• Nenhum resultado encontrado

Compreensões sobre a alfabetização

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Compreensões sobre a alfabetização"

Copied!
70
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL – UNIJUI

GLADIS BRENDLER VIECILI

COMPREENSÕES

SOBRE A ALFABETIZAÇÃO

Ijuí

2009

(2)

GLADIS BRENDLER VIECILI

COMPREENSÕES

SOBRE A ALFABETIZAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca de Defesa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado em Educação nas Ciências - Departamento de Pedagogia (DePe), da Unijuí – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Profª. Drª. Elza Maria Fonseca Falkembach

Ijuí

2009

(3)

Para minha mãe, Marla, professora alfabetizadora.

Mesmo não estando mais junto de nós, deixou gravado em nossas memórias o seu grande amor pela educação e pelas pessoas.

(4)

AGRADECIMENTOS

A cada amanhecer, ergo meus olhos para o alto e agradeço a Deus pela oportunidade de viver...

Agradeço ao Rúbio, querido esposo, que nunca reclamou das infinitas vezes em que deixei de estar com ele para me dedicar às leituras e escritas necessárias para esta dissertação.

Agradeço aos meus queridos filhos Gustavo, Priscila e Eduardo, pelo amor e pela compreensão...

Agradeço a meu pai Albino, minha irmã Rosane e a meu irmão Carlos, pelo apoio recebido...

Agradeço aos familiares, vizinhos, colegas de trabalho e amigos que entenderam minha ausência durante alguns períodos por estar estudando, lendo ou escrevendo.

Agradeço especialmente a minha querida e amada orientadora professora Elza

Maria Fonseca Falkembach, que sempre esteve junto comigo nessa caminhada, acreditando

que eu seria capaz de escrever, mesmo de forma simples, mas segura e deixando uma marca pessoal.

Obrigada a todos! Nunca esquecerei de todo amor, apoio e carinho recebidos ao acreditarem que nunca é tarde para realizar o sonho de infância!

(5)

RESUMO

Esta pesquisa objetiva expor diferentes concepções sobre os atos de ler e escrever. A partir do diálogo com autores como Paulo Freire, Lev S. Vigotski, Emília Ferreiro, Magda Soares, Luiz Carlos Cagliari, principalmente, fomos adentrando o universo da alfabetização. Este universo se mostrou complexo, o que nos levou a escolher algumas das várias perspectivas educacionais então representadas para fazerem parte da “roda do diálogo” construída. Por isso, abordamos a perspectiva freireana, a vigotskiana e a proposta alfabetizar/letrando, tendo o texto como elemento presente desde o início do processo de alfabetização. A opção metodológica recaiu sobre a pesquisa bibliográfica, mediante problematização possibilitada pelas vivências da pesquisadora educadora, em dois momentos de sua prática profissional – uma como alfabetizadora de jovens e adultos e outra como alfabetizadora de crianças. Alguns itens fundamentais - leitura e escrita como práticas culturais, a educação uma dimensão da cultura e da política, texto/contexto, letramento, processos de ensino e aprendizagem - levaram a presumir que a proposta Alfabetizar Letrando é a que mais proporciona elementos para a continuidade do processo de alfabetização, demonstrando que o sujeito que aprendeu a ler e a escrever conquistou um direito que lhe permite ampliar seus conhecimentos, ou seja, dar seguimento ao processo de aprendizagem da leitura e da escrita, rumo à pós-alfabetização.

(6)

ABSTRACT

This research aims to expose different views on acts of reading and writing. Starting primarily from dialogs amid authors such as Lev S. Vigotski, Paulo Freire, Emília Ferreiro, Magda Soares, Luiz Carlos Cagliari, we have entered the universe of literacy. This universe has shown itself to be complex, which led us to choose some of the many educational perspectives then represented to be part of the “dialog circle” which has been built. Therefore, we approach the Freire and Vigotski perspectives and the teaching the ABCs/teaching by lettering proposal, having the text as present element since early learning. The methodological choice outweighed the biographical research through questioning made possible by the researcher-educator experiences twice in her career: first, as an adults’ educator; second, as a children’s teacher. Some essential items such as reading and writing as cultural practices, education as a dimension of politics and culture, text/context, lettering, teaching and learning processes have all led us to assume the teaching the ABCs/ teaching by lettering proposal is the one that most provides the elements for the continuity of the literacy process, demonstrating that the subject that has learned to read and write won a right that allows him to expand his knowledge, that is, continue with the process of learning reading and writing, towards post-literacy.

(7)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 10

1. ALFABETIZAÇÃO... 15

1.1. Alfabetização: considerações iniciais... 15

1.2. Alfabetização: um conceito em constante transformação na sua significação... 18

1.3. Métodos de alfabetização na educação brasileira... 22

2. ALFABETIZAÇÃO: LEITURA DE MUNDO PRECEDENDO A LEITURA DA PALAVRA... 28

2.1. Educação na perspectiva freireana... 29

2.2. Alfabetização na perspectiva freireana... 32

2.3. Método de Alfabetização Paulo Freire... 36

3. COMO A PESSOA APRENDE A LER E A ESCREVER... 44

3.1. Relação pensamento e linguagem em Vigotisky ... 45

3.2. Mediação em Vigotisky ...46

4. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UM DIÁLOGO DE COMPREENSÕES.... 51

4.1. Diferenciando os dois conceitos: alfabetização e letramento... 52

4.2. Detalhando a proposta Alfabetizar Letrando... 56

4.3. Texto: elemento presente na alfabetização... 59

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 64

(8)

INTRODUÇÃO

O futuro com que sonhamos não é inexorável. Temos de fazê-lo, de produzi-lo, ou não virá da forma como mais ou menos queríamos. É bem verdade que temos de fazê-lo não arbitrariamente, mas com os materiais, com o concreto que dispomos e mais com o projeto, com o sonho por que lutamos (FREIRE, 2006, p. 102).

Desde a infância, o tema alfabetização, ou ensinar a ler e a escrever, esteve presente nos meus projetos profissionais. Sempre desejei ser professora, por isso escolhi cursar Magistério. Porém, esse “sonho” de ser professora alfabetizadora ficou adormecido durante anos para dar lugar ao desejo de ser mãe.

No ano de 2002, iniciei o curso de Pedagogia na UNIJUÍ e, no ano seguinte, aceitei o convite para assumir uma turma de alfabetização de adultos, no município de Ijuí. A partir desse momento, muitas questões surgiram sobre o processo de aquisição da leitura e da escrita: Como o ser humano aprende a ler e a escrever? O que mudou nas discussões teóricas e pedagógicas sobre a alfabetização com a entrada do termo letramento? Quais associações podem ser feitas entre essas mudanças e o legado do educador Paulo Freire? A leitura de mundo precede a leitura da palavra no processo de ensino e aprendizagem da escrita? Qual o papel do educador nesse processo de alfabetização como leitura de mundo precedendo a leitura da palavra? Alfabetizar e letrar são processos distintos? O que distingue a alfabetização do letramento? Como podemos alfabetizar letrando? Qual o lugar que o texto ocupa na alfabetização? Essas são algumas questões que despertaram e intensificaram minha curiosidade sobre o assunto, impulsionando-me a estudar e a pesquisar sobre os temas alfabetização e letramento, com o objetivo de conhecer e compreender esse processo de aquisição da leitura e da escrita.

Desse modo, posso dizer que foi a partir da necessidade de responder a questões surgidas na prática educativa que “tomei consciência” de minha condição de “ser inconcluso”, com capacidade de refletir auxiliada pela teoria já disponível, de ressignificar o meu saber para encontrar formas de transformar a minha prática educativa. “É exatamente esta capacidade de atuar, operar, de transformar a realidade de acordo com finalidades propostas pelo homem, à qual está associada a capacidade de refletir, que o faz um ser da práxis”

(9)

(FREIRE, 1983, p.17).

