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1. ABUSO DO DIREITO

1.5 Alcance e aplicabilidade – o abuso do direito no ordenamento jurídico

Sob a vigência do Código Civil de 1916, com forte influência da teoria elaborada por Saleilles, não houve qualquer menção à teoria do abuso do direito no ordenamento jurídico, isso porque o art. 160, I do Código trazia cláusula geral na qual excluía da configuração de ato ilícito o praticado no exercício regular de um direito154.

O artigo em apreço assim dispunha:

Art. 160. Não constituem-se atos ilícitos:

I – os praticados no exercício regular de um direito155.

152 JOSSERAND, L. apud, CARPENA, H. Abuso do direito nos contratos de consumo, apud, DEUS

LIMA, P. C. de. Abuso do direito e tutela ética do processo, p. 52/53.

153 JOSSERAND, Louis, apud, PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil, p. 261. 154 STOCO, Rui. Abuso do Direito e má-fé processual, p. 40.

Como se vê, o Código Civil de 1916 não se referiu à figura do abuso do direito, somente mencionava que não constituíam atos ilícitos os praticados no exercício regular de um direito. Porém, por especulações doutrinárias, se a expressão “exercício regular” tinha sentido de regular certa maneira de exercer um direito, por inversão, se admitia a possibilidade de que o direito fosse exercido de maneira irregular, consagrando, por via indireta, a tese do abuso do direito156.

Com essa inversão negativa de seu sentido, entende-se de tal modo que, se um ato fosse praticado no exercício irregular de um direito, não seria lícito, sendo então ilícito, porque “não existe, no campo do direito, zona intermediária e incolor, espécie de limbo jurídico, em que licitude e ilicitude perdem sentido e significação”157.

Contrário a tal interpretação em sentido contrário do art. 160, I, do antigo Código Civil, cita-se Luiz Sergio Fernandes de Souza158, o qual explana:

Partindo da regra segundo a qual o exercício regular de um direito reconhecido não configura ato ilícito (art. 160, I, do Código Civil de 1916), trata-se de saber qual a natureza jurídica do exercício irregular. A lógica deôntica não autoriza a concluir, necessariamente, pela ilicitude (proibição), como fazem os civilistas pátrios. De qualquer forma, já se pode adiantar que se está diante de uma solução retórica, que se bem encontra fundamento em argumento indutivo, a contrário senso, desconsidera, por certo, a existência de uma terceira categoria deôntica (além do obrigatório e do proibido), que é a permissão.

Tendo em vista os limites estruturais do art. 160, I, do Código Civil de 1916 ou mesmo por ser um apêndice da cláusula geral de responsabilidade civil aquiliana do art. 159 do mesmo Código, não houve um estudo da teoria do abuso do direito em sua noção objetiva, sendo ainda “uma figura tímida, ainda subjetivada e fundamentalmente assistemática”159.

No entanto, o Novo Código Civil, instituído pela Lei 10.406, de 11/01/2002, sob forte inspiração da teoria objetivista, segundo a qual é dispensável a comprovação do elemento subjetivo (item 1.4.2), traz uma perspectiva diferente a respeito da teoria, consagrando-a em seu art. 187, já aludido.

Para Bruno Miragem160, ocorreram duas distinções básicas entre o regime do

antigo Código e o atual: a) a separação entre a definição de ilicitude e responsabilidade

156 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Abuso de direito, p. 127. 157 LUNA, Everaldo da Cunha. Abuso de Direito, p. 83.

158 SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. Abuso de Direito Processual, p. 39.

159 MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé, p. 516. 160 MIRAGEM, Bruno. Ilicitude objetiva no direito privado brasileiro, p. 13.

civil; b) adoção de duas cláusulas gerais de ilicitude, dentre as quais insere-se o abuso do direito no artigo 187.

Observa-se que no Código Civil de 2002 houve a presença de normas que buscam a “formulação da hipótese legal mediante emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente imprecisos e abertos, os chamados conceitos jurídicos indeterminados”161.

Sobre a cláusula geral presente no art. 187 do Código Civil, em estudo, vê-se que por tal instituto estar presente na Parte Geral do Código, é incidente sobre quaisquer setores do Direito Privado, orientando a boa-fé objetiva como garante das legítimas expectativas e de uma ação orientada pela probidade e correção no tráfego jurídico162.

Deste modo, o juiz tem mais liberdade para atuar, ao passo que “as cláusulas gerais funcionam como um instrumento à aplicação do direito propriamente dito, impondo ao magistrado a pesquisa de soluções dentro do próprio sistema, através da análise da jurisprudência e/ou doutrina, no intuito de criar o regramento aplicável ao caso concreto”163.

Sobre a boa-fé presente no art. 187 do Código Civil, além de ser um elemento ordenador e sancionador do exercício jurídico na medida em que institui padrões de probidade, correção e atenção às expectativas legítimas, também se configura apta a i) orientar o intérprete a uma solução que não se encontra, necessariamente, tipificada no sistema; e a ii) “ressistematização, isto é, a ordenação racional da solução encontrada, dialeticamente transformando em abstrato e geral (isto é, aplicável à generalidade dos casos análagos) o que fora concreto e particular”164.

