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Mães falantes de idiomas tão diferentes entre si quanto o mandarim, inglês

Paisagens sonoras: silêncios, sons e sentidos 

Mães falantes de idiomas tão diferentes entre si quanto o mandarim, inglês

e alemão conversam com seus bebês de formas similares em melodia e entonação.   46

   

Entender que corpos são capazes de se comunicar tanto quanto cérebros é        fundir ambos em uma só estrutura cognitiva formada tanto por músculos e ossos        quanto por neurônios e nervos. Este entendimento elimina as fronteiras entre        racional e emocional e, com elas, as fronteiras entre cultura e natureza.  

 

Os debates sobre possíveis relações de precedência e dependência entre        natureza e cultura são dos mais antigos na busca humana por conhecimento. A        questão está posta, sob diferentes formas, nas diversas disciplinas do mundo        ocidental, da epistemologia à antropologia, da economia à sociologia. Grosso        modo, uma hipotética separação entre as duas categorias, feita pelo senso        comum,  colocaria  rios,  plantas,  animais  não­humanos  e fenômenos    meteorológicos dentro da categoria  natureza ; ao passo que os produtos da ação        humana, como a linguagem e a tecnologia, entrariam na categoria  cultura .        Dentro do segundo grupo entraria, sem muita oposição, a grande maioria das        46 EIBESFELDT, I ­ Human Ethology, 4.1 ­ Origens da Sociabilidade, 2007. 

definições sobre a música . Por mais que haja divergências entre suas funções      47        e, principalmente, em relação a quais delas formariam o cânone da  verdadeira        música , o senso comum aponta, diferente do que sugerem as pesquisas acima,        que a música é um produto da ação humana, e, portanto, faz parte da cultura.    

Não são apenas a neurociência, ciências cognitivas, psicologia comportamental,        antropologia, paleontologia e a biologia evolutiva que, como vimos, apontam        para origens musicais que fundem natureza e cultura. Há outro universo de        conhecimento, acumulado durante milhares de anos por inúmeros povos , que      48    sugere a eliminação das fronteiras. São narrativas que mostram que os        humanos criaram a música tanto quanto a música contribuiu para forjar a        humanidade. São, assim como as ciências formais, consensos formados a partir        de inúmeros choques de diferentes versões que, ao longo do tempo, foram        solidificando­se e formando conjuntos de histórias passados de geração em        geração. Falo dos mitos que contam o surgimento da música. 

 

Em Java, conta­se (ROBERTSON, 1960, p.77), o sistema de notas musicais tem        origem nos milenares sistemas de irrigação dos campos de arroz. Dispostas        horizontalmente, varas de bambu permitiam que a água corresse dos campos        superiores para os inferiores, inclinando­se em direção aos últimos ao correr        d'água. Caso o fluxo fosse interrompido, o bambu, como em uma gangorra,        retornaria ao centro, não sem antes bater na pedra e emitir um som de alerta ao        agricultor, avisando da interrupção. Na medida em que conjuntos de varas de        47Algumas definições foram listadas por Dahlhaus e Eggebrecht (2002, p.20): " a música é a ciência                              de bem modular (Santo Agostinho); a música é a arte de examinar com os sentidos e a razão as                                      diferenças dos sons graves e agudos (Boécio);  a música é o secreto exercício aritmético do                              espírito que a si não se sabe medir e rimar (Leibniz);  música... significa sobretudo a arte dos sons,                                    a saber, a ciência de cantar, tocar e compor  (Johann Gottfried Walther); música: arte de combinar                                os sons de um modo agradável ao ouvido (Rousseau);  a música é uma mulher. A natureza da                                  mulher é o amor: mas este amor é o amor que recebe e que no receber se dá sem reservas                                        (Richard Wagner);  formas sonoras em movimento são o único conteúdo e objecto da música                            (Eduard Hanslick);  a música é linguagem. Um homem quer expressar sentimentos nesta                        linguagem; não pensamentos que se deixam transpor para conceitos, mas pensamentos musicais                        (Anton Webern).". 