Sendo assim, passei a ser desafiada a constituir as produções de vários educadores e pesquisadores como objeto de minhas reflexões pessoais e, assim, analisar meu próprio agir pedagógico, de modo que possa começar a reinventar a alfabetização, na prática. “A reinvenção exige a compreensão histórica, cultural, política, social e econômica da prática e das propostas a serem reinventadas” (FREIRE, 2006, p. 81), ou seja, eu preciso conhecer a teoria, os estudos que já existem sobre a alfabetização e o letramento, para que subsidiem a reformulação, com coerência, de minha “práxis educativa”. Nas palavras de Paulo Freire (2006, p. 83), “diminuir a distância entre discurso e a prática é o que denomino coerência”.

Nessa perspectiva é que desenvolvi esta dissertação de Mestrado intitulada Compreensões sobre a alfabetização, buscando ter acesso a estudos de várias áreas do conhecimento desenvolvidas por diferentes autores, como Paulo Freire e Lev Vigotski, por exemplo, e outros autores contemporâneos e atuais, no intuito de encontrar respostas a inquietações, dúvidas, ideias, experiências e novas interrogações acerca das diferentes

concepções sobre atos de ler e aprender.

Assim, a proposta principal é compreender o que vem sendo historicamente produzido por estudiosos da educação sobre a alfabetização e o letramento, para identificar elementos que poderão contribuir para o processo escolar de aprendizagem da leitura e da escrita de crianças e de adultos.

O fato de a minha prática como alfabetizadora de crianças ser iniciante - a partir do mês de abril de 2008 e se constituir diferente da alfabetização de adultos, experiência que vivenciei no ano de 2003 e 2004 - não me oferece subsídios suficientes para descrever processos, mas possibilita elementos para problematizar os percursos que estou vivenciando nessa caminhada de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita.

Nesse contexto, a alternativa metodológica escolhida foi a pesquisa teórica, animada por análises e sínteses desencadeadas por observações realizadas e questões surgidas no exercício da minha prática pedagógica com turmas de alfabetizandos adultos e enquanto professora alfabetizadora de crianças em escolas públicas do Município de Ijuí.

Reconheço ser esta uma proposta metodológica pouco usual no campo da educação, pois definiu como ponto de partida a leitura de minha prática como um texto,

(10)

exposto sob a forma de perguntas, problematizando-a e mantendo-a como ancoragem para a pesquisa bibliográfica, a qual trouxe para o texto as falas dos autores com quem decidi dialogar.

Nesse sentido, “abri a roda do diálogo de compreensões”, convidando inicialmente os autores Lev Vigotski, Paulo Freire e, a seguir, autores contemporâneos como Emília Ferreiro, Magda Soares, Marlene Carvalho, Luiz Carlos Cagliari, Délia Lerner, Irandé Antunes, entre outros pesquisadores e educadores, para se fazerem presentes com suas contribuições a esta área da educação: a alfabetização.

Busco, portanto, neste trabalho, adensar reflexões sobre algumas suposições, como: o ser humano, mediante linguagem - elemento básico do seu desenvolvimento como ser histórico, social e cultural -, desenvolveu a escrita e a leitura, práticas culturais que revelam e registram o conhecimento humano e são necessárias para viver em uma sociedade letrada. Afinal, ler e escrever são práticas culturais que expandem enormemente os poderes do ser humano e que tornam a “sabedoria do passado analisável no presente e passível de aperfeiçoamento no futuro” (VIGOTSKI, 2006, p.26).

Nessa compreensão, a leitura e a escrita não são concebidas como habilidades inatas e, por isso, dependem de processos de ensino e aprendizagem para se tornarem conhecimentos pessoais. Assim, o ensino no período da alfabetização deve ser conduzido de modo intencional, com vistas a organizar e levar à aprendizagem da leitura e da escrita, adequada a situações específicas no contexto das práticas culturais, possibilitando a inclusão de fato do sujeito na sociedade letrada onde vive.

Portanto, nessa perspectiva, a alfabetização é, ao mesmo tempo, uma aprendizagem do sistema de escrita e uma forma de interação contextualizada com a diversidade cultural presente na sociedade onde o sujeito está inserido. Não corresponde, assim, a um mero processo mecânico de decodificação de sinais gráficos sem a preocupação maior com a leitura de mundo e a compreensão do texto/contexto.

Desse modo, a abordagem pedagógica Alfabetizar Letrando, tendo o texto/contexto como elemento presente desde o início da alfabetização, é a proposta que elegemos para embasar e desenvolver nossas reflexões, auxiliada pelos autores já citados. Essa opção decorre das já referidas vivências e do diálogo de compreensões iniciado, que nos levam a considerá-la como a que mais se ajusta ao ensino e à aprendizagem da leitura e da

(11)

escrita, tanto de crianças como de adultos.

Iniciamos o primeiro capítulo, “O conceito alfabetização”, buscando, juntamente com os educadores Paulo Freire, Luiz Carlos Cagliari e Magda Soares, dialogar sobre as modificações que ao longo dos anos tem sofrido o termo alfabetização. Também, trazemos uma síntese histórica dos métodos de alfabetização na educação brasileira para, assim, compreender as várias concepções presentes.

No segundo capítulo, “Alfabetização: leitura de mundo precedendo a leitura da palavra” são pontuados alguns elementos que estão presentes no Método de Alfabetização desenvolvido por Paulo Freire, educador que, desde o período 1957-1964, época em que foram desenvolvidas densas experiências de alfabetização de pessoas adultas no Brasil, vem apontando novas alternativas para o processo de alfabetização, principalmente para os sujeitos adultos analfabetos, provenientes das classes populares. Esses elementos são o significado da alfabetização como leitura de mundo precedendo a leitura da palavra, alicerçado no texto/contexto e na prescrição do Tema Gerador.

No terceiro capítulo, “Como a pessoa aprende a ler e a escrever”, procuramos compreender como esse processo de aquisição da leitura e da escrita acontece. Os autores principais evocados nesse capítulo são Lev Semenovich Vigotsky e Alexander Romanovich Luria, pois juntos desenvolveram pesquisas sobre temas como a relação entre pensamento e linguagem, ou a natureza do desenvolvimento humano e o papel da instrução no desenvolvimento. Esses elementos estão presentes no processo de alfabetização e letramento e, portanto, é imprescindível serem conhecidos.

No quarto capítulo, “Alfabetização e Letramento: um diálogo de compreensões”, autores como Magda Soares, Telma Ferraz Leal, Marlene Carvalho, Moacir Gadotti e Emília Ferreiro, nos ajudam a diferenciar os dois referidos conceitos – alfabetização e letramento. À medida que fazemos conhecer o surgimento e a história do conceito letramento, procuramos explicitar também seu significado. Em seguida, apresentamos as mudanças de significado desse recente anglicismo, para, depois, explicitar o que significa optar pela proposta

Alfabetizar Letrando, que tomamos como ponto de partida do processo de alfabetização

escolar.

Nesse capítulo justamente com o item “Texto: elemento presente na alfabetização” chamamos ao debate as autoras Marlene Carvalho, Gladis Massini-Cagliari e

(12)

Irandé Antunes, entre outras educadoras e educadores, para fundamentar teórica e metodologicamente a proposta Alfabetizar Letrando, foco desta dissertação, que tem como ponto central o entendimento de que a aquisição da Língua Escrita é algo maior que o desenvolvimento de habilidades motoras que não ultrapassam os limites da codificação/decodificação, sem a preocupação com o domínio do ato de ler e escrever, como exigem as atividades sociais e, também, com a compreensão do que está sendo lido.

Finalizo perguntando e tecendo algumas considerações sobre a complexidade do processo de alfabetização e letramento, que integra a cultura, a leitura de mundo, o texto/contexto, processos de ensino e aprendizagem e a leitura e a escrita, como elementos presentes antes, durante e após a alfabetização.

