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2 A ESCRITA, PODER E SOCIEDADE

2.3 Escrita

2.3.4 Alfabetização e Letramento

Muito discutimos sobre a relação da sociedade com o código em que se comunica. Até aqui percebemos como é importante considerar aspectos sociais no tratamento dado à língua portuguesa, principalmente na sala de aula e como é indispensável a apropriação da variação padrão por questões políticas e econômicas. Porém, o ensino de língua portuguesa precisa tomar para si essa dimensão social e de interação que envolve a língua.

Nossa experiência, enquanto professores de escola pública, permite-nos afirmar que nossos alunos apresentam profundos problemas com oralidade, leitura e escrita, quando expostos a situações de uso formal dessas modalidades. Mas que problemas são esses? Será que podemos considerar que, o simples fato de os alunos não se adequarem à rigidez da variação padrão apontada na Norma Gramatical Brasileira (NGB), eles têm algum problema de comunicação? Não seria essa uma visão preconceituosa?

Defendemos a ideia de que é necessário para nossos alunos a apreensão do uso efetivo da leitura e da escrita, através da alfabetização, pois isso faz a diferença na sua ascensão social, já que a utilização da língua escrita e oral padrão é historicamente considerada a mais prestigiada na sociedade brasileira, como refletem Bortoni-Ricardo e Oliveira (2009). Mas saber ler e escrever é mais um problema de alfabetização do que de letramento, e à escola cabe não só o papel de alfabetizar, mas também de desenvolver no aluno várias habilidades, entre elas a capacidade de ler e escrever para atingir diferentes objetivos, como afirma Soares em Ribeiro (2004):

33 Na concepção psicogenética de alfabetização que vigora atualmente, a tecnologia da escrita é aprendida não, como em concepções anteriores, com textos construídos artificialmente para aquisição das “técnicas de leitura e de escrita, mas através de atividades de letramento, isto é, de leitura e produção de textos reais, de práticas sociais de leitura e de escrita. (RIBEIRO, 2004)

Entendemos então, a partir dessa colocação, que, embora haja uma relação entre alfabetização e letramento, as duas concepções se diferem. Tomemos aqui o conceito de alfabetização – embora de grande complexidade social, cultural e política – como um

“processo de aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e escrita”, como afirma

Soares (2013, p. 13). Sendo assim, uma vez apreendido o código da língua e suas relações, o indivíduo está alfabetizado. A partir dessa concepção podemos classificar o indivíduo como alfabetizado e analfabeto. Saber ler e escrever é ter posse de uma tecnologia. O letramento, por sua vez, não tem um critério objetivo ou um produto final que torne um indivíduo letrado ou iletrado. Não depende unicamente e saber ler e escrever pelo domínio de um código, embora a alfabetização seja uma habilidade importantíssima para o letramento:

Do processo de alfabetização pode-se esperar que resulte, ao fim de determinado tempo de aprendizagem, em geral pré-fixado, um “produto” que se pode reconhecer, cuja aquisição, ou não, atesta ou nega a eficiência do processo de escolarização; ao contrário, o processo de letramento jamais chega a um “produto” final, é sempre e permanentemente um “processo”, e não há como decidir em que ponto do processo se torna letrado ou iletrado.” (RIBEIRO, 2004)

Na colocação acima, de Soares, em Ribeiro (2004), fica claro que letramento é um processo, sendo assim, pode-se afirmar, então, que esse processo pode ocorrer em qualquer momento de qualquer série, em se tratando de nível escolar. Soares ainda, na mesma referência, afirma que são obscuras e imprecisas as relações entre letramento e escolarização, mas é necessário caracterizar através de pesquisas o letramento escolar e o letramento social, pois ambos pertencem ao mesmo processo social, considerando, ainda, que a escolarização habilita os indivíduos participarem de experiências sociais e culturais no contexto social extraescolar.

