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Capa da partitura de Te voglio bene assaje , 1º lugar no Festival de Piedigrotta de 1835

As músicas das cidades 115

Capa da partitura de Te voglio bene assaje , 1º lugar no Festival de Piedigrotta de 1835

Antes do surgimento das vitrolas, a partitura era o principal produto comercial da canção.  

   

Se Nápoles foi marco no estabelecimento da canção popular como parte de um       

sistema econômico de entretenimento, foi na Paris do século XIX que o público       

parte desse sistema finalmente se consolidou. As bases para tal solidificação,       

como toda a história a canção popular moderna, remontam à baixa Idade Média.     A tradição francesa em apreciar canções remonta aos romances de cavalaria,       

nos quais as narrativas épicas sobre feitos heróicos de honrados cavaleiros       

desenrolavam­se em versos. No século XVI, o romance de cavalaria       

desdobrou­se em novas formas literárias e, na França, espalhou­se por entre a       

nobreza também sob a forma da canção cortesã, com versos transformados em       

estrofes musicadas. Essa forma, que já incluía temas satíricos, burlescos e,       

principalmente, românticos, era conhecida também como  voix de ville , ou voz da                 

cidade (BROOKS, 2006, p.65­6).     O etnomusicólogo Julien Tiersot, em sua história da canção popular francesa de       

1889, reuniu sob o termo  chanson populaire tanto as canções cortesãs quantos             

as canções populares das ruas, conhecidas " no século XVI como  voix de ville ou                     

vaudeville" (TIERSOT, 1889, p.450). Pesquisas mais recentes apresentam como       

dúbia a origem do termo  vaudeville , pois sua etimologia mesclaria dois gêneros       

diferentes: o  vau de vire (canções provincianas da Normandia) e o  voix de ville                   

(canções urbanas cortesãs de Paris) (ALDEN, 2008, p.64­5). Independente das       

características que aproximavam ou distinguiam essas formas iniciais, foi no       

ambiente urbano parisiense do século XIX que elas seriam sintetizadas para       

formar a canção popular moderna de caráter francês.    A versão francesa da canção popular lançou as bases do que viria a ser       

posteriormente o teatro de  vaudeville , gênero de entretenimento típico da       

burguesia, elemento­chave da cultura de entretenimento de massa instalada na       

capital francesa. No  vaudeville,  uma narrativa central, geralmente uma comédia             

sobre o cotidiano, era entremeada por canções, números de dança e outros atos       

conhecidos como  variedades . O espaço do  vaudeville,  por definição,  era o                teatro. 

 

O caso parisiense interessa menos pelas características da canção em si e mais       

pelo ambiente social do qual ela emerge. Foram particularmente decisivos o       

grande abismo econômico entre as classes e o latente choque entre a multidão e       

o indivíduo, gradativamente instalado na cidade durante o século XIX .  126   Os parisienses da época viviam equilibrando­se entre o anseio das identidades       

individuais e o anonimato imposto por uma metrópole industrial de mais de 600       

mil habitantes. Por um lado, os princípios revolucionários de liberdade, igualdade       

e fraternidade haviam, no final do século anterior, despertado a busca por       

afirmação individual. Por outro, esse desejo era reprimido pela sensação de       

pequenez frente às multidões nas ruas e pela opressão do trabalho massificante       

nas fábricas.    A disparidade econômica e as rápidas variações do contexto sociocultural       

davam a tom na Cidade­Luz. A Paris das grandes galerias, largas calçadas,       

magazines de moda e comodidades urbanas viveu um breve período de paz e       

otimismo entre o final do XIX e o início do XX, a  Belle Époque.  Mas era a mesma                 

Paris que, na metade do XIX, abrigava multidões de operários em bairros       

insalubres como os descritos por Victor Hugo, em  Os Miseráveis  (1862) .  As             

revoluções francesas de julho de 1830 e de fevereiro de 1848 (essa, estopim da       

Primavera dos Povos) foram fortalecidas pelas reivindicações do proletariado,       

uma " população fervilhante e furtiva que Paris deixa viver nos becos pavorosos,                       

dissimulando­a bem atrás dos museus e dos palácios " (JANIN, 1843 apud                     

BRESCIANI, 1982, p.13).    Nesse contexto, o entretenimento do  vaudeville (bem como as formas       

subsequentes de teatro musicado, como o teatro de  boulevard ) mostrou­se, ao       

mesmo tempo, válvula de escape e ponte entre distintas realidades, crescendo       

126   A Revolução Industrial, nascida na Inglaterra, instalou­se na França de forma gradual entre                       

1815 e 1860 (LÉVY­LEBOYER; BOURGUIGNON, 2008). Outro fator crucial para determinar o       

abismo socioeconômico entre os parisienses foi a reforma urbana levada à cabo por        Haussmann, entre 1853 e 1870. 