Mais que escrever e ler que a ‘asa é da ave’, os alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de ‘escrever’ a sua vida, o de ‘ler’ a sua realidade, o que não será possível se não tomarem a história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos (FREIRE, 1984, p.16).

(13)

1 ALFABETIZAÇÃO

A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. [...] Fui alfabetizado no chão do quintal da minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz (FREIRE, 2006, p.15).

Entender o que significa o processo de alfabetização foi uma das primeiras questões postas por nossa prática e que nos levaram a pesquisar sobre esse tema. Como o ser humano se constituiu sujeito de linguagem? A leitura e a escrita são práticas culturais ou são processos inatos? Quais os elementos presentes nesse processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita?

Assim, adentramos a teoria em busca de respostas para essas e outras questões correlatas. Nessa busca, conhecemos e compartilhamos as ideias e ideais dos educadores Paulo Freire, Lei Vigotski, Luiz Carlos Cagliari e Magda Soares, principalmente.

Neste primeiro capítulo, apresentaremos então algumas ordenações, reflexões e afirmações sobre o processo de constituição do ser humano, no qual a cultura, a leitura de mundo, o texto/contexto, a leitura da palavra e a escrita são elementos presentes. A seguir, traremos as modificações que o conceito alfabetização tem sofrido ao longo dos anos. Também, faremos uma síntese histórica dos métodos de alfabetização na educação brasileira para, assim, compreender as várias concepções presentes sobre o termo alfabetização.

1.1 Alfabetização: considerações iniciais.

O ser humano não nasce lendo e escrevendo, pois essas práticas culturais necessitam de processos de ensino e aprendizagem. A aprendizagem, de acordo com a concepção vigotskyana, também faz parte do processo de constituição do ser como humano, que é de origem biológica e sociocultural. Os processos elementares são de origem biológica,

(14)

porém as funções psicológicas superiores1 são de origem sociocultural. Esse processo de desenvolvimento não poderia produzir-se, portanto, sem a aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança características humanas não naturais, como a leitura e a escrita, formadas historicamente (VIGOTSKY, 2006, p. 115).

Nessa acepção, tornar-se humano é uma tomada de consciência de sua incompletude, pois o ser humano, que é “pensamento-linguagem”2, sempre e continuamente busca refletir sobre si mesmo e, assim, como ser que está no mundo e com o mundo, reconhece que sabe que sabe e que pode saber ainda mais. “Agora, sabemos que sabíamos. Por saber hoje que sabíamos, podemos saber mais ainda” (FREIRE, MACEDO, 2006, p.64). Esse é um “saber que garante que há uma dimensão crítica da consciência e que desloca do comportamento instintivo, não-mediado, do tipo estímulo-resposta, dos outros animais, para a construção de significados, para a atividade mediada, para a construção da cultura” (BERTHOFF, 2006, p. XVI).

Desse modo, como um ser que sabe que sabe vai transformando a sua realidade, ao buscar responder aos múltiplos desafios proporcionados pelo cotidiano, num processo de humanização. Ao humanizar-se, o homem educa a si próprio e aos outros, tornando-se um ser de relações que constrói e reconstrói conhecimentos. “O conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações” (FREIRE, 1992, p. 36).

Portanto, a verdadeira fonte do conhecimento é confrontação entre os homens e o mundo. Para Paulo Freire, mundo é o palco de todas as realizações – onde o homem não somente vive, mas existe, e sua existência é histórica. Assim, para o homem, o mundo é o contexto de sua existência, e ele transforma, com sua ação, este contexto, fazendo dele um espaço da cultura e da história (2005, p. 103). É um conceito-chave do pensamento do

1 Funções psicológicas superiores são relações sociais interiorizadas a partir de ações conscientes, ou seja, ações conscientemente controladas, atenção voluntária, memorização ativa, pensamento abstrato, comportamento intencional. Os processos psicológicos superiores, expressão utilizada nesse texto, se diferenciam de mecanismos mais elementares, como reflexos, reações automáticas e associações simples (OLIVEIRA, 1997, p.23).

2 Pensamento-linguagem é a expressão utilizada por Paulo Freire para designar o homem que é capaz de refletir sobre si mesmo e sobre a sua própria atividade, [...] que é um ser da práxis, da ação e da reflexão ( 1992, p.39).

(15)

educador Freire, para quem a realidade “não é só dado objetivo, o fato concreto, senão, também, a percepção que o homem tem dela” (1976, p.32).

Mundo como um texto a ser lido, compreendido e reescrito nesse processo de confrontação do ser humano em sua vivência diária. Ou, nas palavras de Paulo Freire (2005, p.104), “para o homem, o mundo é o contexto de sua existência, e ele transforma, com sua ação, este contexto, fazendo dele um mundo da cultura e da história”. E, continuando com Vigotsky, “o homem não é apenas um produto de seu ambiente, é também um agente ativo no processo de criação deste meio” (2006, p.25).

Nessa perspectiva de viver e conhecer o mundo, o ser humano acaba produzindo conhecimentos que atendam às suas necessidades básicas de sobrevivência, mas também que respondam à sua curiosidade. Assim, acaba produzindo cultura, que nas palavras de Freire (2000, p.117), é o “acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações, [...] aquisição sistemática da experiência humana”. Essa experiência pode ser sintetizada como uma perspectiva de leitura e de inserção no mundo concreto, ou seja, nas relações dinâmicas que vinculam linguagem e realidade no exercício da compreensão do contexto da prática, que, por sua vez, pela leitura de mundo, pode ser ampliada.

Com isso, o homem se reconhece como sujeito cultural e histórico, que se expressa por diferentes modos e com diferentes linguagens, quer pertencendo a uma cultura letrada ou iletrada, mas com uma necessidade: assegurar a continuidade de sobrevivência da espécie humana. Por isso, procura meios de transmitir às novas gerações todo o conhecimento culturalmente construído a cada época. Entre esses conhecimentos, estão a leitura e a escrita, como práticas culturais que precisam ser ensinadas e aprendidas pelas gerações.

“A alfabetização e a educação são expressões culturais. Não se pode desenvolver um trabalho de alfabetização fora do mundo da cultura, porque a educação é, por si mesma, uma dimensão da cultura” (FREIRE, MACEDO, 2006, p.33 e 34). Deriva daí “que a educação deva tomar a cultura que a explica, pelo menos em parte, como objeto de uma cuidadosa compreensão, com o que a educação se questiona a si mesma” [...] e vai tornando claro “que a cultura é uma totalidade atravessada por interesses de classe, por gostos de classe”, e a “existência de classes sociais provoca um conflito de interesses. Provoca e dá forma a modos culturais de ser e, por isso, gera expressões contraditórias de cultura”.

(16)

Em geral, são os segmentos dominantes de qualquer sociedade que são encarados como expressões concretas da nacionalidade e ditam gostos, estilos de vida. Os grupos subalternos, que possuem seus próprios gostos e estilos de vida, por seu turno não podem falar de si mesmo, como expressões nacionais. “Falta-lhes o poder político e econômico para fazê-lo. Só os que têm poder podem generalizar e estabelecer que as características de seu grupo são representativas da cultura nacional” (2006, p.33). Assim, as características, os diversos tipos de música, de poesia, de linguagem e de visão de mundo pertencentes aos grupos considerados subalternos são desconsiderados pelo grupo dominante.

Desse modo, ensinar ler e escrever é tarefa de uma educação que respeite a cultura do educando, “que transcenda a uma compreensão mecânica e estrita do ato de ler, isto é, o ato de aprender a palavra de modo a poder, a seguir, lê-la e escrevê-la” (2006, p.36). É, também, uma forma de respeitar os diferentes discursos e de pôr em prática a compreensão de pluralidade que exige uma transformação política e social onde dizer a palavra seja direito de tornar-se partícipe da decisão de reinventar a cultura, dentro da qual se criariam ambientes para incorporar, de maneira participativa, todos aqueles discursos que atualmente estão sufocados pelo discurso dominante.

