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Diferenciando os dois conceitos: alfabetização e letramento

No documento Compreensões sobre a alfabetização (páginas 50-54)

4. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UM DIÁLOGO DE COMPREENSÕES

4.1. Diferenciando os dois conceitos: alfabetização e letramento

Atualmente, alfabetização, analfabetismo e letramento são temas muito discutidos nos meios acadêmicos, em setores da administração pública e na mídia brasileira, por estarem mais vinculados aos baixos níveis de qualidade do ensino, divulgados pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), e, igualmente, por estarem diretamente associados ao exercício da cidadania e desenvolvimento socioeconômico do país. São termos presentes em nossa linguagem contemporânea, mostrando que, ao lado das pessoas alfabetizadas - que sabem ler e escrever -, há as analfabetas, ou seja, que não sabem ler e escrever.

Neste contexto, a palavra analfabetismo, muito usada por educadores e pesquisadores da educação, designa o estado ou condição de analfabeto, ou seja, aquele sujeito que não sabe ler e escrever. Logo, a alfabetização é o processo pelo qual o sujeito torna-se alfabetizado, capaz de ler e escrever. Essas mesmas definições são consideradas nas avaliações realizadas para medir o avanço em direção à meta de universalizar o acesso pleno às habilidades e práticas de leitura e de escrita (SOARES, 2003, p. 63).

Nesse contexto, a alfabetização, seja de crianças ou de adultos, continua sendo uma preocupação constante dos governantes e dos educadores e se efetiva ao proporcionar ações concretas como o Programa Brasil Alfabetizado (PBA)25 que visa à alfabetização de

25 O Programa Brasil Alfabetizado (PBA), realizado pelo MEC, é voltado para a alfabetização de jovens, adultos e idosos. Desenvolvido em todo o território nacional, com o atendimento prioritário a 1.928 municípios que apresentam taxa de analfabetismo igual ou superior a 25%. Esses municípios recebem apoio técnico na implementação das ações do programa, visando garantir a continuidade dos estudos aos alfabetizandos. Para maiores informações, consultar o site: www.portal.mec.gov.br.

pessoas jovens, adultas e idosas, e o Plano de Desenvolvimento da Educação para a Educação Básica – PDE, ambos realizados pelo Ministério da Educação – MEC.

Porém, a sociedade, de maioria culturalmente letrada, exige que o sujeito seja alfabetizado, mas também letrado. E essa exigência fez com que o conceito alfabetização passasse por alterações, como veremos a seguir.

Até a década de 1940, o conceito de alfabetizado proposto pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura, considerava como alfabetizado aquele indivíduo que sabia assinar o nome. A partir do Censo de 1950, o conceito de alfabetizado designava aquele “sujeito capaz de ler e escrever um bilhete simples, ou seja, capaz de não só saber ler e escrever, mas de já exercer uma prática de leitura e escrita, ainda que bastante trivial” (SOARES, 2004, p.7). Esses exemplos registram um progressivo entrelaçamento dos termos letramento e alfabetização.

No final dos anos de 1970, a UNESCO ampliou em muito o conceito, propondo que as avaliações internacionais sobre o domínio de competências de leitura e escrita fossem além do medir apenas a capacidade de saber ler e escrever. Assim, esse conceito, conforme Magda Soares (2004, p.6), destacou uma diferença fundamental, que está no grau de ênfase posta nas relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e a aprendizagem do sistema de escrita, ou seja, entre o conceito de letramento e o conceito de alfabetização.

Dessa forma, na segunda metade dos anos de 1980, a discussão sobre o conceito letramento se ampliou abrangendo vários países, não apenas o Brasil, com a finalidade de nomear fenômenos distintos da alfabetização. Assim, o termo letramento emergiu da constatação de que a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais atinentes à língua escrita. Ora, quando fatos “novos” são constatados, ou surgem novas ideias e conceitos a respeito de fenômenos, evidencia-se a necessidade de se criar novos vocábulos ou nomes para se tratar de determinados assuntos (SOARES, 2003, p. 19).

No Brasil, conforme Magda Soares, a primeira aparição do termo letramento foi no ano de 1986, no livro de Mary Kato, intitulado No mundo da escrita: uma perspectiva

psicolingüística, na qual a autora, logo nas páginas iniciais explicita que uma das funções da

escola é introduzir a criança no mundo da escrita, tornando-a um cidadão funcionalmente letrado: “[...] um sujeito capaz de fazer uso da linguagem escrita para sua necessidade

individual de crescer cognitivamente e para atender às demandas de uma sociedade que prestigia esse tipo de linguagem como um dos instrumentos de comunicação” (2003, p.15). Portanto, para a autora, a língua falada culta é consequência do letramento.

Dois anos mais tarde, em 1988, no livro Adultos não alfabetizados: o avesso do

avesso, de Leda Verdiani Tfouni, esse termo ganha estatuto de termo técnico no léxico dos

campos da Educação e das Ciências Linguísticas (SOARES, 2003, p. 15), tendo uso cada vez mais frequente no discurso falado e escrito de especialistas da educação.

Mas, afinal, por que e para que surgiu o que se denominou letramento?

