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Alfabetização na perspectiva freireana

No documento Compreensões sobre a alfabetização (páginas 31-35)

2. ALFABETIZAÇÃO: LEITURA DE MUNDO PRECEDENDO A LEITURA DA

2.2. Alfabetização na perspectiva freireana

Desde os anos 60, somos convidados (as), pelo educador Paulo Freire, a ir além da rígida compreensão da alfabetização, enquanto “um processo mecânico que enfatiza excessivamente a aquisição técnica das habilidades de leitura e da escrita” (FREIRE, MACEDO, 2006, p.X) e entendê-la num sentido muito mais amplo, como leitura de mundo precedendo a leitura da palavra. Ler a palavra e aprender como escrever a palavra, de modo que alguém possa lê-la depois, são precedidos do aprender como escrever o mundo, isto é, ter a experiência de mudar o mundo e de estar em contato com mundo. “A leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (FREIRE, 2006a, p.11).

O sujeito, desde que nasce, lê o mundo através de gestos, olhares, expressões faciais, do cheiro, do tato, do olfato, ou seja, antes de ler a palavra, o sujeito já vivenciou diversas leituras do mundo.

O bicho gente, muito antes de desenhar e fazer a palavra escrita, falou, disse a palavra e, muito tempo antes de escrever, leu o mundo dele, leu a realidade dele. Talvez pudesse dizer que, muito antes de escrever a palavra, ele escreveu o mundo, isto é, transformou o mundo sobre o qual falou para, depois, escrever o falado (FREIRE, 2001, p.136).

Nesse contexto, qualquer leitura é uma produção de sentido, o sujeito procura criar sentidos para o mundo que o rodeia. É no contato com o 'outro' e com o 'mundo' que são construídos símbolos, inicialmente muito singulares e próprios, até chegarem a se construir em significados compartilhados socialmente.

A leitura de mundo, fonte da invenção da escrita da palavra, é que terminou por levar o bicho gente a registrar em signo o som com que já dizia o mundo. Então a alfabetização implica esse ponto de partida e implica voltar a ele. [...] O que vale dizer: a alfabetização implica reconhecer o ponto de partida da leitura do mundo, implica pensar em que níveis a leitura do mundo está se dando ou quais são os níveis de saber que a leitura do mundo revela e a partir do aprendizado da escrita e da leitura da palavra que se escreveu voltar agora, com o conhecimento acrescido, a reler o mundo. Até diria, a ler a leitura anterior do mundo (FREIRE, 2001, p.136 e 137).

Assim, a alfabetização assume um significado de legitimar a competência linguística e desenvolver a potencialidade criativa individual e social, indo muito além de um simples processo de memorização mecânica das palavras, mas como um processo de criação e recriação.

Em outras palavras, a alfabetização, como um conceito e como uma prática social historicamente vinculados, assume muitas facetas na sua interpretação devido a seu significado político e ideológico. Como ideológica, a alfabetização pode ser encarada como uma construção social que está sempre implícita na organização da visão de história do presente e do futuro do indivíduo (adulto, jovem e criança), permitindo que os mesmos participem da compreensão e da transformação de sua sociedade. E, como domínio de habilidades específicas e de formas particulares de conhecimento, a alfabetização torna-se uma precondição de emancipação social e cultural.

Nessa perspectiva, o papel do alfabetizador, seja de adultos, jovens e crianças, deve ser o de dialogar com o alfabetizando sobre situações concretas. Não, como um ‘bate- papo’ desobrigado, mas de forma a expressar seu pensamento e compreender o pensamento do outro.

Por isso, o diálogo, na proposta de alfabetização freireana, principalmente para adultos, é uma das categorias centrais por ser um processo dialético-problematizador, ou, nas palavras de Freire, “diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (1992, p.43).

Assim, a alfabetização como processo dialógico, não pode submeter os educandos a um pavoroso processo de imposição de signos a priori, sem que se faça nenhuma relação desses signos com o que eles vivenciam, lendo o mundo e representando para si em símbolos associados a essa leitura anterior da palavra escrita (FREIRE, 2001, p. 139).

Outra contribuição freireana, para a alfabetização, é a de que o educador respeite os níveis de conhecimento que os adultos, os jovens e as crianças trazem para a sala de aula. Conhecimentos adquiridos na leitura de mundo de cada um e que terminam por dar certa marca ou identidade cultural para esses sujeitos. “É uma leitura que ele aprende a fazer, no convívio de sua casa, no convívio de sua vizinhança, de seu bairro, de sua cidade, com a marca forte do corte de sua classe social” (FREIRE, 2001, p.140). É uma leitura que a escola

ainda não conseguiu incorporar no seu dia a dia, mas que carrega o processo de construção da identidade do alfabetizando. Ou seja,

[...] essa leitura que a escola despreza totalmente carrega a imagem de um processo no qual o aluno, que nos primeiros anos de vida está muito centrado nos seus referenciais e começa, por sua própria leitura do mundo, a comparar e comparar-se, em se diferenciando, a ir tomando consciência das diferenças. Esse é o processo de construção de sua identidade, de sua decentração, de sua socialização a partir de suas próprias leituras (FREIRE, 2001, p. 141).