“A legitimação desses diversos discursos legitimaria a pluralidade de vozes na reconstrução de uma sociedade verdadeiramente democrática”. [...] “haveria verdadeiro respeito por aqueles educandos que ainda não se acostumaram a dizer a palavra para lê-la. Esse respeito implica a compreensão e a apreciação das muitas contribuições que os que não lêem dão à sociedade em geral” (2006, p.37) Assim, a alfabetização é um processo de aprendizagem do sistema de escrita, que deve estar presente no processo de constituição do ser humano.

1.2 Alfabetização: um conceito em constante transformação na sua significação.

Durante as últimas décadas, existe uma busca por conceituar o que é alfabetização, já que a definição “aprender a ler e escrever” vem sofrendo revisões significativas associadas às produções da Filosofia, Psicologia, Linguística e outras áreas do conhecimento, que reconhecem o “fato de que a mera leitura e grafia das unidades menores da

(17)

língua (letras, sílabas e palavras) não implicava um consequente domínio do ato de ler e escrever, como nos exigem as atividades sociais” (SÉRKEZ, MARTINS, 1996, p.9) .

A leitura e a escrita são atos de comunicação, de interação entre as pessoas e, por isso, aprender o domínio do código, sem a preocupação com um trabalho vinculado com a escrita de ideias completas passou a ser considerado algo inviável. Por essa razão, o processo de aquisição da leitura e a escrita passa pela apropriação do sistema alfabético e ortográfico da escrita, num contexto de participação das práticas sociais que envolvem a língua escrita. Assim, para aprender a ler e escrever, o sujeito - adulto, jovem ou criança - necessita entender a relação estabelecida entre fala e escrita. Precisam conhecer o sistema de regras da escrita compreendendo o que estão lendo (decodificar) e sendo capazes de transmitir com clareza suas ideias por escrito (codificar), de modo que outras pessoas possam compreender o texto escrito.

Foi a partir da Revolução Francesa (1789-1799) que a alfabetização, nos países europeus, passou a se constituir disciplina escolar formal, ou seja, efetivada no âmbito da escola, acompanhando o calendário escolar e fazendo surgir vários métodos de alfabetização, cartilhas e materiais didáticos específicos.

Em nosso país, desde o final do século XIX, especialmente com a Proclamação da República (1889), “a escola consolidou-se como lugar necessariamente institucionalizado para o preparo das novas gerações, com vistas a atender aos ideais do Estado republicano, pautado pela necessidade de instauração de uma nova ordem política e social; e a universalização da escola assumiu importante papel como instrumento de modernização e progresso do Estado-Nação, como principal propulsora do ‘esclarecimento das massas iletradas’” (MORTATTI, 2006).

Nesse contexto dos ideais republicanos, “saber ler e escrever se tornou instrumento privilegiado de aquisição de saber/esclarecimento e imperativo da modernização e desenvolvimento social”. Assim, a leitura e a escrita, aprendizagens que se encontravam restritas a poucos e que eram transmitidas de forma assistemática “no âmbito privado do lar, ou de maneira menos informal, mas ainda precária, nas poucas ‘escolas’ do Império (aulas régias), tornaram-se fundamentos da escola obrigatória, leiga e gratuita e objeto de ensino e aprendizagem escolarizados” (MORTATTI, 2006).

(18)

Caracterizando-se como tecnicamente ensináveis, as práticas de leitura e escrita passaram, assim, a ser submetidas a ensino organizado, sistemático e intencional, demandando, para isso, a preparação de profissionais especializados. Desse ponto de vista, os processos de ensinar e de aprender a leitura e a escrita na fase inicial de escolarização de crianças se apresentam como um momento de passagem para um mundo novo — para o Estado e para o cidadão —: o mundo público da cultura letrada, que instaura novas formas de relação dos sujeitos entre si, com a natureza, com a história e com o próprio Estado; um mundo novo que instaura, enfim, novos modos e conteúdos de pensar, sentir, querer e agir (MORTATTI, 2006).

Assim, a tarefa de alfabetizar crianças, a partir desses acontecimentos históricos, se constitui como atribuição da escola como instituição responsável pela educação formal de crianças e de jovens.

Por outro lado, a alfabetização de adultos, que hoje no Brasil é entendida como alfabetização de jovens e adultos de classes populares, já teve outra conotação, significava a educação de ricos. Atualmente, a alfabetização de adultos acontece em ambientes tanto formais quanto não formais, como escolas, centros comunitários, igrejas, indústrias e praças.

Com a escolarização, o processo educativo da alfabetização passou a acompanhar o calendário escolar. Como as antigas cartilhas eram simples esquemas, passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em lições, cada um enfatizando um fato. O ensino silábico passou a dominar o alfabético. O método do ‘bá, bé, bi, bó, bu’ começava a aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de cartilha passou a ser o modelo dos livros de alfabetização (CAGLIARI, 1999, p.21).

A alfabetização, portanto, era compreendida como um processo mecânico de decodificação de símbolos, no qual a pessoa era treinada na capacidade de decodificar os sinais gráficos transformando-os em “sons”, e também, na capacidade de codificar os sons da fala, transformando-os em sinais gráficos, sem uma preocupação maior com a compreensão do texto, do contexto e do uso nas práticas sociais.

Porém, em consequência dos altos índices que os dados das pesquisas3 sobre analfabetismo apresentaram, a alfabetização como processo de codificação e decodificação, começou a ser repensada pelos educadores brasileiros.

(19)

Assim, após estudos sobre o assunto, concluiram que um dos problemas dos altos índices de analfabetismo brasileiro decorria da forma de conduzir os processos que, no caso, estava associada ao entendimento do termo, ou seja, seria alfabetizada aquela pessoa que soubesse ler e escrever um bilhete simples.

Na década de 60, novamente ocorreu uma mudança na forma de entendimento do termo: uma pessoa passa a ser considerada alfabetizada se for capaz de ler e escrever, com compreensão, uma breve e simples exposição de fatos relativos à vida cotidiana, ou seja, atribuiu-se uma visão mais funcional à alfabetização, associando-a às questões do desenvolvimento econômico. Assim, a alfabetização era promovida como uma resposta à demanda econômica, com foco nas capacidades de leitura e escrita necessárias ao aumento da produtividade, na agricultura, na produção industrial ou em outras atividades. Esse enfoque estava estreitamente vinculado às necessidades do desenvolvimento econômico nacional, e não às necessidades dos alunos em seus contextos locais.

Nestes mesmos anos 1960, a influência do educador Paulo Freire acrescentou dimensões políticas ao processo de alfabetização, enfocando-a como um processo de conscientização que ensina as pessoas a perguntar “por que as coisas são como são” e a “tomar iniciativas autônomas no sentido de transformá-las”, situando o aluno não mais como mero objeto, mas como alguém com capacidade de participar, ou seja, como atores e sujeitos do processo. Embora a abordagem de Paulo Freire a princípio fosse vista como uma metodologia de aquisição de alfabetização, seu impacto transferiu a alfabetização da sala de aula para a arena sociopolítica.

Com a realização da CONFINTEA V - Conferência Internacional de Educação de Adultos , em Hamburgo, Alemanha, no ano de 1997, a alfabetização passa a ser vista como um processo ligado ao desenvolvimento individual e social, um direito de todos os seres humanos, incluindo-se pela primeira vez, nessa concepção, a conquista da cidadania4.

sujeitos eram alfabetizados e 71,2% eram analfabetos. No ano de 1950, 42% eram alfabetizados e 57,1% analfabetos, (FERRARO, 2002). Para maiores informações, consultar o site:

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/1872_1920.shtm

4 Cidadania como apropriação da realidade para nela atuar, participando conscientemente em favor da emancipação. “A cidadania não é apenas o fato de ser um cidadão que vota [...]. O conceito de cidadania vem casado com o conceito de participação, de ingerência nos destinos históricos e sociais do contexto onde a gente está”, é ter voz, “é ser presença crítica na história” (FREIRE, 2001, p.129 e 131).