como produto cultural atrelado a novas formas de representação social. O       

relaxamento das tensões cotidianas acontecia com a      ajuda das narrativas     

romântico­sexuais e da sátira aos costumes, temas centrais do  vaudeville .     Além disso, muitas das histórias orbitavam temas caros às aspirações sociais do       

público burguês, como o consumo (de roupas, charutos, sapatos e perfumes), a       

vida de aparências e os eventos sociais (bailes, salões e jantares). Não à toa, os       

finais felizes das peças de teatro musicado " quase sempre representavam a             

vitória do (...) excesso " (TENI, 2006, p.242­3). Era o estilo  vaudeville ostentação               

que, desde o século XIX, parece amortizar os sentimentos causados pelos       

abismos sociais.    É também da Paris urbana da segunda metade do século XIX a figura do  flâneur,       

o homem que vagueia pelas ruas em busca de prazer. Como funkeiros e MCs       

fazem hoje em seus carros, o  flâneur  perambula entre os boulevards e galerias,             

passeia lentamente pelos parques e aprecia as vitrines dos magazines.       

Transitar, ver e ser visto, é sua forma de  resistir à h omegeneização imposta pela       

cidade, destacando­se da massa proletária. Essa figura, descrita pela poesia de       

Baudelaire, é o símbolo do indivíduo que busca entretenimento desapegado e       

inspiração naquilo que a modernidade transformou em produto. Ele é, portanto,       

o ouvinte perfeito para a canção popular moderna.    Paris é responsável não apenas pela consolidação do público da canção, mas       

também pela criação das formas modernas de consumo de entretenimento. As       

práticas de recepção musical parisienses não diziam respeito somente ao       

momento da performance. Estavam condicionadas a uma rede formada por       

linhas de transportes, estabelecimentos e peças de mídia.     Tudo estava conectado: as linhas de bondes, inauguradas em 1855, expandem       

os núcleos sociais dos quarteirões para os bairros e dos bairros para as zonas       

periféricas, permitindo ao público explorar a diversidade de opções de       

cafés, salões, teatros e restaurantes que, interligados por galerias e boulevards,       

eram visitados por toda sorte de público. Jornais, cartazes, folhetins e       

caricaturas, ao divulgar as atrações nas ruas e passeios, completam a trama       

sobre a qual a vida urbana flui:    Para o flâneur perfeito, para o espectador apaixonado, é uma imensa                     

alegria fazer seu lar no coração da multidão, no vai e vem do movimento,                           

entre o fugitivo e o infinito. Estar longe de casa e, ainda assim, sentir­se                           

em casa em qualquer lugar; ver o mundo, estar no centro do mundo e,                           

ao mesmo tempo, manter­se escondido dele.  (BAUDELAIRE, 1995, p.9,                 

tradução minha)    O teatro musicado com origem no  vaudeville é nó central da rede urbana sobre a       

qual seres sonoros, adeptos ou não da  flânerie,  constroem sua per sonalidade e,               

fluindo pela cidade, dialogam com o entorno. No teatro, o parisiense ovaciona       

membros de seus grupos de pertencimento; caçoa dos demais para distinguir­se       

; maldiz para reconfortar­se; aspira novas posições e refuta antigas. O       

127 vaudeville , ao encenar o cotidiano de seu público, faz com que o espectador veja        a si me smo  no palco podendo, assim, redefinir­se à medida em que se observa.        Fachada do Moulin Rouge, em quadro de Galien­Laloue. O cabaré mais famoso do boêmio  bairro parisiense de Montmartre foi inaugurado em 1889, em plena  Belle Époque.  127 A Distinção, de Pierre Bourdieu (2007), é centrada nas práticas de consumo dos parisienses.  

Até aqui, abordei neste capítulo as três cidades de maneira isolada: Lisboa ­ no       

intercâmbio com o Rio de Janeiro ­ como capital de um império que reuniu       

diferentes linguagens musicais para se tornar pioneira da canção popular       

moderna; Nápoles, como exemplo da emergência do mercado dos espetáculos e       

entretenimento, na esteira da tradição musical que existe na cidade desde antes       

da Era Moderna; Paris, como cidade berço do homem moderno, criador e       

público da canção urbana.    É importante assinalar que, como já é de praxe nesta tese, apesar das cenas       

musicais de cada metrópole terem sido discutidas separadamente e por ângulos       

distintos, houve nelas uma coexistência simultânea dos aspectos que aqui expus       

separadamente. Assim, o estabelecimento de um mercado de entretenimento       

não foi exclusividade de Nápoles, ocorreu também em Lisboa e Paris. Da       

mesma maneira, Nápoles e Lisboa, como Paris, foram todas  habitat do homem       

moderno. Por fim, além de Lisboa, Nápoles e Paris também foram palco da       

mescla de culturas musicais distintas.    Como vimos, as rigorosas mudanças nas formas de vida das populações       

europeias afetaram os modos de produção, os locais do habitar, as formas de       

relacionamento social, as crenças, as noções de estranhamento e familiaridade,       

os costumes e a cultura alterando, assim, todos o entendimento prévio do  existir.       

