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Alegoria da visão e olfato, por Peter Brueghel the Elder, meio do século XVI

    Os sentidos da audição, tato e paladar, Peter Brueghel the Elder, metade do século XVI.   

Voltando ao estudo de sensibilidade realizado com cegos, a constatação de que        estes são capazes de identificar um objeto a sua frente, mas não por meio de        suas mãos ou de um bastão, embaralha a estabelecida noção de que possuímos        cinco sentidos responsáveis por mediar nossa relação com o mundo. No        Ocidente, a divisão prevaleceu ao longo da Idade Média ao basear­se nos        elementos descritos tanto por Demócrito (JÜTTE, 2005, p.57) quanto pela teoria        astronômica de Aristóteles (2014) que, em  Do céu , destacou que o universo é              feito de ar, água, fogo, terra e éter. Essa divisão foi posteriormente usada para        explicar a origem do olfato (que viria do ar), paladar (proporcionado pela água),        visão (permitida pelo fogo), tato (terra) e audição (pelo éter, matéria que compõe        o céu). 

 

À título de comparação, a filosofia budista indiana também relaciona as formas        de consciência sensorial (gustativa, tátil, auditiva, olfativa e visual) às regiões        responsáveis por sua percepção (língua, corpo, ouvidos, nariz e olhos),        formando nosso sistema sensorial ( Ayatana ). Nela, porém, como mostra        Vasubandhu (circa 360, apud Stanford, 2009), esse sistema tem 6 elementos,11        sendo a mente o órgão da consciência mental.         O budismo indiano, ao reunir          mente e corpo como partes de um mesmo conjunto, atribui ao sistema sensorial        a    mediação entre a esfera externa dos sentidos e a interna da percepção,        prescindindo da    divisão cartesiana clássica entre corpo e mente, base das        filosofias e formas de conhecimento ocidentais .  12

 

Se hoje ­ com a descoberta do transcendental, da Yoga e do Budismo pelo        Ocidente, traduzidos em conceitos aplicáveis tanto à psicologia e terapias de        auto­ajuda quanto ao desempenho nos negócios  ­  começamos a questionar a                  divisão cartesiana entre corpo e mente, pode­se questionar também, sem        ignorar a fisiologia humana, até que ponto a atual divisão entre 5 sentidos é        culturalmente construída.  

11 VASUBANDHU, A. ­  Treasury of Higher Knowledge, circa 360, volume I, p.17. 

12 Para entender melhor a relação entre o Budismo e a primazia visual, seria útil conhecer a                                etimologia e possíveis sentidos adicionais para os termos  Bodhi e  Moksha  (sânscrito) e  Satori              (japonês), que, ocidentalizados, são abrigados debaixo do termo geral  Iluminação  espiritual. 

A combinação de recursos de linguagem ­ sejam eles orais, visuais, aurais,        táteis ou outros ­ que cada sociedade costuma usar para processar, interpretar e        criar sentido para seu mundo estabelece as possibilidades que cada indivíduo        inserido nela tem à disposição para perceber essa mesma realidade a sua volta       

. Assim, sociedades dotadas de  visões de mundo , ao inevitavelmente produzir                  13

sentido de forma visual ou que apelem a metáforas e construções que girem em        torno desse universo, acabam reforçando a separação de sentidos estabelecida.  

 

Levada ao limite, a artificial separação entre mundos visuais e auditivos parece        tender ao irreconciliável, como mostra a seguinte contraposição entre os        mundos: 

 

ouvir é esférico, ver é direcional; ouvir submerge o sujeito, ver oferece        uma perspectiva; o som vem até nós, mas a visão viaja até seu objeto;        ouvir é sobre interiores, visão é sobre superfícies; ouvir envolve contato        físico com o mundo exterior, ver pede distância dele; ouvir coloca você        dentro do evento; ver te dá uma perspectiva dele; ouvir tende a        subjetividade, ver tende a objetividade; ouvir nos leva ao mundo vivo, ver        nos move à atrofia e a morte; ouvir é sobre afeto, ver é sobre o intelecto;        ouvir é um sentido temporal, ver é um sentido espacial; ouvir é um        sentido que nos penetra no mundo, enquanto a visão nos remove dele.        (STERNE, 2012, p.9). 