48 No passado, China, Índia, Babilônia, povos islâmicos, Grécia Antiga e sociedades da Idade                          Média cristã relacionavam elementos musicais específicos (notas, instrumentos, intervalos e        escalas) a elementos naturais como estações do ano, planetas, partes do corpo, humores,        doenças, animais e pontos cardeais (ROBERTSON, 1960; SACHS, 1943). 

bambu de diversos comprimentos e larguras emitem sons distintos para indicar        os locais de interrupções no fluxo de água, a técnica javanesa torna­se, também,        um instrumento musical, o  Taluktak ou  Bluntak (KUNST, 1968, p.58). Um        agricultor experiente poderia, escutando as melodias, saber quais de seus        campos estariam ou não sendo corretamente irrigados. 

 

Há neste mito a presença da natureza aliada à intervenção cultural humana e        resultando em música. Mas onde começa uma e termina outra? Qual delas        precede qual? Como definir, neste mito musical, quem é o compositor ou o        performer? O mito borra não apenas a distinção entre natureza e cultura como        mostra que a ideia de uma música isolada da vida, com lugar e hora de existir,        típica da Modernidade europeia, não é, nem foi, o padrão para muitos povos.    

Talvez, para os que desejam manter a divisão, fosse importante estabelecer        alguma ordem das coisas: se a função prática de saber qual arrozal não está        sendo irrigado veio antes, levando à criação de um alerta sonoro e, em        decorrência dele, a música; ou se o prazer estético das melodias foi o objetivo        inicial do instrumento que, por consequência, trouxe o benefício de poder        monitorar a irrigação do arrozal.  

 

Entre os seres sonoros chineses, os bambus também fazem parte das histórias        de origem da música, mas de uma forma na qual natureza e cultura aparecem        ainda mais intrincadas. Um antigo mito conta que o imperador Huang­Ti ,      49  ordenou a Ling Lun que criasse as notas musicais a partir de cortes de bambu.        Este foi aos pés da montanha Yiian Yii e cortou os bambus na exata altura em        que, soprados, emulariam o canto de um pássaro local. Ling cortou 6 bambus        imitando os cantos do macho e igual número para imitar os da fêmea, criando as        12 notas (SACHS, 2008, p.114). 

 

No caso chinês, o humano é responsável pela produção do instrumento musical        a partir do corte do bambu, mas quem define as notas musicais são os pássaros.        49 O Imperador Amarelo, que teria comandado a China há mais de 2 milênios antes do início da era cristã. 

No mito javanês, quem toca o instrumento é a água. Não faltam exemplos nos        quais a música surge pronta da natureza, cabendo aos humanos apenas        escutá­la e imitá­la. Entre os nhambiquaras, o não­humano é não só o diapasão        como também o instrumentista: estes costumam escutar as melodias produzidas        pelo vento soprando no bambuzal e as imitar com suas flautas.  50

 

Mas ­ poderão dizer alguns dos que insistem em separar as categorias ­ o que      51        divide a humanidade dos outros animais não é apenas a habilidade de gerar        conhecimento ou produzir sentido, mas sim seu potencial de transmiti­lo a        gerações futuras. Esta capacidade de perpetuar conhecimento, ensinar e        aprender com outras culturas não é, responderão muitos povos, exclusividade        humana. É o que revelam outros mitos de origem da música lidos à luz da teoria        antropológica de maior impacto das últimas décadas: o perspectivismo        ameríndio.      Baleias­da­Groenlândia cantam canções diferentes para cada estação do ano. Em 3 anos   de monitoramento, já foram identificadas 184 canções distintas. (STATTORD, 2018)     

50 Como contou Marlui Miranda, cantora, compositora e pesquisadora da música ameríndia em encontro                          durante o curso " Elementos para a escuta, descrição e análise de músicas indígenas ", coordenado pelo                              Prof. Dr. Pedro Paulo Salles, no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da        Universidade de São Paulo, em Maio de 2017.  