De acordo com Paulo Freire, é negativo desrespeitar essa bagagem de vida com que o alfabetizando chega à escola, pois é nela que está inserida sua linguagem, sua sintaxe, sua semântica, em outras palavras, sua competência linguística. Assim como o saber contar, as técnicas, as manhas usadas para defender-se da agressão dos grupos dominantes, enfim, o seu saber de experiência feito, termo esse que representa uma importante contribuição para a valorização do senso comum, ou seja, para que se perceba criticamente o que nele há de bom senso. “Isso significa, em última análise, que não é possível ao(a) educador(a) desconhecer, subestimar ou negar os ‘saberes de experiência feitos’ com que os educandos chegam á escola” ( FREIRE, 2006c, p.59).

Para Freire, esse desrespeito para com a leitura de mundo do educando revela certa incompetência, por parte do educador, que é ao mesmo tempo científica e política, pois o que fazer ou deixar de fazer com esse ‘saber de experiência feito’ do sujeito que chega à escola é uma questão político-ideológica. “Vamos às áreas populares com os nossos ‘esquemas’ teóricos montados e não nos preocupamos com o que já sabem as pessoas, os indivíduos que lá estão e como sabem” (FREIRE, 1993, p.58).

“Negar esse saber é incompetência científica, além de reacionarismo”, diz Paulo Freire, e “revela indiscutivelmente uma ideologia elitista e autoritária da escola” (2001, p. 142). Isso quer dizer que a escola é elitista por aceitar como válido somente o saber que já está montado ou pseudamente terminado, o que é um erro cientifico e epistemológico, pois nenhum saber está pronto e completo, argumenta o educador freireano. “O saber tem historicidade pelo fato de se construir durante a história e não antes da história ou fora dela”, ou seja, “o saber novo nasce da velhice de um saber que antes foi também novo [...]. E já nasce com a humildade de quem espera que um dia envelheça e suma, para que outro saber o substitua” (FREIRE, 2001, p. 143).

Paulo Freire sugere, em seus escritos, que jamais dever-se-ia deixar de considerar, para o processo de alfabetização, a ligação daquilo que o sujeito está aprendendo na escola com o que ele está aprendendo no mundo, ou seja, no mundo que ele está lendo (FREIRE, 2001, p. 142).

Isso não significa que esse saber fique no nível da preservação, de forma a deixar que o educando permaneça no nível de saber em que se encontra. Pelo contrário, é partir do que o educando já sabe, valorizando esse saber para gerar novos conhecimentos, ou seja, “o saber como um processo e não como um produto” (FREIRE, 2001, p. 155). Processo esse que leve a uma nova releitura de mundo, capaz de possibilitar uma transformação constante da realidade rumo à “humanização dos homens, que rejeita toda forma de manipulação, na medida em que esta contradiz sua libertação” (FREIRE, 1992, p. 74).

Nesse contexto de alfabetização como possibilidade de conscientização14 Paulo Freire criou um Método de Alfabetização que foi por ele entendido não como passos a seguir, mas no sentido de “um processo cognitivo, no qual está implícita e faz parte toda a sua teoria do conhecimento que é eminentemente política, ética, humanista e democrática porque tinha a intenção de incluir, para participar da sociedade, todas as pessoas dessa sociedade” [...] Nesse processo, o sujeito, para atingir tal nível de consciência crítica, começa em “ler a palavra lendo o mundo” (ARAÚJO FREIRE, 2006, p. 332).

Assim, nosso diálogo com o educador avança no intento de conhecer algumas da ideias presentes em seu método de alfabetização, porém sem antes esclarecer que o próprio Paulo Freire reconheceu que

[...] do ponto de vista da alfabetização em si é impossível relegar a um plano secundário os estados atuais da sócio e da psicolingüística, a contribuição de Piaget, de Vigotski, de Luria; a de Emília Ferreiro, de Madalena Weffort, de Magda Soares. Contribuições que, se bem aproveitadas, retificam e aprimoram algumas das propostas que fiz (FREIRE, 2003, p.170).

14 Conscientização, para Freire, constitui um conceito estruturante da concepção de que a educação, como prática libertadora, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade. A conscientização é compreendida, assim, como processo de criticização das relações consciência- mundo, é condição para a assunção do comprometimento humano diante do contexto histórico-social. É através da conscientização que os sujeitos assumem seu comprometimento histórico no processo de fazer e refazer o mundo, dentro das possibilidades concretas, fazendo e refazendo também a si mesmos (FREITAS, 2008, p.99-100)

No documento Compreensões sobre a alfabetização (páginas 31-35)

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