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Mito e romance – formação do leitor e criação duma comunidade imaginária

2. ROMANCE, MITO, INICIAÇÃO E CATARSE

1.5 Mito, romance e nação

1.5.2 Mito e romance – formação do leitor e criação duma comunidade imaginária

comunidade imaginária

No medievo a língua franca duma elite letrada cosmopolita era o latim e o vernáculo era associado aos diferentes dialetos populares. No dizer atribuído a Max Weinreich, “uma língua é um dialeto com exército e marinha”. A questão de, por exemplo, se o galego é consi- derado um dialeto português (ou espanhol) ou uma língua, assim como a questão de se o cata- lão é uma língua ou um dialeto espanhol é uma questão política. Assim, historicamente o dia- leto toscano, ou antes uma construção baseada nos dialetos toscanos, foi eleito na Itália unifi- cada como língua oficial italiana, após ter ganho prestígio, principalmente com a publicação da Comédia de Dante. Considerações semelhantes podem ser feitas acerca da padronização da língua alemã oficial, cujo modelo é tido pelos estudiosos como tendo sido o dialeto que Lute- ro usou (o dialeto saxão) para traduzir a Bíblia, dialeto a partir do qual foi construído o Hoch- deutsch ou alemão padrão como língua culta escrita. Anteriormente era o baixo alemão a lín- gua franca da Liga Hanseática, antes da unificação da Alemanha.

Da mesma forma, a consagração do inglês moderno como língua franca do Império Britânico está relacionada à publicação da obra de Shakespeare e à Bíblia do Rei James (King

James Bible). O português padrão europeu atual, por sua vez, é baseado nas variantes lingüís-

ticas faladas em Coimbra e Lisboa, mas é inegável a importância da consagração, no cânone, da obra de Camões na definição da norma culta portuguesa. Desse modo, a construção dum

cânone literário está intimamente relacionada (de forma dialética) à própria construção da

norma culta e do dialeto padrão consagrado como língua nacional.

A própria construção da identidade lingüística portuguesa (diferenciada da identidade galega) dá-se num processo histórico e linguistas como Marcos Bagno propõem uma deriva- ção da língua portuguesa a partir do galego, denunciando como narrativa construída politica- mente a suposta derivação do português diretamente do latim, narrativa essa que obscurece a questão galego-portuguesa (BAGNO, 2009).

Essa construção das identidades nacionais e construção do cânone no caso europeu deu-se em grande parte por meio da epopéia – num primeiro momento, também no Brasil, por meio duma imitação de modelos europeus, de forma problemática (GUTIÉRREZ, 2009). E- xemplo de epopéia que também tem o papel de construtora de mitos fundadores é, como já citamos, os Lusíadas (SILVA, A. P., 2012).

O mundo épico é construído com base num passado histórico imaginado, re-criado, num espaço épico, no dizer de Bakhtin, absoluto e sagrado, à semelhança das narrativas míti- cas. O mundo épico é “o passado heróico nacional, é o mundo das “origens” e dos “fastígios” (...) mundo dos pais e ancestrais, o mundo dos “primeiros” e dos “melhores” (BAKHTIN, 1998, p. 405).

Segundo Hélder Macedo,

um poema épico tende a significar, como discurso de segundas intenções, um percur- so espiritual, uma viagem iniciática personalizada num herói. E há um esquema bási- co subjacente a toda viagem iniciática o qual por sua vez corresponde a uma magni- ficação da fórmula cristalizada dos ritos de passagem. Esse esquema define três mo- mentos fundamentais: a chamada, a viagem propriamente dita, e o regresso. (MA- CEDO, 1980, p. 33 apud SERRA,2006).

Herdeiro da epopéia é, como subgênero do romance, o romance histórico (LUKÁCS, 2011), epopéia burguesa. Na obra de Walter Scott, concebida por Lukács como o que marcaria o advento do romance histórico, é introduzido na literatura épica o quotidiano, História da vi- da privada, por meio do retrato dos costumes e uma nova ênfase no papel do diálogo. Nesse tipo de obra, segundo Lukács, o protagonista funciona como espécie de “centro” e é, em geral, um tipo “médio” (ibid., p. 48-50), sendo a epopéia o retrato do movimento da vida (os aconte- cimentos históricos de certa forma encobrem o personagem). Lukács contrapõe esse tipo de

personagem ao que chama de “herói demoníaco” (p.50), que seria uma expressão literária de “excentricidade e superficialidade” (em Byron etc).