Proposto por Viveiros de Castro, o perspectivismo ameríndio pode ser definido        como a “ concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o                          mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e                        não humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos " (CASTRO,                      1996). Ao conceder aos sujeitos não humanos a qualidade de pessoa, a        concepção ameríndia confere também o potencial de criação e transmissão de        cultura e, com ele, a possibilidade da criação musical.  

 

A música dos seres sonoros não­humanos é, para uma série de povos, inclusive        anterior à música humana. O mito Waurá (também contado entre os Kamayurá)        sobre  Os pescadores que foram ao céu (AGOSTINHO, 2009, p.66) conta a                  história de dois homens que, ao pescar durante a noite, encontraram uma onça        pintada. Durante o encontro, Ìwakakape (a Via Láctea) desce a sua ponta e a        funde com o rio, formando uma rampa. Os Waurá ­ sem se dar conta que o        caminho pela água era, na verdade, a ponta da Ìwakakape ­ seguem a onça até        ficarem presos no céu. Lá, um dos pescadores encontra seu filho que havia        morrido pequeno, há muito tempo. Ficaram por lá muitos dias, aprendendo a        cantar e dançar, até que o menino, agora um jovem adulto, foi pedir ao urubu        que levasse seu pai de volta à aldeia, pois este tinha saudade de sua esposa.        No dia seguinte, após serem pintados com jenipapo e alimentados com peixe        podre (para tornarem­se semelhantes aos urubus), o pai e seu amigo foram        levados de volta à aldeia. Lá ­ termina a história ­ ambos ensinaram os cantos e        danças aos outros homens da tribo. 

 

O mito é corroborado pela explicação Kisedjê, também habitantes do Xingu,        sobre a origem  de seus cantos. Seeger (2015) traduz:  52

 

As pessoas que perdiam seus espíritos só podiam ensinar ou executar        cantos que conseguissem ouvir. Uma pessoa cujo espírito estivesse com        as abelhas só poderia ensinar cantos de abelhas; alguém cujo espírito        estivesse com os pássaros, só cantos de pássaros; e assim com peixes,        plantas e outras possibilidades. Cada espécie de animal ou planta tinha       

52 Excluindo­se cantos os aprendidos atualmente com outros grupos humanos e os anteriores                        ao mundo Kisedjê, estes de uma era em que ainda não havia distinção entre homens e        animais. 

sua própria linguagem, e costumava cantar a respeito de si mesma.        (p.122) 

 

O perspectivismo, a noção de que os não­humanos também são capazes de        criar o que se convencionou chamar de cultura, aparece nos mitos originários da        música até em culturas que pouco têm em comum com o perspectivismo        ameríndio, como é o caso do mundo católico: 

 

[São Gregório] encarregou­se de reunir todas as belas melodias usadas        na Igreja desde os tempos dos Apóstolos, colocando­as em ordem e        escrevendo novas quando fosse necessário... as melodias que São        Gregório reuniu eram de uma beleza tão divina (...) que as pessoas        acreditavam terem sido ditadas pelo Espírito Santo. De fato, João, o        Diácono, secretário do papa, afirmou tê­lo visto trabalhando com uma        pomba em seu ombro. É por isso que muitas vezes vemos São Gregório        representado como ditando as melodias a João, enquanto o Espírito        Santo, na forma de uma pomba, sussurra­as no ouvido do Santo.        (WARD, 1923, p.2, tradução minha). 