(20)

Desde então, a concepção de alfabetização se mantém ampla, não se tratando de um processo rápido e conclusivo, mas que se estende ao longo da vida. O educando pode levar seis ou sete anos de escolaridade para “manejar” o código da leitura e escrita, embora um domínio pleno da última requeira 12 anos de escolaridade, segundo as estimativas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO5 (UNESCO, 2003, p. 9), um dos órgãos responsáveis pela organização e financiamento das CONFINTEA6 - Conferência Internacional de Educação para Todos.

Portanto, passa-se a admitir que a alfabetização constitui-se a base do aprendizado por toda a vida para todos, da aquisição de poder pelos indivíduos e por suas comunidades, permitindo que as pessoas participem ativamente, no decorrer de toda a vida, de todo um espectro de oportunidades de aprendizado.

1.3 Métodos de alfabetização na educação brasileira

Para entendermos melhor as várias concepções presentes no universo da alfabetização brasileira, voltaremos nosso olhar para os métodos, pois as atividades escolares equilibram-se entre os processos de ensino e aprendizagem e os métodos, como caminhos escolhidos para ensinar. Inclusive, muitos métodos usados pelos alfabetizadores no passado permanecem presentes nas práticas pedagógicas das escolas brasileiras.

O método mais antigo da alfabetização brasileira concebia o ler e o escrever como atos mecânicos de decorar a Cartilha. Através dela, igualmente crianças e adultos aprendiam a leitura e a escrita decorando o alfabeto. Ou seja, para se alfabetizar, a pessoa memorizava o

5 Para maiores informações sobre o trabalho da UNESCO no Brasil, consultar o site: http://www.brasilia.unesco.org/unesco.

6 Informações sobre a CONFINTEA VI, que se realizou no Brasil e teve como objetivos principais Impulsionar o reconhecimento da educação e aprendizagem de adultos como elemento importante e fator contribuinte à Educação ao Longo da Vida, onde a alfabetização é o alicerce. Enfatizar o papel crucial da educação e aprendizagem de adultos para a realização das atuais agendas e programas de educação e de desenvolvimento internacionais (APT, MDMs, UNLD, LIFE e DESD); e renovar o momentum e compromisso político e desenvolver ferramentas de implementação para que partam do retórico para a ação. Para maiores informações, consultar o site: http://www.brasilia.unesco.org/areas/educacao.

(21)

nome das letras como guia para sua decifração, decorava as palavras-chave, para pôr em prática o princípio acrofônico, próprio do alfabeto, e depois começava a escrever e a ler, interpretando, nas ‘taboas’ (ou tabuadas), as sílabas da fala com a correspondente forma escrita. Notem que a ortografia não tinha vez. O método estava mais voltado à decifração da escrita do que ao escrever corretamente (CAGLIARI, 1999, p. 22).

Era uma educação baseada na transmissão e na memorização de conteúdos, posto pressupor que, decorando letras, palavras, fatos e conteúdos, os mesmos fossem “ligar-se” à memória dos alunos - considerados aqueles que não tinham “luz própria” -, mediante o respaldo do professor, - aquele que tudo sabia, detentor do saber, transmissor de verdades imutáveis e de conhecimentos próprios à tradição cultural.

Durante anos, alfabetizar no Brasil, continuou a ser um processo de decorar as sílabas usando o conhecido Método “Ba, be, bi, bo bu”, cujo maior instrumento para a condução do processo eram as cartilhas, como a João de Deus ou Cartilha Maternal (1870), as Cartilhas do Povo- Para ensinar a ler rapidamente ( 1928) e Upa, cavalinho! (1957). As duas últimas foram produzidas pelo educador brasileiro Manoel Bergström Lourenço Filho e editadas pela Companhia Melhoramentos, de São Paulo.

Nas cartilhas, o método usado antes de 1870, foi chamado de Método Sintético, que era subdividido em soletração, fônico e silábico. O método de soletração ou alfabético foi o primeiro processo empregado universalmente na aprendizagem da leitura. Nele, o ponto de partida são as letras na seguinte lógica: primeiro se ensina o nome e as formas das letras isoladamente; depois, as sílabas, palavras e frases; para, finalmente, chegar a textos inteiros. O método fônico tem como ponto de partida o fonema (som da letra). Primeiro deve-se conhecer os fonemas, para em seguida combiná-los formando sílabas, palavras e frases. E o método silábico, parte da sílaba, palavras, frases, até chegar a pequenos textos.

Todos esses métodos de alfabetização descontextualizam a escrita, seus usos e funções sociais. Dão ênfase à memorização ao ensinar a leitura de forma mecânica, sem compreensão, e enfatizam os aspectos gráficos e psicomotores para a “prontidão” da alfabetização, como se o aluno fosse uma tabula rasa ou página em branco que precisa ser preenchido pelos conhecimentos repassados pelo professor.

No início da década de 60, surge no País, mais especificamente para a alfabetização de crianças, o chamado período preparatório ou de prontidão, uma metodologia

(22)

cheia de atividades lúdicas que o aluno passou a fazer, para desenvolver o controle do traçado, a distribuição espacial, a motricidade, a discriminação auditiva e visual, cujo objetivo maior era preparar a criança para a alfabetização. “Assim, a estrutura mais rígida e tradicional das lições das cartilhas passou a dar lugar a uma metodologia mais leve, mais cheia de atividades lúdicas”, de acordo com Luis Carlos Cagliari (2008, p. 219).

Portanto, com esse tipo de ensino - “faça segundo o modelo” -, o aluno fazia o que o professor mandava e o professor fazia o que os livros didáticos mandavam. Isto ocorria de tal modo que tudo o que o professor e os alunos deveriam fazer já vinha preparado, inclusive com respostas dos exercícios, ou seja, o professor era um mero aplicador dos métodos elaborados pelos órgãos governamentais.

Por outro lado, nesse mesmo período, começou a ganhar corpo o conceito de Educação Popular7 que influenciou fortemente a maneira de ser trabalhada a alfabetização de adultos, ou seja, de uma forma não infantilizada cujo diferencial era a conscientização, a mobilização, a politização dos grupos sociais excluídos e a importância dada à cultura desses grupos considerados subalternos pelos segmentos dominantes da sociedade.

Em geral, os segmentos dominantes de qualquer sociedade encaram como expressões concretas da cultura nacional seus interesses particulares, seus gostos, seus estilos de vida e depreciam todas as características pertencentes aos grupos subalternos, por serem diferenciados dos padrões estabelecidos por eles próprios (FREIRE, MACEDO, 2006, p.34).

Essa nova visão do processo educativo, oportunizada pelas concepções freireanas, marcou de forma determinante a história dos métodos de alfabetização, pois gerou o Método de Alfabetização Paulo Freire, que logo no seu início afastou qualquer hipótese de uma alfabetização puramente mecânica, haja vista a sua finalidade principal de proporcionar, ao homem, meios para superar suas atitudes, mágicas ou ingênuas, diante da realidade.

Desde logo pensávamos a alfabetização do homem brasileiro, em posição de tomada de consciência, [...] realmente ligada á democratização da cultura, que fosse uma introdução a esta democratização. Numa alfabetização que,

7 Educação Popular “é a capacidade de organização e estruturação de uma comunidade no compromisso e na assunção do processo educacional, sem que o Estado seja excluído de suas obrigações” (VASCONCELOS, BRITO; 2006; p. 91). Ou seja, toda educação que se realiza junto a setores ou classes populares, uma prática educativa que se propõe a ser diferenciada, isto é, compromissada com os interesses e a emancipação das classes subalternas (PALUDO, 2001, p. 82).

