta (Figura 9), com a causalidade de alguns cortes e a descontinuidade de outros, como se tratou no capítulo anterior, é um exemplo deste conceito.

Além da descontinuidade temporal provocada através da distribuição de planos e sequências, o filme explicita essa deliberada intenção de confundir a temporalidade narrativa com o uso de cartão referindo o tempo. Ainda no começo da obra uma frase na tela indica a passagem de oito anos e separa duas sequências. Na cena anterior à indicação, o olho de uma mulher é cortado com uma navalha por um homem. Na sequência que segue ao cartão, um homem anda de bicicleta pela rua.

As duas sequências parecem não ter qualquer ligação narrativa. A indicação da passagem dos oito anos parece ser usada apenas para criar uma maior sensação de desconforto. No filme onde o autor buscou fugir de ligações possíveis entre as sequências na tentativa de reproduzir um sentido onírico, a indicação da passagem do tempo é como uma ironia com o uso linear do tempo no cinema dominante da época.

Neste mesmo agrupamento de sequências de Um Cão Andaluz existe um salto temporal que indica um ciclo. Após a sequência do homem que anda de bicicleta pela rua, é apresentada uma sequência com uma mulher que está em um quarto e vai até a janela onde olha para o homem que anda e cai da bicicleta na rua.

Aparentemente trata-se da mesma mulher que teve o olho cortado antes do cartão indicativo da passagem de oito anos e nesta segunda aparição o olho da mulher está intacto, o que faz o espectador crer ser uma ação anterior ao ferimento. Assim a narrativa se faz com o corte do olho, que pode ser aqui entendido como presente, indicação de passagem de oito anos, o passeio de bicicleta em um tempo indeterminado e, por fim, a mulher espiando na janela, o passado. A volta da mulher à cena retoma a narrativa da primeira sequência, como que completa um círculo, o tempo em ciclo.

Figura 21 – Sequência do filme Um Cão Andaluz, de Luiz Buñuel, 1928. Fonte: Arquivo do autor

Para tornar o entendimento do tempo do filme ainda mais complexo, se soma ao jogo temporal destas sequências, a “confusão” temporal interna da sequência da bicicleta, onde um plano, com o personagem à noite e no sentido contrário, é sobreposto aos demais que são ambientados durante o dia, conforme foi referido no capítulo anterior (Figura 9).

A questão temporal, descontínua e deliberadamente confusa, em Um Cão Andaluz, foge do contexto dos filmes comerciais dominantes de então. Mesmo com exceções, o cinema norte-americano e a sua construção causal, são dominantes. Ainda assim elementos deste cinema mudo de grande público estão presentes na obra. A indicação gráfica da passagem do tempo é originária das obras da época em que o som ainda não estava disponível, embora Buñuel se aproprie do popular cartão indicativo para subverter o seu uso tradicional. A indicação gráfica que em geral esclarecia, no filme confunde.

O uso de uma indicação gráfica para a passagem do tempo neste contexto de confusão temporal indica ainda a intenção de não deixar dúvidas ao espectador quanto à manipulação do tempo no jogo surreal que está sendo proposto; uma indicação ambígua, que funciona como um alerta, mas o faz já provocando um desconforto. Ambiguidade que, mais uma vez, repete a proposta onírica pretendida pelo autor.