 

 

Comparemos algumas das características atribuídas ao mundo auditivo com        outras ligadas ao mundo visual: do lado sonoro­auditivo temos o esférico,        submerso, próximo, profundo, envolvente, includente, subjetivo, emocional,        afetuoso, temporal e penetrante; do lado visual­imagético tudo o que é        direcional, isolado, perspectivista, distante, superficial, excludente, objetivo,        intelectual e espacial.  

 

Os dois conjuntos acima remetem a polarizações presentes em toda a história        das ideias, principalmente no Ocidente, mas não só nele, desde os primórdios        da filosofia, arte, ciência, religião: feminino e masculino, subjetivo e objetivo,        natureza e cultura, criança e adulto, religião e ciência, espiritual e material,       

13 Essa noção aparece também no pós­estruturalismo ( DERRIDA, 1978 ) e na semiótica social  ( LEEUWEN, 2005 ). 

inconsciente e consciente, dionisíaco e apolíneo, mente e corpo, entre tantos        outros.  

 

Por sorte, essa estrutura dual sobre a qual construímos e organizamos nosso        mundo parece dar sinais de cansaço. Sorte pois a dualidade é, em todos esses        casos, polarizadora: obriga tudo o que está no meio a aderir a um dos pólos.        Essa atração tende a esvaziar os espaços de indecisão, hibridismo,        ambiguidade ou polivalência habitados por tudo aquilo que resiste à definição        polarizada. Sorte, pois estes espaços são justamente os responsáveis por        traduzir, mediar e, em último caso, criar empatia entre habitantes dos polos. O        esvaziamento destes espaços intermediários talvez esteja relacionado aos        grandes problemas de comunicação e entendimento que hoje enfrentamos.   

Para entendermos onde estão estes sinais de cansaço das estruturas duais,        basta olhar para o grande símbolo do seu apogeu, a grande instituição que não        apenas reforçou as estruturas duais já existentes mas também criou muitas        delas ao longo do últimos séculos: a Modernidade (LATOUR, 1994). Foi o desejo        Moderno que nos levou a separar todas as coisas em polos opostos.  

 

Separar até a purificação foi, para os Modernos, o caminho para entender,        explicar, dominar e controlar as coisas do mundo, tanto as que já existiam antes        quanto as por eles inventadas (uma grande dificuldade de nós, Modernos, é        saber distinguir as coisas anteriores a nós das coisas por nós  descobertas : até        hoje não se sabe em qual grupo se encaixam os Kamayurá, os Kisedjê, os        Pataxó e os Aborígenes australianos). 

 

(Um cuidado importante aqui: não confundamos o substantivo  Moderno ­        referente à Idade Moderna, dos séculos XVI ao XX, repleta de impulsos        classificadores, polarizadores e separadores ­ com o adjetivo coloquial  moderno        ­ usado para designar aquilo que está à frente de seu tempo). De toda maneira,        as impurezas aparentemente eliminadas pela tentativa Moderna de destilação        das coisas do mundo estão, de alguma forma, nele reaparecendo. O que, para       

os Modernos, pareciam ser substâncias puras começam a revelarem­se, para os        críticos da Modernidade, misturas. Talvez alguns exemplos tornem mais fácil        entender o cansaço do mundo Moderno. 