(23)

por isso mesmo, tivesse no homem, não esse paciente do processo, cuja virtude única é ter mesmo paciência para suportar o abismo entre sua experiência existencial e o conteúdo que lhe oferece para sua aprendizagem, mas seu sujeito (FREIRE, 1992, p. 112).

Porém, com o início do período da Ditadura Militar, no ano de 1964, o Método de Alfabetização do educador Paulo Freire foi considerado subversivo e o seu autor foi silenciado no Brasil pelos governantes daquela época.

Nos anos 70 a 80, as contribuições da Psicologia fizeram surgir uma nova concepção do homem como energia ativa e criativa - pilares das experiências da Escola Nova, que influenciou fortemente a alfabetização. Porém, os métodos permaneceram tradicionais, sendo o mais usado o Método Analítico Ideovisual ou Ideográfico, que parte de uma motivação (desenho, história, verso, etc.) e apresenta a palavra ligada ao desenho, num processo evolutivo para palavração e palavras progressivas.

Na década de 80, em decorrência dos estudos sobre a Psicogênese de Língua Escrita,8 surgiram como elementos inovadores a introdução ou o resgate de importantes dimensões da aprendizagem da alfabetização. Com esses estudos, baseados na epistemologia genética de Jean Piaget,9 entendia-se que o aluno era o sujeito da aprendizagem. Assim, o foco do processo de aprendizagem não ficou mais centrado no como ensinar, mas como o aluno aprende e também, nos usos sociais da escrita e da leitura, articulados a uma concepção mais ampla de letramento.

Mas, em contrapartida, ocorreram algumas compreensões equivocadas dessa teoria. Na medida em que o foco passou a ser o aluno, o ensino sistematizado e planejado do sistema alfabético-ortográfico ficou subestimado em detrimento à faceta psicológica. Assim, muitos professores passaram a excluir métodos e técnicas sistemáticos de trabalho, pois consideravam que o construtivismo não fazia uso dos mesmos.

Em outras palavras, muitos educadores negaram os aspectos psicomotores ou grafomotores, desprezando seu impacto no processo inicial da alfabetização e descuidaram do

8 Psicogênese da Língua Escrita - estudo do caminho que o sujeito percorre para se apropriar da língua escrita, ou seja, ideias que tentam explicar a aquisição da lectoescrita, desenvolvida pelas educadoras Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1999).

9 Consultar: PIAGET, Jean. A Epistemologia Genética. Trad. Nathanael C. Caixeira. Petrópolis: Vozes, 1971. 110p. BECKER, Fernando. Ensino e construção de conhecimento. Porto Alegre, Armed, 2001.

(24)

ensino de informações relevantes da tecnologia da leitura e da escrita, como, por exemplo, a exploração sistemática do código e das relações entre grafema e fonema, a orientação espacial da escrita, imaginando que o aluno por si próprio poderia perceber esses conhecimentos estando em contato com os textos (MEC, 2007, p.12).

Essa interpretação equivocada que foi usada por muitos educadores como um método de alfabetização e não como uma teoria de como a criança constrói o processo de escrita, denominado Psicogênese da Língua Escrita, prejudicou muitos alunos, “sobretudo os que vivem em condições sociais desfavorecidas e que, por isso, só têm oportunidade de contato mais amplo com livros, revistas, cadernos e lápis e outros instrumentos e tecnologias quando ingressam na escola” (MEC, 2007, p.12).

Decorrente dos problemas de não aprendizagem da leitura e da escrita, ocasionados por essa visão construtivista equivocada, surge, no cenário educacional brasileiro, no final dos anos 80, o termo letramento, colocando em evidência o foco nas práticas sociais de leitura e escrita que o sujeito vivencia na sociedade.

De acordo com Magda Soares (2004), é proposta uma diferente concepção de alfabetizar, ou seja, alfabetizar letrando. Essa proposta reconhece necessária a especificidade da alfabetização, como processo de aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico, mas, também, a importância de que a alfabetização se desenvolva mediante vivências variadas que envolvam a leitura e a escrita no contexto de práticas sociais, proporcionando, assim, o desenvolvimento de atitudes participativas nos alunos em relação a essas práticas.

Neste contexto, a alfabetização e o letramento são processos singulares, mas interdependentes, pois

a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização (SOARES, 2004, p. 14).

Essa proposta de alfabetizar letrando será detalhada no capítulo quatro, no qual iremos diferenciar os dois conceitos – alfabetização e letramento que, mesmo unindo dois termos distintos, se complementam, pois alfabetização designa o aprendizado inicial da leitura e da escrita, a natureza e o funcionamento do sistema de escrita, em contrapartida, o conceito

(25)

letramento pode ser definido como “o estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais” (SOARES, 2003, p. 31).

Encerrando este capítulo, podemos dizer que, nos dias atuais, a concepção de alfabetização no Brasil continua passando por modificações, decorrentes de todo o processo histórico, das reações criadas em decorrência dos índices de educação apresentados pelos indicadores de desempenho escolar, como Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF/Brasil)10 e das várias pesquisas sobre métodos de alfabetização de crianças, jovens e adultos, que continuam sendo desenvolvidas pelas diversas instituições de educação no País.

Também, que a alfabetização, na atualidade, não pode mais ser compreendida como mera decodificação e codificação de sinais gráficos ou uma aquisição mecânica da leitura e da escrita. Conforme a UNESCO (2003, p.8), a alfabetização no mundo atual é plural em diversos sentidos e pode haver a bi alfabetização, em situações de bilinguismo. Assim, com o desenvolvimento das linguagens, ela abrange a representação multimodal de linguagem e ideias (texto, figura, imagem em movimento, em papel, em meio eletrônico, etc.). Embora as comunicações eletrônicas não tenham substituído a alfabetização impressa, o analfabetismo e o divisor digital separam incluídos e excluídos das novas linguagens. Portanto, outros elementos começam a ser incorporados tendo a visão da linguagem como uma totalidade - falar, escutar, ler, escrever, compreender.

Por fim, nos apropriando das palavras de Paulo Freire, conceituamos a alfabetização como ensinar o uso da palavra, mas, também, a leitura de mundo, onde o educando terá acesso à cultura escrita, à informação, podendo expressar e defender pontos de vista, compartilhar e construir visões de mundo, produzir conhecimento, usufruir do patrimônio cultural da humanidade e exercer seu direito de cidadania (2005).

10 INAF/Brasil, responsabilidade do Instituto Paulo Montenegro. Maiores informações consultar o site: http://www.acaoeducativa.org.br/portal/images/stories/pdfs/inafresultados2007. Acesso em 05 out 2009.

(26)

2 ALFABETIZAÇÃO: LEITURA DE MUNDO PRECEDENDO A

LEITURA DA PALAVRA.

Como professora alfabetizadora de adultos e depois de crianças, observamos que a leitura de mundo estava presente em cada alfabetizando e em cada alfabetizanda. Mesmo não dominando o sistema de escrita, os educandos têm sua própria forma de ler e reler o mundo, que é ‘palco’ de suas histórias de vida.

Assim, com essa expectativa de entender esse processo de leitura de mundo, carregada de significações decorrentes das experiências existenciais que congrega, fomos ao encontro da obra do educador Paulo Reglus Neves Freire, que sempre afirmou que a leitura de mundo precede a leitura da palavra e assim, fomos descobrindo outros elementos que também fazem parte do processo de alfabetização, como texto/contexto, cultura, as ideologias presentes, o processo dialógico, o significado político e ideológico da educação, a possibilidade de conscientização, entre outros, que farão parte deste segundo capítulo da dissertação.

Neste capítulo buscaremos conhecer algumas das ideias e propostas de Freire para a educação, que desde o início dos anos 60 engajou-se nos movimentos de cultura e educação popular, participando e influenciando campanhas como “De pé no chão também se aprende a ler”, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte e o Movimento de Cultura Popular (MCP)11 do Recife, Pernambuco.