Entende-se que a inspiração do legislador brasileiro tenha sido a disciplina do abuso do direito seguindo uma linha iniciada pelo Código Civil alemão de 1896 (§ 826) e aperfeiçoada pelo Código grego de 1946 (art. 281) e prevista no art. 334 do Código Civil português que assim dispõe165:

Art. 334. Abuso do Direito.

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito.166

161 LAUTENSCHLAGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso de Direito, p.75.

162 MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé, p. 531. 163 LAUTENSCHLAGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso de Direito, p. 76.

164 MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé, p. 536/537. 165 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, p. 392.

A redação desse dispositivo em muito se assemelha com a redação do nosso diploma civil, o qual também estabelece alguns critérios para a aferição da abusividade do ato, os quais, segundo Helena Najjar Abdo167são:

(i) que o abuso tenha ocorrido durante o exercício de um direito subjetivo; (ii) que o agente seja titular desse direito; (iii) que tenham sido excedidos os

limites impostos pelo fim social e econômico do direito abusado, pela boa-fé

ou pelos bons costumes; e ainda, (iv) que o excesso tenha sido manifesto.

Quanto a sua aplicação, a teoria do abuso do direito foi sendo aplicada em diversos campos do Direito Civil, não somente no campo dos direitos patrimoniais, como a princípio se supôs. No entanto, foi em torno do direito de propriedade que giraram as primeiras elaborações teóricas e os primeiros precedentes judiciais relacionados com o tema do abuso do direito168. Já o princípio da relatividade dos

direitos foi usado no campo do direito de propriedade por ser mais propício ao exercício anormal pela significação que se lhe atribuía169.

Do ponto de vista histórico, a teoria do abuso do direito foi assim sendo usada170:

Nesse sentido, a noção de abuso é tributária da série de decisões francesas do final do século XIX, e meados do século XX, nas quais, tendo-se em discussão o direito de propriedade, questionava-se seu exercício pelo titular diante da ausência de utilidade do mesmo.

À título exemplificativo quero, contudo, nesse trabalho, fazer ligeira referência acerca da extensão dada à teoria do abuso do direito nos casos clássicos de direito de propriedade.

Nesse sentido, o civilista Bruno Miragem discorre que171:

São exemplos célebres dessa jurisprudência os casos Lingard, Mercy e

Lacante, relativos a fumos e maus cheiros de fábricas, e o caso Grosheintz,

que girou sobre escavações no terreno do próprio titular que provocaram o desmoronamento do terreno vizinho. Ainda, o caso Doerr, dizendo respeito à construção de uma chaminé em terreno próprio com o fito exclusivo de retirar luz do terreno vizinho; o caso Savart, em que o proprietário de um terreno construiu uma estrutura de madeira com dez metros de altura, pintada de negro, com o objetivo de sombrear e entristecer o terreno vizinho; e, talvez, o mais citado deles, o caso Clément-Bayard, em que o proprietário construiu em seu terreno um dispositivo de espigões de ferro com o objetivo de destruir os aeróstatos lançados pelo proprietário vizinho.

167 ABDO, Helena Najjar. O Abuso do Processo, p. 46. 168 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Abuso de direito, p. 132. 169 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, p. 133.

170 MIRAGEM, Bruno. Ilicitude objetiva no direito privado brasileiro, p. 14. 171 MIRAGEM, Bruno. Ilicitude objetiva no direito privado brasileiro, p. 14.

No entanto, não foi somente no direito de propriedade que a teoria se difundiu. O desvio pode ocorrer, igualmente, no campo dos direitos extrapatrimoniais, como explana Orlando Gomes172:

A proibição de visita aos avós, sem qualquer motivo, constitui abuso do exercício do pátrio poder. O poder marital pode ser exercido abusivamente, e de resto todo e qualquer direito, uma vez que, de acordo com a concepção relativista, o exercício deve ter sempre uma causa.

Quanto à finalidade da teoria do abuso do direito, diz-se que esta se propõe, desde seu nascimento, à reincorporação da justiça ao ordenamento jurídico, tendo em vista que este encontrava-se perturbado com os exercícios desregrados dos direitos subjetivos que lesionavam a vida social, causando dano para um terceiro173.

Ainda, como mencionado, mesmo que o autor do dano venha a exercer um direito definido, a caracterização do abuso de direito se dá quando excede seus limites, suas prerrogativas, ferindo interesses alheios e causando danos a terceiros.

Quanto ao critério a usar para dar como caracterizado o abuso do direito, Fernando Noronha174 entende que, devido ao nosso sistema dar uma grande importância

à autonomia privada, ocasionando uma larga margem de discricionariedade no exercício de direitos, deve-se usar o critério da manifesta desproporção, que, para ele seria a desconformidade “entre o interesse que o agente visa realizar e aquele da pessoa afetada, ou, dizendo de outro modo, entre as vantagens do titular do direito e os sacrifícios suportados pela outra parte”.

Assim, resta superada a dúvida quanto à aceitação da teoria, porquanto ninguém pode se locupletar de ter causado dano a outrem, nem mesmo deve deixar de ser responsabilizado pelo mal que eventualmente cause quando procede no exercício de seu próprio direito.