 

As relações entre sexo e gênero, antes ditadas pelos pares masculino e        feminino, e hétero e homossexual, representam cada vez menos as únicas        opções possíveis e mais referências gerais de construção individual de gênero e        sexualidade (BUTLER, 2003). O binômio Ocidente e Oriente se despedaça a        cada diáspora, migração, surgimento de gueto e inovação nas tecnologias de        transporte e comunicação digital (APPADURAI, 1996). As fronteiras entre mente        e corpo são corroídas por todos os lados: da filosofia (MERLEAU­PONTY, 2003),        passando pela psicoterapia (LOWEN, 1994), quiropraxia (KELEMAN, 1975) e de        junções antes impensáveis como a das ciências cognitivas com a meditação        budista (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991). Cultura e natureza, separados        talvez desde a  descoberta da primeira, já aparecem como lados de uma mesma        moeda (LATOUR, 1994). Os marcos socioculturais que antes delimitavam a vida        infantil e adulta hoje se sobrepõe, borrando as linhas entre uma e outra        (BEAUJOT, 2006). 

 

Todos estes exemplos de antigas estruturas duais cujas metades agora se        misturam, deixando de ser  partes , compõem os sinais de cansaço da        Modernidade. Esta mesma Modernidade que, em Mercator, Descartes e tantos        outros, consolidou um processo ­ cujo início aparece já no Classicismo grego e        no Velho Testamento Judaico­Cristão ­ de eleição da visão destacada como o        sentido primordial de nossa relação com o mundo.  

 

Minha contribuição nestas páginas será na direção de revelar ainda mais o        cansaço Moderno, fazendo peso na balança das formas de percepção humana        que hoje tanto pende para o visual. Em complemento à conhecida forma de        percepção que gera mundos direcionais, isolados, distantes, superficiais,        excludentes, objetivos, intelectuais e espaciais ; irei investigar formas de estar        14       

no mundo que são esféricas, submersas, próximas, profundas, envolventes,        includentes, subjetivas, emocionais, afetuosas, temporais e penetrantes. Formas        de mundo criadas por um ser sonoro.      O exame de ultrassom baseia­se na variação da interação da onda sonora com os tecidos,  conhecida como impedância acústica.   

Não precisamos viajar até o Xingu ou às planícies australianas para encontrar        povos que produzam ­ além de visões ­  audições de mundo. Tampouco        precisamos recorrer a testes de percepção com deficientes visuais. Basta buscar        qualquer ser que tenha vivido a constituição ressonante do útero:  

 

o que é a barriga de uma grávida se não o espaço no qual um novo        instrumento começa a ressoar, um novo  órgão que (...), recebendo de        fora apenas sons ­ chegada a hora ­ começará a ecoá­los através de        seu choro? (NANCY, 2007, p.37) 

Se a física da onda sonora, ao mesmo tempo penetrante, tocante e ressonante,        é uma explicação do envolvimento, intimidade e proximidade que o som e sua        audição criam, o útero é o instrumento ressonante primordial. No útero, tudo é        som. O útero é a floresta que todos habitamos. Ser concebido e desenvolvido no        útero, onde a visão é tão impossível quanto a audição presente, é prova de que       

audições de mundo são muito anteriores a  visões dele. Quando, no parto, a mais        acolhedora esfera de ressonância se perde para sempre, também nós nos        perdemos. Não há outra escolha senão ­ como  seres sonoros  que somos ­                lançar mão da ecolocalização, função primordial do choro do recém­nascido,        para tentar recriar, fora do útero, a ressonância original (NANCY, 2007, p.37). É        tão curioso quanto indicativo do domínio do mundo visual em nossa cultura que        um evento sonoro como o parto seja descrito por nós como  dar à luz.  

 

Os  seres sonoros , espalhados pelo Ocidente e Oriente, em comunidades orais          ou metrópoles globais, fazem uso de várias formas de geolocalização        acolhedora por ressonância . Sons de sinos de metal, por exemplo, são        tradicionalmente usados pela Igreja Católica como forma de criar esferas        sonoras mágicas que envolvem seus rebanhos. A prática, nada discreta,        começou apenas quando o catolicismo tornou­se a religião oficial do Império        Romano. De fato, poucos anos separam o Édito de Tessalônica, do ano de 380 ­        no qual Teodósio I fez do Cristianismo a religião oficial do império ­ da adoção do        primeiro sino por Paulino de Nola, bispo de uma província napolitana, em 400        (ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 1878, p.536­7). 