 

Pode­se discutir até que ponto o mito sobre a origem dos cantos na liturgia        católica é, de fato, perspectivista como os dos ameríndios. Alguns historiadores        falam apenas em inspiração divina por meio da presença da pomba (GROUT;        PALISCA, 1980, p.21), o que poderia ser apenas uma metáfora para a presença        do espírito santo. Outros contam que João, o Diácono, secretário de Gregório,        afirmou ter transcrito as melodias por eles ditadas, mas que estas eram antes        sussurradas pela pomba diretamente no ouvido do Santo. Esta versão teria sido        amplamente aceita pelos grupos católicos europeus até o século XVII        (ROBERTSON, 1960, p.150). 

  

Ainda que consideremos somente a versão que narra a presença da pomba        como metáfora da inspiração divina e não como criadora de fato das melodias, a        dificuldade em aceitá­la como perspectivista talvez venha do estranhamento em        ter um mito católico sendo explicado por uma teoria ameríndia. Na versão  menos        perspectivista, ainda assim temos uma ave inspirando a criação musical que        depois será transmitida aos demais membros do grupo. A diferença entre o mito        católico e o mito Waurá está essencialmente na forma de transmissão: enquanto        os Waurá voltam à aldeia e, à moda ameríndia, ensinam oralmente as novas       

músicas ao grupo, o papa Gregório, à moda europeia, edita o antifonário        gregoriano, um livro impresso contendo as novas melodias.      Pomba ensinando os cantos gregorianos ao Papa Gregório: perspectivismo católico.   

O perspectivismo é uma teoria de pontos de vista (em nosso caso, pontos de        escuta). No limite, não existem fatos ou fenômenos, mas sim visões e audições        sobre eles, partindo das diferentes perspectivas em jogo . Nos diferentes mitos      53        de surgimento musical, incluindo os contados pela ciência, há sempre a figura do       

outro :  animais, mansos ou ferozes; humanos, aliados ou inimigos e fenômenos        da natureza. É sempre na interação entre nós e este  outro  que a música surge.                Por ser sempre concebida aos pares, a música não pode ser um objeto, mas        sempre uma relação.   54

 

53  " Será sujeito aquele que vier ao ponto de vista, ou sobretudo aquele que se instalar no                                ponto de vista ” (DELEUZE, 1991, p.36).  

54 Neste ponto se unem o perspectivismo de VIveiros de Castro e a Esfereologia de Sloterdijk,  ambas rearranjando as categorias aristotélicas, baseadas na substância, e as substituindo por  uma ontologia relacional. 

A música é baseada nas relações de união e confluência entre o instrumentista e        o instrumento, entre quem canta e quem ouve, entre as notas musicais, entre as        vozes participantes, entre o espaço e o tempo, entre os corpos dançantes, entre        as moléculas de ar que transmitem a onda sonora, entre a mensagem desejada        e a convenção sonora que a representa. É também baseada nas relações de        separação e divisão, as que apartam o ruído do sinal, o barulho da mensagem, o        som do silêncio, a afinação da desafinação, a  figura  sonora de seu fundo. 

 

Como a música só surge e avança no tempo, as relações que a criam são        sempre baseadas na repetição de seus elementos, suas melodias, frases e        ritmos. Este último, o ritmo, é o elemento constitutivo primordial da música. Das        formas mais abstratas até as mais concretas, do sentido técnico ao comum,        ritmo e música não se dividem. O ritmo está nos períodos da onda sonora; está        na pulsação cardíaca, na respiração e nos movimentos do corpo; está na        percepção de velocidade com que a música caminha (não à toa, conhecido        como 'andamento'); está até mesmo presente na altura de cada nota musical .  55  

Por meio do ritmo podemos entender a música como uma relação, uma        negociação entre passado e futuro, na qual o mediador é o próprio ritmo. Ele é o        negociador entre a memória do compasso escutado e a expectativa do        compasso futuro. Mas não é apenas a relação entre passado e futuro que o        ritmo estabelece. Ele também apresenta, a cada novo pulso, a relação entre  eu        e o  outro ,  identidade  e  diferença . 