A condição de analfabeto, ou seja, de pessoa que não sabe ler, tem gerado muitos problemas sociais, econômicos e culturais, pelo fato de a sociedade ser grafocêntrica. Com isso, surgiu uma crescente preocupação por parte de educadores, pesquisadores e governos, buscando, através de estudos e ações, desenvolver um controle sobre essa questão do analfabetismo, com o objetivo de erradicar o problema. Até então, as palavras mais usadas eram analfabetismo, analfabeto e alfabetizado, sempre no sentido de aprendizagem ou não da leitura e da escrita, sem referência ao estado ou à condição de quem se apropriou da leitura e da escrita, incorporando as práticas sociais que as demandam (SOARES, 2003, p.19).

A utilização do neologismo letramento veio para suprir a falta, em nossa língua, de uma palavra que pudesse ser usada para designar esse processo de estar exposto aos usos sociais da escrita sem, no entanto, saber ler e escrever. Nesse novo fenômeno aparece uma diferença entre o saber ler e escrever e, ainda, fazer uso social dessas habilidades, necessitando, portanto, de um nome que designasse essa segunda condição. Assim, surgiu o termo letramento, originado de uma tradução feita da palavra da língua inglesa literacy, com a representação etimológica de estado, condição, ou qualidade de ser literate, que pode ser definido como educado, especialmente, para ler e escrever.

Portanto, o letramento é um fenômeno de cunho social e que salienta as características sócio-históricas ao se adquirir um sistema de escrita por um grupo social. Ele é o resultado da ação de ensinar e/ou de aprender a ler e escrever, e denota estado ou condição em que um indivíduo e/ou uma sociedade constrói como resultado de ter-se “apoderado” de um sistema de grafia. Ou seja, o processo de letramento visa à compreensão e apropriação da cultura escrita pelos alunos. “A cultura escrita diz respeito às ações, valores, procedimentos e instrumentos que constituem o mundo letrado” (MEC, 2007, p.18).

Essa tradução, porém, não é aceita por alguns educadores. Emília Ferreiro entende que a melhor tradução para o termo literacy é cultura escrita. Para ela, o processo de alfabetização é desencadeado com o acesso a essa cultura. “Se dá, por exemplo, no momento em que o adulto lê em voz alta para uma criança – e nas famílias de classe média isso ocorre muito antes do início da escolaridade” e continua explicando que se nega a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. O uso do termo letramento reduziu a significação do conceito de alfabetização à mera decodificação.

Há um tempo, descobriram no Brasil que se podia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos textos, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso [...]. Eu não uso a palavra letramento. Se houvesse uma votação e ficasse decidido que preferimos usar letramento em vez de alfabetização, tudo bem. A coexistência dos termos é que não dá (FERREIRO, 2005).

Moacir Gadotti, concordando com Emília Ferreiro, também diz que “nem o termo inglês literacy (letramento) traduz melhor as práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita. [...] Além de equívoco conceitual, sonoramente seria uma lástima! Emília Ferreiro tem razão. É um retrocesso” (GADOTTI, 2005, p.1). Ele, Gadotti afirma que utilizar o termo letramento como sinônimo de alfabetização é uma posição ideológica contrária à tradição freireana, pois reduz esse processo à técnica de leitura e de escrita e esvazia seu caráter político. Afinal, alfabetização, para Freire, enquanto prática discursiva, “possibilita uma leitura crítica da realidade, constituindo-se como um importante instrumento de resgate da cidadania e reforça o engajamento do cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhoria da qualidade de vida e pela transformação social (1991, p. 68).

Paulo Freire defendia a ideia de que a leitura de mundo precede a leitura da palavra (2006, p.20), fundamentando-se na antropologia, pois o ser humano, antes de inventar códigos linguísticos, já lia o seu mundo, entendido como texto/contexto que “pode apresentar- se como elemento de comunicação do percebido e refletido, como também sob a forma de objeto de ad-miração” (FALKEMBACH, 2008, p. 409) onde o conhecimento se constitui. “O conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformações, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações”, diz Freire (1992, p.36).

Neste sentido, como se constata, “a alfabetização não pode ser reduzida a uma tecnologia ou técnica de leitura e de escrita. Ser uma pessoa letrada não significa ser alfabetizada, no sentido que Paulo Freire dava ao termo”, afirma o educador Moacir Gadotti

(2005, p. 1). No entanto, apesar dessa divergência, a alfabetização e o letramento são hoje considerados pela maioria dos educadores, dois termos distintos, mas que se complementam, pois um pode vir antes do outro, como em Freire, que a leitura de mundo precede a leitura da palavra (FREIRE, 2001, p.136 e 137).

O termo alfabetização designa o aprendizado inicial da leitura e da escrita, a natureza e o funcionamento do sistema de escrita, ou seja, ensinar a ler e a escrever e o conceito letramento pode ser definido como “resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita”, ou, em outras palavras, “o estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais” (SOARES, 2003, p. 31).

Assim, nas palavras de Magda Soares (2003, p. 47), “teríamos alfabetizar e letrar como duas ações distintas, mas não inseparáveis”; ao contrário, “alfabetizar letrando seria ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado”.

No documento Compreensões sobre a alfabetização (páginas 50-54)

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