 

Ao longo dos séculos, o envolvimento de toda a comunidade em uma bolha        acústica inescapável foi acumulando diversos sentidos: anunciar os horários de        reza; convocar a comunidade para a missa; anunciar tanto a morte de um        membro da comunidade quanto o início do respectivo serviço funerário; celebrar        um matrimônio, nascimento ou batizado, e até mesmo exorcizar demônios e        espíritos malignos. A construção das igrejas sempre nos locais mais altos do        povoado e a posterior alocação dos sinos em torres aumentou o alcance das        bolhas católicas de reverberação, segurança e conforto. Com a colonização       

européia na América, o potencial de englobar estes  seres sonoros dentro da              redoma do sino católico atingiu praticamente metade do planeta.  

 

Melhor seria dizer que, com a colonização, este potencial atingiu a  outra metade        do planeta. Os maiores e mais potentes sinos da história foram forjados no        Oriente, já que a congregação sonora por meio de sinos faz parte das práticas        de religiões orientais milenares como o Xintoísmo, o Budismo e o Taoísmo. O        maior sino de que se tem notícia foi forjado em Burma, atual Myanmar, no século        XVI. O Grande Sino de Dhammazedi, que pesava em torno de 300 toneladas e        media mais de 7 passos de largura (BALDI, 2003), foi perdido, segundo relatos        locais, em um naufrágio entre os rios Bago e Yangon, durante uma tentativa de        roubo por parte de invasores portugueses, que desejavam derretê­lo para        transformar seu metal em canhões (cujos tiros, por sua vez, criam também        congregações sonoras).  

 

No oeste da África, agogôs, sinos de pequeno porte, aparecem aos pares ou        trios, no candomblé das nações Bantu, Iorubá e Fon, iniciando os toques dos        orixás (MAURÍCIO; de OXALÁ, 2015, capítulo 20). Ao contrário do que acontece        na tradição católica, o candomblé desaconselha o toque de sinos com varas        (chamadas  aguidavi ) do mesmo material, pois o som de ferro percutido com        ferro desagrada Ogum, orixá ferreiro (ibidem). Mas, de forma semelhante, tanto        os agogôs do candomblé quanto os sinos católicos são marcos do início da        liturgia religiosa, que só pode existir dentro das esferas sonoras por eles criadas. 

 

O Grande Sino de Mengoon na Birmânia (atual Myanmar) pesa em torno de 100 t.   No Ocidente, o raio de escuta de um sino pode demarcar a área sob proteção real.   Moradores que escutam o sino de suas casas devem, para tanto, pagar tributos à nobreza. 

 

Outra esfera sonora de abrangência similar à dos sinos, embora muito distinta        em outros aspectos, é a formada pelas estações de rádio. Ainda nas primeiras        décadas do século XX, uma série de avanços tecnológicos transformaram o        rádio em um sistema sonoro barato, simples e de grande alcance. Tudo isso,        aliado ao caráter íntimo e confessional da voz humana, fez com que ondas        radiofônicas se espalhassem pelo mundo. Estimativas dão conta de que mais de        70% dos habitantes do planeta, 5 bilhões de pessoas, têm acesso a        transmissões das aproximadamente 44 mil estações de rádio ao redor do mundo        (UNESCO, 2013). Diferente da esfera sonora religiosa, criada pelos sons dos        sinos, as criadas pelas rádios variam muito em sua temática. No Paquistão, por        exemplo, 70% das transmissões em FM são dedicadas a música, 10%  talk        shows , 10% a propaganda e 5% a notícias (ibidem).  