A partir dessas experiências, o educador freireano, vem apontando novas alternativas para o processo de alfabetização principalmente para as pessoas jovens e adultas, provenientes das classes populares, mas também para a alfabetização de crianças. Então, nos perguntamos: quais são essas alternativas, proposta por Freire para a alfabetização?

Como exemplos da preocupação do educador com a alfabetização de adultos, jovens e crianças, podemos citar a experiência de alfabetização de adultos de Angicos, iniciada em janeiro de 1963 (ARAÚJO FREIRE, 2006, p.142); o Movimento de Alfabetização de Jovens

11 Sobre esse tema Movimento da Cultura Popular (MCP), do Recife, conferir mais detalhes no depoimento de Paulo Freire na Décima Segunda Carta, “Minhas Experiências no MCP, no livro Cartas a Cristina, escrito por Paulo Freire em 1994.

(27)

e Adultos - MOVA/SP – que se tornou “modelo de educação popular e de alfabetização de adultos para muitas das Secretarias de Educação de governos progressistas” (2006, p.301) e o trabalho de Freire frente à Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, iniciado em 1989 (p.287). “Afinal, o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente ‘lido’, interpretado, ‘escrito’ e ‘reescrito’” (FREIRE, 2006, p. 97).

2.1 Educação e alfabetização na perspectiva freireana

Paulo Freire trata enfaticamente da natureza política da alfabetização, vista por ele como “um processo eminentemente político que não se satisfaz apenas com a leitura da palavra, mas que se dedica também a estabelecer uma relação dialética entre a leitura da palavra e a leitura do mundo, a leitura da realidade” (FREIRE, 2001, p. 134).

Nessa perspectiva, rompe com o mito da neutralidade na educação, ao enfatizar o significado da alfabetização, como leitura de mundo precedendo a leitura da palavra, possibilitando, assim, o desenvolvimento de uma consciência crítica nos sujeitos considerados “analfabetos” pelos setores hegemônicos de uma sociedade elitista e excludente, como tem se mostrado a sociedade brasileira.

Para Freire (1983, p. 27), somos seres inacabados, incompletos, que, por termos consciência dessa inconclusão, buscamos nos educar. O inacabamento é condição de todo ser vivo, porém, a espécie humana é distinta das demais espécies. Enquanto estas já nascem prontas e são determinadas instintivamente em seus modos de ser e de agir, a humana é uma espécie “aberta”, sendo que cada indivíduo necessita se fazer, decidir sobre o que virá a ser (BOUFLEUER, 2008, p.95). Assim, a educação é possível para o homem, porque este é inacabado e sabe-se inacabado. E é esse impulso ontológico - consciência de sua inconclusão- próprio de sua natureza humana que o leva a buscar educar a si próprio e aos outros.

Dessa forma, “a educação tem caráter permanente. Não há seres educados não educados. Estamos todos nos educando”, diz Paulo Freire (1983, p.28). Ou seja, o ser humano está em processo educativo desde que nasce. E é nessa educabilidade do ser humano que reside a raiz mais profunda da politicidade da educação, pois, por ser inacabado, consciente

(28)

desse inacabamento e histórico, o ser humano se faz um ser de opção, de decisão (2006, p. 110), um ser político.

Esse ser político que, por alguma razão, não pode se apropriar da leitura e da escrita, consideradas como instrumentos imprescindíveis para a participação na sociedade letrada, é rotulado de analfabeto e impedido de exercer seus direitos políticos, como se, por não saber ler e escrever, também não tenha condições de pensar, escolher, opinar. Essa condição do analfabeto o exclui de um direito conquistado como cidadão.

De acordo com o pensamento freireano, a educação, e mais especificamente o saber, estão impregnados de ideologias12 que escondem pedagogias que ajudariam os educandos a ler e reler o mundo. “Como Freire revelou pela seguinte metáfora: [...] o poder da ideologia me lembra aquelas manhãs cheias de orvalho em que a neblina distorce o contorno dos ciprestes e eles se tornam sombras de algo que sabemos que está lá, mas não podemos realmente definir” (MISIASZEKE; TORRES, 2008, p.222).

Também a alfabetização, de acordo com o educador freireano, passa necessariamente pela escolha, consciente ou não, de uma metodologia como instrumento que promova a aprendizagem, pois “não há alfabetização neutra, enfeitadinha de jasmins [...]. O processo de alfabetização é um processo eminentemente político, e eu diria, do educador saber disso ou não”, diz Freire. E complementa: “o educador pode bater com o pé no chão, fazer beicinho, dizer ‘não sou político’, e o trabalho dele é político” (FREIRE, 2001, p.128).

Portanto, esse processo traz em si uma alta carga de ideologia que pode ser determinada pela visão fatalista de interpretar o mundo, mas, também, pode ser influenciada por uma visão libertadora comprometida com a construção do homem que busca Ser Mais13.

12 Freire se agrega aos teóricos marxistas que consideram as ideologias como ideias falsas e distorcidas associadas aos interesses das classes dominantes. “As ideologias promovem a miopia para aceitar facilmente que o que estamos vendo e ouvindo, é de fato, o que realmente é, e não uma distorção do que é” (MISIASZEKE; TORRES 2008, p. 222). Ou seja, “[...] insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar ‘quase natural’; expressa uma indiscutível vontade mobilizadora; nos nega e amesquinha como gente” (FREIRE, 1996, p.21 e 22).

13 Ser Mais, para o educador Paulo Freire, significa uma valorização do indivíduo como homem que procura permanentemente pela liberdade, porém não como uma doação de alguém, e sim como uma conquista pessoal. É importante esclarecer que o próprio Freire, insiste que, ao falar do ‘ser mais’ ou da humanização como vocação ontológica do ser humano, não está caindo em nenhuma posição fundamentalista, mas como “algo que se vem constituindo, sempre processo, sempre devir” (FREIRE, 2006c, p.99).

(29)

“Não hesitaria em afirmar que, tendo-se tornado historicamente o Ser Mais a vocação ontológica de mulheres e homens, será democrática a forma de luta ou de busca mais adequada à realização humana do Ser Mais” (FREIRE, 2003, p.192).

Assim, o homem aventura-se curiosamente no conhecimento de si mesmo e do mundo, ao mesmo tempo em que luta pela afirmação de ser sujeito, revelando que a natureza humana é programada, mas não determinada, por estruturas ou princípios inatos.

Nem uma nem outra, humanização e desumanização, são destino certo, dado, sina ou fado [...] Esta vocação (de Ser Mais), em lugar do ser algo a priori da história e, pelo contrário, algo que se vem constituindo na história [...], é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica, etc.. que nos estão condenando à desumanização (FREIRE, 2006c, p. 99).

Retomando, conhecer a ideologia presente no processo de alfabetização é, para o educador, um fator imprescindível, por ser o processo de alfabetização eminentemente político. Se isso é verdade, o melhor então é que o educador saiba, desde o começo, que faz política e que, por isso, vai ter que fazer uma opção. Fazer uma opção é difícil, pois implica decisão, e “decidir, por sua vez, exige ruptura. Ninguém decide sem romper. Todo processo decisório se fundamenta numa ruptura. Não é possível neutralizar-se [...]: toda vez que eu opto pela neutralidade eu opto pelo que tem poder e não pelo velho ou pelo fraco” (FREIRE, 2001, p.128).

No processo de alfabetização, de acordo com a perspectiva freireana, essa opção pode ser trabalhada numa visão de uma educação bancária, mas também numa visão libertadora.

A visão bancária considera o ato de educar como depositar conhecimentos, “em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los” (FREIRE, 2005, p.66), tornando as pessoas alienadas, dominadas e oprimidas, mais como objetos a serem manipulados do que sujeitos de sua própria história.