Não dá para se referir a letramento sem antes distinguir Modelo Autônomo de Letramento de Modelo Ideológico de Letramento. No Modelo Autônomo têm-se a abordagem da leitura e escrita são descontextualizadas, não consideram as práticas sociais em que ocorre esse processo, de acordo com Magalhães (2012) que firma ainda:

34 descontextualizada. Essa tradição de estudos tem longa história e ainda é forte no Brasil, apoiando-se principalmente em contribuições influenciadas por três áreas, a saber: a linguística estruturalista-gerativista, O Modelo Autônomo de Letramento (veja a seguir) e a pedagogia tradicional. (MAGALHÃES, 2012, p. 22)

Observamos, em nossa prática escolar, que essa colocação realmente confirma o que se tem feito nas escolas até o dia de hoje, embora tenhamos pesquisas que deveriam orientar as práticas de ensino na sala de aula. Mas vamos ainda mais longe parece mais cômodo para a sociedade não romper drasticamente com esse posicionamento arcaico de lidar com a leitura e a escrita.

A visão do Modelo Ideológico de Letramento, proposto por Street, segundo Magalhães (2012), baseia-se nos seguintes pontos:

1) A leitura e a escrita são práticas sociais atravessadas por relações de poder e por ideologias. Para Street (1995, p. 16), os argumentos vinculados às consequências do letramento “estão frequentemente ancorados na linguagem neutra da ciência ‘objetiva’, que oculta interesses políticos e econômicos dos que o transmitem”. 2) Por isso mesmo, é mais adequada à análise do letramento uma perspectiva teórica que considere tais dimensões do contexto social como classe, gênero social, etnia. Segundo Street, essa teoria é fundamental para a análise dos modos como as relações de poder são exercidas e mantidas mediante a leitura e a escrita. Desse modo, a relação entre letrados e iletrados, e a ‘grande divisão’ estabelecida entre esses grupos da população, podem ser avaliadas mais apropriadamente como questões de poder. 3) As relações de poder estabelecidas nas práticas sociais de leitura e escrita são mantidas pela ideologia. (MAGALHÃES, 2012, p. 28)

Nessa perspectiva, consideramos o Modelo Ideológico de Letramento como ideal na nossa abordagem em sala de aula, pois ele considera a realidade social em que o aluno está inserido, sem desprezar o que ele traz para dentro da sala de aula, uma vez que vem letrado em outras modalidades. O que a escola precisa fazer é aliar o que o aluno já tem ao novo que será apresentado na escola. Esse modelo de letramento parece não ser excludente.

Sobre o letramento, Maruschi afirma que:

O letramento, por sua vez, envolve as mais diversas práticas de escrita (nas suas variadas formas) na sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o indivíduo que é analfabeto, mas letrado na medida em que identifica o valor do dinheiro, identifica o ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas etc., mas não escreve cartas nem lê jornal regularmente, até uma apropriação profunda como no caso do indivíduo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemática ou escreve romances. Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz uso formal da escrita. (MARCUSCHI, 2010, p. 25)

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importantes para compreendermos que tipo de letramento queremos em nossa sala de aula. Os eventos de letramento são as situações em que as interações se dão através da língua oral, pela leitura, ou escrita. Práticas de letramento, por sua vez, são as interpretações dos participantes da interação verbal oral e/ou escrita, que depende de concepções sociais e culturais deles.

Concordamos com Magalhães (2012) quando afirma que:

Transformas as práticas linguísticas deve ser, portanto, a meta de qualquer proposta de ensino de língua realmente comprometida com a educação. Um exemplo de mudança nas práticas linguísticas é usar uma linguagem para falar das pessoas iletradas que não reforce o preconceito e a discriminação. (MAGALHÃES, 2012, p. 29)

Optamos por fazer essa abordagem sobre letramento por entender que essa prática tende a democratizar o ensino de língua portuguesa e por estar diretamente relacionado com a escrita. Acreditamos que as teorias sobre letramento e alfabetização podem auxiliar professores na abordagem da variação padrão da língua em sala de aula, orientando reflexões e atividades que tornem os alunos letrados nessa variedade do poder.

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