 

Há uma distinção essencial entre a maioria das matrizes rítmicas europeias e as        africanas que se espalha para muito além da música em si. As repetições        rítmicas da europa centro­ocidental são padrões que criam, reconhecem e        premiam a  identidade , o comum, o já conhecido . Já os ritmos africanos aceitam      56       

55 " A partir de um certo limiar de frequência (...), o ritmo "vira" melodia'.  (WISNIK, 1999, p.20).  56 Não há delimitação geográfica precisa para esta afirmação. De forma geral, quanto mais                          periférica é a cultura musical (alguns dirão  exótica ), menos sua rítmica premiará o conhecido.        Ritmos de culturas musicais de países como Israel, Hungria, Bulgária, Grécia, Turquia e a        Andaluzia espanhola têm, ainda que localizados na Europa, forte influência das rítmicas        africanas e/ou asiáticas.  

também a produção de uma  diferença,  uma novidade, ou seja, a  produção do                  outro . Esta distinção essencial que aqui exploraremos no ritmo de cada grande57        matriz cultural desdobra­se, como não poderia deixar de ser, também em outras        frentes como a religião e os costumes. Vou explorá­la, com uma pequena dose        de teoria musical, como mais um exemplo da relação criadora entre humano e        música, na qual ambos criam e são criados. 

 

Qualquer partitura de concerto, sinfonia ou outra peça tradicional da música        eurocêntrica mostra, antes de qualquer nota musical, uma indicação da divisão        rítmica, a grade na qual serão distribuídas as notas da melodia e do ritmo. Esta        grade pode ser binária, ternária ou quaternária, formando compassos de 2, 3 ou        4 células. Na música eurocêntrica, cada célula do compasso (conhecida como       

tempo ) pode ter intensidade forte ou fraca, e ambas se sucedem em alternância        no decorrer da música. A grade padrão de um compasso binário (de 2 tempos)        é: 

   

Tempo  1  2  1  2  1... 

Intensidade  FORTE  fraca  FORTE  fraca  FORTE... 

 

A distribuição de intensidade no ritmo ternário, o ritmo da valsa, segue o mesmo        padrão: tempo 1 (forte), tempo 2 (fraco) e tempo 3 (fraco), recomeçando com um        tempo forte. Sobre esta grade, as notas da música serão colocadas. Na música        eurocêntrica, o acento musical (ou seja, as notas de maior força) costumam ser        distribuídas nos tempos fortes do compasso. Um jeito fácil de escutar o acento        de uma melodia é buscar a sílaba tônica das palavras cantadas. Vejamos um      58      exemplo do hino nacional brasileiro, em ritmo quaternário:  57Foi o tema da fala de José Miguel Wisnik no seminário 'Sincopação do mundo: dinâmicas da  música e da cultura', realizado na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (USP), em  14/08/2015. A explicação que dou é, pela restrição imposta pelo texto escrito, extremamente  simplificada. A fala completa de Wisnik está disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=OXoxbCT01DU   58 O princípio de acentuação vale não apenas para palavras cantadas: melodias instrumentais   e ritmos também têm acento.  

 

Tempo  4  1  2  3  4  1... 

Intensidade  fraca  FORTE  fraca  FORTE  fraca  FORTE... 

Letra  

(acento melódico) 

 

   Ou…     vi …  ram    do    Ipi…  ran …    ga   às margens       plá ...   

Esta coincidência entre o acento e os tempos fortes do compasso é, assim como        para grande parte das sinfonias e concertos, a regra entre os hinos nacionais. A        essa característica, compartilhada pela maioria das obras do repertório europeu        tradicional, dá­se o nome de  cometricidade . A cometricidade do ritmo é a        qualidade que confere ordem à música. A cada começo de compasso, seja ele        binário, ternário ou quaternário, quando o tempo 1 retorna com força, está        (re)estabelecida a identidade, a unidade, a ordem. 