Mas, na perspectiva de uma educação libertadora, que é defendida por Freire, a formação do ser humano rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária. Assim, oportuniza ao sujeito tomar consciência de sua condição de ser que pensa, ser crítico, agente e interveniente no mundo, sabedor de sua capacidade de sujeito capaz de

(30)

transformar sua realidade, ou seja, um ser da práxis. “A práxis, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2005, p.42).

E é nessa perspectiva de uma educação libertadora que o processo de alfabetização não pode ser reduzido ao mero lidar com letras e palavras, de forma puramente mecânica. Ele transcende essa compreensão, pois passa a ser encarado como uma relação entre os educandos e o mundo, mediada pela prática transformadora desse mundo, que tem lugar precisamente no ambiente em que se movem os educandos.

Assim, podemos dizer que o que existe de mais atual e inovador nas ideias de Freire é que a aquisição da aprendizagem da leitura e da escrita, ou seja, a alfabetização, não pode ser desassociada do processo de politização do ser humano, pois “a alfabetização é um ato de educação e educação é um ato fundamentalmente político” e não instrumento de opressão, mas de libertação (FREIRE, 2006 a, p.8).

Para Freire, todo sujeito deve ter voz, ou seja, “a voz é um direito de perguntar, criticar, de sugerir. [...] Ter voz é ser presença crítica na história. Ter voz é estar presente, não ser presente”. E continua: “foi por isso que eu falei na natureza política da educação como uma totalidade, e da alfabetização como um capítulo dela. A alfabetização em si não é sequer o começo da cidadania, mas a experiência cidadã requer a alfabetização”, (2001, p.131).

Assim, continuando o nosso diálogo, buscaremos conhecer como esse educador que foi um semeador e um cultivador de palavras, não de quaisquer palavras, mas de palavras “grávidas de mundo”, “palavras geradoras” que têm o dom de gerar mundos, de pronunciar novas realidades (FREIRE, 2006a, p.20), desencadeava o processo de alfabetização como leitura de mundo, tanto para alfabetizandos adultos, quanto para crianças, e sugeria aos educadores que “a prática da alfabetização tem que partir exatamente dos níveis de leitura do mundo, de como os alfabetizandos estão lendo essa realidade, porque toda leitura de mundo está grávida de um saber” (FREIRE, 2001, p.134).

(31)

2.2 Alfabetização na perspectiva freireana: um ato de conhecimento e de criação e não de memorização mecânica

Desde os anos 60, somos convidados (as), pelo educador Paulo Freire, a ir além da rígida compreensão da alfabetização, enquanto “um processo mecânico que enfatiza excessivamente a aquisição técnica das habilidades de leitura e da escrita” (FREIRE, MACEDO, 2006, p.X) e entendê-la num sentido muito mais amplo, como leitura de mundo precedendo a leitura da palavra. Ler a palavra e aprender como escrever a palavra, de modo que alguém possa lê-la depois, são precedidos do aprender como escrever o mundo, isto é, ter a experiência de mudar o mundo e de estar em contato com mundo. “A leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (FREIRE, 2006a, p.11).

O sujeito, desde que nasce, lê o mundo através de gestos, olhares, expressões faciais, do cheiro, do tato, do olfato, ou seja, antes de ler a palavra, o sujeito já vivenciou diversas leituras do mundo.

O bicho gente, muito antes de desenhar e fazer a palavra escrita, falou, disse a palavra e, muito tempo antes de escrever, leu o mundo dele, leu a realidade dele. Talvez pudesse dizer que, muito antes de escrever a palavra, ele escreveu o mundo, isto é, transformou o mundo sobre o qual falou para, depois, escrever o falado (FREIRE, 2001, p.136).

Nesse contexto, qualquer leitura é uma produção de sentido, o sujeito procura criar sentidos para o mundo que o rodeia. É no contato com o 'outro' e com o 'mundo' que são construídos símbolos, inicialmente muito singulares e próprios, até chegarem a se construir em significados compartilhados socialmente.

A leitura de mundo, fonte da invenção da escrita da palavra, é que terminou por levar o bicho gente a registrar em signo o som com que já dizia o mundo. Então a alfabetização implica esse ponto de partida e implica voltar a ele. [...] O que vale dizer: a alfabetização implica reconhecer o ponto de partida da leitura do mundo, implica pensar em que níveis a leitura do mundo está se dando ou quais são os níveis de saber que a leitura do mundo revela e a partir do aprendizado da escrita e da leitura da palavra que se escreveu voltar agora, com o conhecimento acrescido, a reler o mundo. Até diria, a ler a leitura anterior do mundo (FREIRE, 2001, p.136 e 137).

(32)

Assim, a alfabetização assume um significado de legitimar a competência linguística e desenvolver a potencialidade criativa individual e social, indo muito além de um simples processo de memorização mecânica das palavras, mas como um processo de criação e recriação.

Em outras palavras, a alfabetização, como um conceito e como uma prática social historicamente vinculados, assume muitas facetas na sua interpretação devido a seu significado político e ideológico. Como ideológica, a alfabetização pode ser encarada como uma construção social que está sempre implícita na organização da visão de história do presente e do futuro do indivíduo (adulto, jovem e criança), permitindo que os mesmos participem da compreensão e da transformação de sua sociedade. E, como domínio de habilidades específicas e de formas particulares de conhecimento, a alfabetização torna-se uma precondição de emancipação social e cultural.

Nessa perspectiva, o papel do alfabetizador, seja de adultos, jovens e crianças, deve ser o de dialogar com o alfabetizando sobre situações concretas. Não, como um ‘bate-papo’ desobrigado, mas de forma a expressar seu pensamento e compreender o pensamento do outro.

Por isso, o diálogo, na proposta de alfabetização freireana, principalmente para adultos, é uma das categorias centrais por ser um processo dialético-problematizador, ou, nas palavras de Freire, “diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (1992, p.43).

Assim, a alfabetização como processo dialógico, não pode submeter os educandos a um pavoroso processo de imposição de signos a priori, sem que se faça nenhuma relação desses signos com o que eles vivenciam, lendo o mundo e representando para si em símbolos associados a essa leitura anterior da palavra escrita (FREIRE, 2001, p. 139).

Outra contribuição freireana, para a alfabetização, é a de que o educador respeite os níveis de conhecimento que os adultos, os jovens e as crianças trazem para a sala de aula. Conhecimentos adquiridos na leitura de mundo de cada um e que terminam por dar certa marca ou identidade cultural para esses sujeitos. “É uma leitura que ele aprende a fazer, no convívio de sua casa, no convívio de sua vizinhança, de seu bairro, de sua cidade, com a marca forte do corte de sua classe social” (FREIRE, 2001, p.140). É uma leitura que a escola

Referências

Documentos relacionados

E ffects of electron beam irradiation on chemical composition The results regarding the proximate composition, free sugars and fatty acids of the control (non-irradiated) and

1) Evaluate the effect of PDI on membrane lipids of Aeromonas salmonicida using different cationic porphyrins with different charge distribution as PSs in different times

The GERIA project (“Geriatric study in Portugal on Health Effects of Air Quality in Elderly Care Centers”) is a multidisciplinary project with the purpose of studying the

A análise recaiu não tanto no que as imagens e os seus textos podem significar para a história da moda e da confecção, ou mesmo da evolução dos conceitos de elegância e beleza,

Desde o início deste meu projecto, considerei o papel médico um papel privilegiado para promover a mudança de comportamentos que visem um maior bem-estar e

Pensando um tempo contínuo, todo momento pode se constituir em formas de transição; no longo período da história argentina a partir da independência, a década de trinta pode

In order to demonstrate the relevance of Fry and fractal analyses to understand structural controls on mineralization based on the spatial distribution of mineral

As autoras também propõem em seu estudo marcas que caracterizam esse tipo de festa; dentre as que se enquadram no contexto da Chocofest se pode citar a