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A sociedade atual imprime ao sujeito uma percepção de tempo numa velocidade sem precedentes. Essa velocidade é resultado de fatores de vários campos: a tecnologia disponibilizando um volume quase infinito de formas de acesso à informação, o aumento do volume de informação e a necessidade de desenvolvimento de múltiplos papéis, simultâneos, para o sujeito. “Vivemos assim nessa época intensamente inquietada pelo tempo, que se tornou um mandamento: a velocidade” (D'AMARAL, 2003, p. 17).

A velocidade permeia múltiplos campos de atividade humana e é figura temporal presente rotineiramente no cotidiano da atualidade. A pressa e um, muitas vezes, angustiante planejamento de múltiplas atividades, são exemplos desta ideia. A velocidade torna-se assim uma configuração temporal frequente, associada a

aflições do sujeito contemporâneo. Angústia que se faz presente também na incompreensão do próprio tempo.

Santaella (2007) em Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade aponta o contexto que se insere e a pertinência da questão da velocidade e do tempo.

À aceleração da história, resultante de uma multiplicação de acontecimentos que atravancam tanto o presente quanto o passado próximo, e às figuras do excesso como modalidades essenciais da contemporaneidade Augé (ibidem, p. 32) [Referência à citação ao livro “Lugar não lugar”, de Marc Augé, 1992] deu o nome de 'supermodernidade'. São pelo menos três as transformações ou figuras do excesso que ela implica:

•A superabundância factual e as dificuldades que esta coloca para o pensamento do tempo.

•O excesso de espaço que é paradoxalmente correlativo ao encolhimento do planeta (...)

•A figura do ego, quem vem sendo debatida por filosofias e teorias de todos os calibres... (SANTAELLA, 2007, p. 173).

A velocidade e seu ritmo acelerado são um dos traços temporais mais visíveis da contemporaneidade e não apenas no campo acadêmico, mas não é único. A multiplicidade temporal é uma realidade. O sujeito contemporâneo convive com numerosas questões temporais que lhe exigem, mesmo que sem um perfeito entendimento conceitual, uma flexibilidade temporal. São vivências que vão muito além de um passado, presente e futuro em ordem linear.

Castells em A Sociedade em Rede (2003) dá alguns exemplos destas vivências implicadas numa flexibilidade temporal: o mercado de ações com transações feitas em segundos, flexibilização de jornada de trabalho, negação da morte e culto a eterna juventude.

As questões temporais indicadas por Castells (2003) fazem partes de vários campos de conhecimento e do cotidiano. Estão presentes também na arte e no cinema. Nas fábulas projetadas na grande tela são comuns personagens com o cotidiano de muitas experiências temporais simultâneas. Pulp Fiction – Tempo de Violência (Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, 1994) ilustra bem este conceito. A narrativa do filme apresenta histórias com cronologia não linear, não causal: em

uma, os gangsteres Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) devem fazer uma cobrança que termina em chacina; em outra história, o mesmo personagem leva a mulher do chefe (Uma Thurman) para se divertir. Na terceira, Butch Coolidge (Bruce Willis) é um boxeador que tenta enganar a máfia do jogo.

A abundância de fatos da sociedade mencionada por Santaella está retratada na obra. Isso se expressa, entre outras formas, através da multiplicidade de ações protagonizadas por um mesmo personagem. Vicente Veja, interpretado por John Travolta, por exemplo, vive múltiplas ações na narrativa, entre elas as já mencionadas cobranças encerradas em chacina e missão de entreter a mulher do chefe. A obra tem uma representação temporal que corresponde às noções e vivências temporais da sociedade contemporânea referidas por Santaella (2007) e Castells (2003).

“O pensamento contemporâneo está moldado por uma complexidade que o diferencia radicalmente da estrutura de pensamento linear dominante antes da revolução tecnológica” (MOURÃO, 2002, p. 37). A montagem está inserida neste contexto. É através dela que a não causalidade é construída, emaranhando passado, presente e futuro. Na obra a montagem constrói um tempo fílmico não linear, as sequências de cada uma das três linhas narrativas da fábula não estão em uma ordem de passado-presente-futuro. Cada linha narrativa está em descontinuidade cronológica e todas as ações se intercalam, se misturam e se sucedem também sem uma linearidade.

A montagem transparente, ainda frequente no cinema contemporâneo a Pulp Fiction – Tempo de Violência, não é predominante na obra. A construção temporal, com saltos do presente para o passado, do passado para o futuro e do futuro de volta ao passado não é feita com o objetivo de facilitar a compreensão narrativa. A intenção parece tornar essa construção mais um atrativo da obra, onde o espectador deve ir juntando as peças da fábula, quase como um jogo. Missão que se torna ainda mais complexa quando se observa que são três ações narrativas - três tempos - e as três em constantes alterações entre passado, presente e futuro. Muitos tempos e nenhuma ordem facilitadora aparente.

Mesmo que não seja a montagem transparente a que se destaca na obra como um todo, alguns dos seus elementos estão presentes. A distribuição dos planos

dentro das sequências é causal e a construção temporal da narrativa das sequências é linear. Além disso, em sua maioria, os cortes não pretendem ser perceptíveis, respeitando o princípio da invisibilidade.

O emaranhado temporal é criado através da disposição de sequências em paralelo, onde são mostradas alternadamente duas ou mais ordens de coisas sem elo cronológico. Tal construção sugere uma variação da montagem expressiva. A distribuição dos planos, criando um jogo cronológico a ser montado pelo espectador, acrescenta outro sentido aos planos. Os planos e as sequências tornam-se, além de elementos constitutivos da fábula, partes de um quebra-cabeça narrativo, através do embaralhamento da ordem temporal dos acontecimentos.

Figura 19 – Sequência do filme Pulp Fiction – Tempo de Violência, Quentin Tarantino, 1994. Fonte: Arquivo do autor