O que Lukács chama de realismo não corresponde, como se sabe, a uma escola literá- ria específica, mas antes a uma forma literária a qual reconstituiria o homem em sua totalida- de. Essa concepção de arte lukacsiana está intimamente ligada à sua noção de mímesis (como processo de apreender e representar não o estático, mas o dinâmico) e de catarse, a qual, como vimos, está relacionada à vida, quotidiana, inclusive. Para Lukács, o romance histórico seria uma épica que representa figuras históricas reais, entretanto em segundo plano, e personagens fictícios, heróis “medianos” e um senso de vida popular, com uma narrativa que tem por pano de fundo o movimento da emancipação ou consolidação nacional. Esses tipos humanos medi-

anos têm suas vidas sacudidas pelas transformações sociais, em meio a forças extremas que se chocam (as formas de vida social ascendentes e as em declínio)73. Em suma, a atmosfera do romance histórico seria a da afirmação do progresso, num contexto humanista. Isso teria aber- to o caminho para o grande romance realista do século XIX, o qual, em Balzac, por exemplo, adaptaria a cosmovisão e a técnica scottiana para representar não o passado, mas antes o pre- sente (ou às vezes o passado próximo); um presente, entretanto, histórico, no qual se movem as forças sociais e históricas.

Note-se que o ato social mesmo de se escrever um romance pressupõe a existência duma massa crítica de leitores; a forma do romance está relacionada à expansão da alfabetiza- ção e emergência da burguesia, como efeito sociopolítico da transferência da tecnologia literá- ria da aristocracia à “plebe” (burguesa) (SLAUGHTER, 2007, p. 284-285).

A dinâmica do enredo do Bildungsroman (romance de formação), por exemplo, pres- supõe uma estratificação do mundo em leitores e não-leitores para sua teleologia do desenvol- vimento da personalidade humana (ibid., p. 284). Seu enredo tipicamente retrata a “passagem da oralidade à escrituralidade”, que é também a transição duma cultura oral com seus espaços coletivos de socialização (catequização etc) para o gabinete de leitura de um indivíduo sozi-

73 Lukács nota que, ainda que Walter Scott não tenha conhecido a filosofia hegelina (2011, p.46), existe, em sua literatura,

um certo “historicismo”, uma consciência histórica cujo desenvolvimento Lukács relaciona (p. 47) às condições especiais da Inglaterra naquele momento histórico. Lukács elogia a apreensão do movimento da História na mimese épica do ro- mance scottiano e esclarece que a função composicional do herói scottiano é de esteticamente “mediar os extremos” em luta na trama, extremos esses que representam ficcionalmente “uma grande crise da sociedade”, estabelecendo um “solo neutro” no qual “as forças sociais opostas possam estabelecer uma relação humana entre si” (p. 53). Essa estrutura remete à tese-antítese-síntese da filosofia hegeliana. Essa busca do “médio” em meio às forças opostas (tese e antítese) não deixa de evocar o motivo da coincidentia oppositorum. Cf. p. 36-7 deste.

nho, que, com a aquisição da leitura e estudo, obtém ascensão social, deixando o reino da não- escrituralidade (seja esse representado como lugar, aldeia ou classe, gênero, etnia etc) (ibid.). A arte, no caso, a literatura, é vista como formadora da personalidade (o ser humano holístico etc), no contexto, no dizer de Bakhtin sobre o mundo de Rabelais, do surgimento dum mundo novo (o mundo da burguesia e também, mais tarde, dos Estados-Nação).

O romance de formação desse período narra a história da iniciação catártica dum in- divíduo numa sociedade moderna de leitores como ele mesmo e narra essa história por meio duma mídia (o livro impresso numa sociedade proto-capitalista), que é a própria mídia por meio da qual essa iniciação catártica mesma é obtida.

Os paralelos entre a formação (Bildung)74 retratada nesses romances e o que poderí- amos chamar de iniciação é visível, por exemplo, em Wilhelm Meister, o personagem goethi- ano que inicia sua educação como aprendiz sob a supervisão duma sociedade maçônica de leitores. Faz-se alusão, inclusive, a uma cerimônia de iniciação, como nota Slaughter (2007, p. 98). A leitura de outros romances de formação como esse proporcionava ou insinuava aos seus leitores uma formação análoga à levada a cabo pelo protagonista, inserindo-os numa no- va comunidade, de leitores, e num novo mundo, o mundo da modernização, da educação etc com seus mitos modernos. É a mesma dinâmica da formação da comunidade nacional, no ca- so do Brasil, por exemplo, que coincide com a formação do sistema literário.