 

Talvez ­ voltando ao exercício de formatos de mundo ­ a abrangência e        similaridade dos sinos católicos, budistas, xintoístas, taoístas e os do candomblé        sejam capazes de criar uma imensa e única esfera de sentidos ao redor do        planeta. Uma imagem certamente mais divina do que, convenhamos, a espuma        disforme, composta por um emaranhado de bolhas sobrepostas e de formatos e        sentidos variados, que o conjunto de estações de rádio pode nos oferecer.  

 

Nós, os  seres sonoros , nos abrigamos em esferas acústicas de proteção e            imunização desde antes do nascimento a até depois da morte. As esferas        produzidas por sons de marchas fúnebres, aplausos, sinos, sons de palavras        carinhosas ou de disparos de armas de fogo nos confortam, vivos e mortos, em        seus interiores. Excluindo, por um momento, as implicações cosmológicas da        Música das Esferas e das vibrações sub­atômicas da física quântica, podemos        assumir que a maioria das esferas criadas pelos sons do mundo tem caráter        temporário. Após o ataque sonoro, seu decaimento e posterior reverberação        tendem ao silêncio. Ainda assim, as esferas sonoras deixam marcas indeléveis.   

Se hoje o Grande Sino de Dhammazedi está perdido, submerso no leito entre os        rios Bago e Yangon, outro monumental centro metálico de esfera sonora segue        entre nós. Desenhada para ser facilmente desmontada junto com a maioria dos        equipamentos, pavilhões e edifícios da Exposição Universal de Paris, em 1889,        a Torre Eiffel foi poupada pois transformou­se em antena para as primeiras        transmissões de rádio da cidade (NOËL, 1996, p.146). Da mesma maneira,        diferentes centros esféricos criam­se, perdem­se e reaparecem no imaginário        afetivo dos  seres sonoros. O mais repetitivo refrão de canção pop que se quer            esquecer e a mais antiga voz familiar que se quer recordar fazem parte desse        emaranhado intermitente de esferas sonoras que circulam pelo espaço e que        surgem e se esvaem, alheias a nossa vontade. 

 

O radio.garden agrega, em tempo real, mais de 8 mil estações rádios ao redor do globo. 

 

As marcas, físicas ou abstratas, que as esferas sonoras deixam nos fazem        testemunhas  auditivas da história (SCHAFER, 1993, p.8). Esta forma de        testemunho é muito diferente do testemunho visual. No mundo visual, o        testemunho tem o peso do  ver com os próprios olhos , ao passo que no auditivo,                    tem a leveza do  ouvir dizer . O mundo testemunhado pela audição abraça, na                fugacidade do som, a incerteza, a estranheza, uma compreensão que ocorre        também pela não compreensão (BAIRON, 2005) frente à nota musical quase        afinada, ao som similar da palavra confundida, aos sinais misturados aos ruídos,        à entonação dúbia, ao sussuro, ao resmungo e ao silêncio que clama por        atenção. Assim, por ser auditiva, a história do ser sonoro é também estória. O        que houve se confunde com o que ouve (ROCHA, 2015). 

 

Essas nuances fazem com que o ato comunicativo baseado em som e escuta        engaje tanto o consciente quanto o inconsciente dos envolvidos. As mensagens        que o som da fala carrega vão muito além das que o falante deseja        conscientemente comunicar. Do outro lado, quem escuta deve lidar com a        recepção destas mesmas mensagens subliminares às do texto comunicado.        Atribuir sentido fica, portanto, a cargo da intenção de quem escuta (BARTHES,        1990). Por isso, o método psicanalítico é, por essência, um método de fala e       

escuta. Fosse importante somente aquilo que o paciente conscientemente        desejasse de fato compartilhar e não também aquilo que por acidente acaba        compartilhando, uma carta poderia ser mais eficaz (de preferência datilografada,        já que, segundo os grafologistas, a caligrafia pode revelar o inconsciente).        Chegamos, nesse ponto, a outra pergunta:  o quê estamos deixando de perceber                    em um mundo cujas imagens tendem a  abafar seus sons?  

