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Algumas considerações acerca do oral e do literário

2. NAÇÃO, UTOPIA E MITO EM JORGE AMADO – A ÁFRICA E O BRASIL

2.6 Algumas considerações acerca do oral e do literário

Feitas todas essas considerações sobre o universo do candomblé, antes de prosse- guirmos com a análise de Quincas, cabem aqui algumas considerações: o problema que se nos coloca é o de se as narrativas míticas africanas que dialogam, como temos visto, com a obra de Jorge Amado são fenômenos literários. A existência duma literatura oral popular e de toda uma tradição oral parece ser fenômeno universal; presente inclusive, claro, nas sociedades que não são ágrafas. Na África essa tradição historicamente teve um papel imenso na sociedade, inclusive entre os povos de Angola e Moçambique (bantus e outros) e entre os Yorubá (Nigé- ria, Sudão).

Do acervo da tradição oral angolana, por exemplo, sabemos que inclui provérbios, canções, adivinhas, narrativas, orações; passando por textos (orais) didáticos, histórias etioló- gicas (o porquê das coisas), contos populares (para “divertir”), mitos, récitas histórico-épicas, poesia variada, poesia oficial (panegíricos), contos em prosa (sobre situações quotidianas, a- nimais antropomorfizados, entre outros). (OLIVEIRA, s/d.). O “mágico” frequentemente faz parte desse universo cultural e suas manifestações artísticas e literárias. É importante lembrar o quanto tais concepções permeiam mesmo a dimensão “secular” quotidiana da existência, o que problematiza a dicotomia sagrado-secular. Nesse momento, convém falarmos brevemente da própria ideia de uma literatura africana e sua existência antes mesmo da colonização. Exis- tia, afinal, o fenômeno literário nas culturas ágrafas africanas ou mais especificamente nas culturas nagô?

Autores como Zumthor e muitos outros têm enfatizado as raízes orais da literatura que entendemos por “ocidental”, dando destaque ao gênero épico. A própria literatura grega tem suas raízes orais, antes de passar a ser escrita – basta pensar no que se tem publicado a- cerca de Homero. No continente africano a questão é talvez um tanto mais complexa, mas há autores que defendem ser adequado falar em épico na literatura oral africana: (OKPEWHO, 1979, pg xi):

There has been some controversy as to whether the epic, as a genre of traditional oral literature, exists in Africa. Sir Maurice Bowra […] deny that it does. Recent Dutch- Flemish scholars like Knappert and Biebuyck disagree; but they are mainly anthopologists by training and have been unable to address themselves effectively to the literary arguments that are, in my opinion, the key to an essentially literary prob- lem. […] [This] has led me to the conviction that the epic is by no means alien to Af- rica).132

O autor nota também que a literatura tradicional africana oral tem sido estudada prin- cipalmente por antropólogos e historiadores da arte, os quais raramente teriam ido às raízes dos princípios estéticos das performances artísticas estudadas (ibid. p. 1); Okpewho contesta de forma convincente a ideia de que a arte tradicional africana, que inclui também a literatura oral, tenha sempre motivação mágico-religiosa ou ainda moral-pedagógica, lembrando que em um grande número dessas manifestações é possível notar que a ênfase está mais no estilo do que no conteúdo (ibid. p. 2). Ele cita, entre outros exemplos, a história épica do herói nigeria- no Ozidi (conhecida em toda a região do Delta do Níger), em cujas aventuras nota-se, segundo Okpewho, mais a prevalência de um “artistic play drive” ou impulso lúdico-artístico de quem conta a história do que um instinto religioso, além das exigências duma lógica estética interna (ibid., p. 3-9): a luta entre o protagonista Ozidi e o adversário Bouakarakarabiri, por exemplo, faz parte da lógica interna da ação e justifica-se pelo fato de ambos terem poderes que têm a mesma origem, de modo que em algum momento eles precisariam entrar em choque para es- tabelecer duma vez por todas quem é o mais forte. O que se nota, argumenta Okpewho, são técnicas performáticas narrativas, paralelismos, “simetria” e uma estrutura de tensão/clímax.

Acreditamos que a presença inconteste do mágico nessas narrativas, representando cosmovisões, não contradiz as observações acima citadas de Okpewho. Queremos enfatizar que o que nos interessa, afinal, nas narrativas míticas é o que nelas haja de literário, particu- larmente no que diz respeito a noções que norteiam nosso estudo, como mímesis, catarse e diálogo entre cultura popular e erudita. Pela própria natureza do estudo, recorremos a noções da antropologia, sociologia e psicologia, mas nosso problema aqui é, afinal, literário. Como o problema da literatura insere-se no problema da arte, podemos recorrer aqui às considerações de Luigi Pareyson (1989) de que o artístico pode manifestar-se numa criação da cultura hu- mana em graus, isto é, ao invés de adotarmos uma avaliação dicotomizante (arte ou não-

132“Tem havido certa controvérsia acerca da questão de se o épico, como gênero de literatura oral tradicional, existe na Áfri-

ca. Sir Maurice Bowra [...] nega que haja. Acadêmicos mais recentes como os flamenco-holandeses Knappert e Biebuyck discordam; entretanto, eles são basicamente antropólogos, por formação, e não têm sido capazes de abordar de forma efi- caz os argumentos literários, os quais, na minha opinião, são a chave para um problema essencialmente literário. [...] [Is- so] me levou à conclusão de que o épico não é de forma alguma estranho à África” (tradução nossa).

arte), é-nos possível reconhecer que, por exemplo, algo que tem certa elaboração estética em seu fazer pode, por isso, ter algo de artístico. Assim, um ensaio, por exemplo, de Chesterton, ou mesmo um discurso político qualquer escrito para ser lido no plenário, em geral, não será considerado um texto literário (o seu fazer é diferente), mas pode haver nele algo de literário em sua elaboração, no cuidado com a forma de linguagem, no uso de imagens etc, embora tal- vez “não tanto” quanto um poema de Walt Whitman, digamos. Assim, o mito de Exu analisa- do anteriormente, que é uma criação cultural humana de autoria coletiva, tem certamente algo de poético e literário. O mito, como a arte, tem algo de mimético e catártico, no que apreende, representa e condensa problemas humanos. Tais considerações aplicam-se também à literatu- ra oral e popular no geral, que possui elementos e estruturas que interessam ao estudo literá- rio.