 

Algumas matrizes rítmicas africanas, por outro lado, propõe fusões entre ritmos        cométricos e contramétricos (PEÑALOSA, 2009, capítulo 4), ou seja, nela, os        tempos fortes do compasso não necessariamente coincidem com o acento        melódico. A cometricidade, regra nas matrizes rítmicas centro­europeias,        aparece também em ritmos africanos. Mas, o inverso ­ ritmos contramétricos        serem difundidos na cultura musical europeia ­ é mais difícil de ocorrer.  

 

Não irei me arriscar em uma tentativa de reduzir a matriz rítmica africana a        tabelas por dois motivos: primeiro, a tentativa acima, com o modelo rítmico        europeu, já é uma redução. Em segundo lugar, a lógica das rítmicas musicais        africanas não é facilmente compatível, como é a centro­europeia, com formas        visuais de representação. Para melhor explorá­las seria necessário substituir a        matriz cognitiva visual a qual estamos acostumados (e que permite, por        exemplo, criar uma grade com tempos e intensidades rítmicas) por uma matriz        áudiotátil (CAPORALETTI, 2018). 

Reproduzir a tal matriz áudiotátil aqui seria outro problema: a palavra escrita, por        mais que se possa lutar contra, é muda e sem textura. Uma saída para nos        aproximarmos de uma tradução interessante é voltar­se para os conjuntos de        instrumentos usados para dar voz às distintas lógicas rítmicas. Do lado        eurocêntrico temos a bateria, principal instrumento de percussão do século XX        dentro dessa tradição musical.  

 

A bateria evolui a partir de uma redução, principalmente por motivos logísticos e        econômicos, das peças de percussão de concertos e bandas marciais europeus        (HARTIGAN, 1995). Na década de 1890, quando foi concebida, a bateria era        formada por um bumbo e uma caixa, as demais peças e acessórios, como        pratos e sinos, foram sendo incorporadas ao longo das décadas seguintes.   

A bateria é, grosso modo, um instrumento que surgiu para produzir duas notas:        uma grave, no bumbo, outra aguda, na caixa. O som grave é o que parece        causar maior impacto em nosso corpo, sabemos disso ao sentir os graves nos        abraçando, fazendo todo o corpo ressoar. Pesquisas recentes envolvendo        mapeamento da atividade cerebral via eletroencefalograma apontaram a        existência de um mecanismo neurofisiológico no cérebro que aumenta a        atividade neural em resposta aos ritmos criados por sons graves em        comparação aos criados por sons agudos (LENC; et al, 2018). 

 

O bumbo é, então, naturalmente o mais indicado para marcar os tempos fortes.        A caixa, mais aguda, marca os tempos fracos. Assim, nas matrizes rítmicas        eurocêntricas, temos uma alternância entre as duas peças, respeitando a grade        (aqui em ritmo quaternário): 

   

Tempo  1  2  3  4  1... 

Intensidade  FORTE  fraca  FORTE  fraca  FORTE... 

Na tradição eurocêntrica é uma dupla de tambores que, ao serem tocados        alternadamente, criam o alicerce rítmico binário sobre o qual a música existirá.        Já em muitas matrizes rítmicas de origem africana é uma trinca de instrumentos        que, combinando ritmos cométricos e contramétricos,  desestabiliza e  confunde      59  a ordem dual. No samba, por exemplo, há 3 tambores responsáveis pela        fundação rítmica: os surdos de marcação (mais grave), de resposta e o cortador        (mais agudo). São chamados também de surdo de 1ª, 2ª e 3ª. Enquanto o        primeiro, mais grave, marca o tempo forte, o segundo a ele responde. O        cortador, ou surdo de 3ª, é o que flutua entre ambos, improvisando e        desestabilizando a ordem. 

 

Similar ao samba, a capoeira tem também 3 instrumentos responsáveis pela        marcação dos ritmos, mas, neste caso, não são tambores. A fundação rítmica é        dada pelos berimbaus viola, médio e berra­boi. O berra­boi, por ter a maior