 

Antes de tentar responder à pergunta, devo deixar claro que, por mais que esta        ode aos mundos sonoros deixe escapar um tom de melancolia, entendo as        vantagens da criação de mundos majoritariamente visuais. De fato, essa foi a        forma que, para o bem e para o mal encontramos, ao longo da História, de nos        tornarmos humanos. Que tempo, energia e concentração haveríamos de ter        investido  para  criar  as  abstrações  do mundo se tivéssemos sido          incessantemente interrompidos por cada estímulo ­ visual, auditivo, táctil,        gustativo ou olfativo ­ interno ou externo? Emancipar­se é, de certa forma, ter a        capacidade de não ser tocado por tudo o que nos cerca (SLOTERDIJK, 2011,        p.480). 

 

Talvez suprimir os sons do mundo natural, transformando­os em ruído de fundo,        tenha sido nossa forma de criar os espaços necessários para que pudéssemos        desenvolver nossa linguagem, cultura e técnica. Talvez ­ se vivêssemos em um        entorno no qual que tudo comunica ­ teria se tornado de maior valor o ato de        perceber os estímulos já naturalmente presentes, em detrimento da criação de        novos sentidos. Talvez daí venha a impressão, por parte dos habitantes das        metrópoles, de que a vida sertaneja ou indígena seja completamente monótona.        É comum a sensação, para os cidadãos urbanos, de que no  interior não          acontece nada.  Assim como é notório o fato de as pessoas  do mato serem mais                    caladas e silenciosas. 

 

Retomarei a pergunta acima de uma forma otimista:  o que temos a ganhar ao                    trazer à tona as audições de mundo? Vamos seguir por esta via, mais inclusiva,                  já que resgatar as audições de mundo não significa solapar nossas visões sobre       

ele. Significa sim criar espaço para ambas, mesmo que para isso seja preciso        sobrepô­las (efeito que neurologistas, em teoria, e psicodélicos, na prática,        chamam de  sinestesia ). 

 

Talvez melhor até do que falar em sinestesia ­ um conceito que parte do        pressuposto da separação dos sentidos ­ possamos falar de cooperação entre        os sentidos em busca de uma apreensão mais rica do mundo. Falamos então de        um corpo que  "não é uma coleção de órgãos adjacentes, mas um sistema em                            sinergia cujas funções são vinculadas umas às outras na ação geral de estar no                            mundo" (MERLEAU­PONTY, 2003, p.234). A passagem do tempo, uma        constante inevitável do estar no mundo, pode ser sentida e medida, por        exemplo, por uma combinação de percepções: a temperatura corporal, a fome, o        sono. A visão e a audição são geralmente os sentidos mais usados: seja        observando as sombras ou olhando para o relógio, seja ouvindo o galo cantar ou        o despertador tocar. Mas, para os Onge das Ilhas Andamão, na Baía de        Bengala, o passar do tempo pode ser percebido pelo olfato. Seus habitantes        nativos desenvolveram um  calendário olfativo baseado nos perfumes de flores e              plantas que nascem na ilha nas diferentes estações (HOWES, 2002, p.73). É por        meio deles que os Onge, que vivem de caça e coleta, sabem quais épocas são        mais proveitosas para buscar determinado alimento. 

 

Mesmo no resistente mundo das teorias da comunicação, o reconhecimento da        coexistência entre visões e audições de mundo, assim como as percepções de        outros sentidos, nos processos de criação de sentido vêm ganhando espaço. Na        teoria da  multimodalidade (KRESS, 2009) , modos são todas as formas possíveis        de comunicação (textos escritos, sons, desenhos, fala, imagens, atos, gestos,