Os contemporâneos dessas épocas viram, acima de tudo, uma rápida expansão       

de sentidos, em poucos séculos, novos e maiores mundos se abriram nos       

horizontes das populações europeias.    Essa expansão foi levada à cabo por movimentos que, independentemente de       

sua natureza e características, mostraram­se muitas vezes antagônicos ou       

social em direções opostas, alargando a pequena bolha que antes abrigava a       

vida cotidiana, transformando­a em um grande globo.  128   O nascimento da ideia de inspiração artística, mas também o rigor do       

cientificismo; o colonialismo e imperialismo, mas também o humanismo e o       

Iluminismo; a expansão marítima e as conquistas territoriais, mas também a       

concentração urbana; o telescópio e o microscópio, como novas formas de       

explorar distâncias e proximidades; a reforma católica, a contra reforma, o       

ateísmo o agnosticismo; os grandes projetos arquitetônicos, catedrais e palácios,       

e a sala de estar burguesa; o surgimento da subjetividade individual e a cultura       

de massa; o artista e o operário; o indivíduo e da multidão.    Ao cruzar as respectivas fronteiras anteriores, os fenômenos acima criaram uma       

grande expansão de sentidos que passou a englobar, nas metrópoles, o que       

antes estava fora da bolha, outras culturas, línguas e práticas musicais.       

Componentes de " experiências e realidades antes consideradas separadas               

foram absorvidas em uma expansão acelerada de códigos e imagens urbanas"                     

(CHAMBERS, 1985, p.176) . Ao fazer isso, essa nova esfera alargada deu       

condições para que o ser moderno inventasse, inspirado pelo novo que veio de       

fora, o novo para si próprio, o  novo do novo .     Este ensaio é uma narrativa de como, naquele momento, o novo se apresentou       

em forma de música. Aqui, as canções do sé culo XVI são chamadas de  novas       

novidades  (TINHORÃO, 2011, p.25), as do XVIII,  modas novas  ou  modinhas               

(ibidem, p.142 e 162). Não à toa,  moda já significava tanto uma canção quanto       

uma nova nova tendência de consumo. E, ao uní­las, a canção popular moderna       

fundiu tradição e modernidade em forma musical.    128 As grandes cidades, os impérios e os sistemas de crença em grande escala, como religiões,                             

e a ciência, são os principais temas tratados por Sloterdijk para tratar da transição entre        pequenas  Bolhas  (2011, 2016) para grandes  Globos  (2014b). 

Lisboa, Nápoles e Paris reuniram, à sua maneira e tempo, as condições que       

levariam ao surgimento e à consolidação da canção popular moderna: a       

sobreposição e multiplicidade de sentidos; a efervescência e pluralidade cultural;       

o vigor econômico; o equilíbrio entre anonimato e protagonismo; as tensões       

sociais e a consequente demanda por seu relaxamento. As três cidades       

contribuíram com o florescimento de uma expressão musical hoje predominante       

no Ocidente, seja no  son  cubano, na MPB brasileira, no  folk  norteamericano, no                     

cantautore  italiano, na  chanson  francesa ou no reggae jamaicano.     Os eventos e reflexões aqui narrados fazem parte de um processo maior, que se       

ocupa não somente das relações entre os seres sonoros mediadas pela música.       

Esse processo representa também a transição entre as formas centralizadoras       

de produção de sentido e as culturas populares modernas, que se apresenta de       

duas maneiras:    primeiro como um mercado de alta literatura, novelas e novidades, nas                     

quais as mensagens estão focadas no receptor ao invés do emissor,                     

para atender a expectativa do público por entretenimento e edificação; e                     

também, como um mercado do gênio (...). (SLOTERDIJK, 2014b,                 

p.750­1)     A canção popular moderna representa, portanto, um sistema de transferência de       

motivações individuais que se retroalimenta e é projetado em larga escala na       

sociedade. Ao entrar nos teatros parisienses, cafés­cantantes napolitanos e       

casarões e pagodes lisboenses e cariocas, os seres sonoros modernos       

encontraram um lugar para cultivar sua recém­adquirida individualidade.     Este mesmo lugar inspira autores (em seu recém­adquirido status de  artistas )       

para criar canções e xpre ssando sua identidade e, consequentemente, para       

servirem à massa (agora rebatizada de  plateia ). Plateia e público compartilham a       

mesma esfera em um movimento cíclico de retroalimentação que eleva autores       

e público de forma proporcional. É na força deste espiral que irão surgir       

beatlemania , mais de um século depois, assim como todas as demais versões       

contemporâneas de catarses coletivas centradas em artistas pop.    " O homem privado pisa o palco da história ", metáfora de Walter Benjamin (1991,                   

p.37) sobre a ascensão do indivíduo no século XIX, alcança, no caso da canção,       

também quem está diante do palco: a plateia. No surgimento dessa forma       

especial da canção, palco e plateia são protagonistas, seja expressando a       

subjetividade individual através canção composta, seja criando identidade ao       

entreter­se por meio de seu consumo. A canção popular moderna nasce, assim,       

como uma esfera de definição e amplificação do ser sonoro em um mundo        urbano em constante expansão.      A Rotunda de Ranelagh sediou grandes eventos musicais londrinos no século XVIII.   O público era aquecido pela fogueira ao centro, e entretido pelo grande órgão, à esquerda.  ________________________________________________________________