A noção mesma de Direitos Humanos (essencial ao Estado moderno), consagrada na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) baseia-se, legislativamente, numa retóri- ca tautológica, como notou Joseph Slaughter (2007, p. 77). Essas tautologias seriam resquí- cios da transcendência, que remeteriam ao apelo que Thomas Jefferson faz à lei natural. A se- gunda sentença de Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (talvez a sentença mais famosa da língua inglesa, que inspirou vários outras declarações de indepen- dência no Novo Mundo) afirma:

74 Consideramos digno de nota que tanto Lukács quanto Bakhtin tenham sido leitores ávidos de Goethe e, de diferentes for-

We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness75.

É o mesmo movimento descrito por Schmitt (“teologia política”), como vimos ante- riormente (noção “teológica” secularizada). Veremos, mais abaixo, a importância da literatura na consolidação e difusão dessas noções secularizadas. O romance, no dizer de Lukács após a primeira guerra mundial, é a épica dum mundo “abandonado por Deus” (LUKÁCS, 1987, p. 88), assim como a doutrina de Direitos Humanos do Direito Internacional é uma lei natural positivada num mundo sem Deus (SLAUGHTER, 2007, p. 102). Lukács, em sua Teoria do

Romance, notara a relação entre o caráter irônico do romance des-sacralizado (ironia essa “demoníaca”), a liberdade do escritor e um mundo moderno abandonado por Deus (1987, p. 90, 92-93). O herói do romance trilharia sua jornada iniciática na “aventura da interioridade” (ibid., p. 89), na busca de si mesmo e de aventuras e provações para testar a si mesmo. O tema aqui é a busca ou construção de sentido no mundo sem transcendência, no qual os valores ou- trora transcendentais precisam ser imanentizados, secularizados, re-significados.

Nesse mesmo espírito, Slaughter, quanto à questão do Direito de que falávamos mais acima, analisa a construção discursiva da doutrina pretensamente universal dos Direitos Hu- manos (na DUDH etc), chamando a atenção para o caráter tautológico das suas construções (p. 78): os direitos humanos são, nesses discursos, “os direitos dos homens”, sua inalienabili- dade é “inalienável”, sua imprescritibilidade não pode prescrever etc etc. A forma como tais construções fecham-se em si mesmas, sua “auto-referencialidade” tornam-nas proposições em algum sentido “vazias”, mas se seu conteúdo importa pouco para seu “valor verativo” (num sentido lógico), então é nos efeitos de suas propriedades formais e na sua estrutura, motiva- ções e operações, bem como nas “condições socioculturais” e “contextos que dão apelo a e- las” que se deve prestar atenção (ibid.)76.

A DUDH, continua Slaughter, em seu preâmbulo, postula uma dignidade humana e uma personalidade (jurídica) humana “inalienável” (resquício do jusnaturalismo); mas rearti- cula-as na forma de direitos prescritos (e, portanto, prescritíveis), de modo que a manifestação duma personalidade humana ostensivamente “inata” e “universal” é, na verdade, contingente

75“Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador

de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”.

76 É possível um paralelo aqui entre essas construções “auto-referentes” (quase “pura forma”) com a concepção soreliana de mito, conforme vimos na p. 40 deste trabalho.

às particularidades da relação social, econômica, cultural, política etc da qual a “personalida- de” humana é tanto parte quanto efeito (p. 79). De modo que o Direito, quanto aos direitos humanos, postula a existência primária daquilo mesmo que busca articular, reivindicando a

priori aquilo que, ao mesmo tempo, está a posteriori (ao mesmo tempo “antes” e “depois” da

lei). Ou seja, como Slaughter descreve, a personalidade e dignidade humana, para fins de di- reitos humanos, é a um só tempo “natural e positiva, pré-social e social, premissa e promessa” (ibid.). Essa proposição dupla (a posteriori e a priori) introduz uma dimensão “temporal” e uma trajetória de “enredo” (plot), o que torna a tautologia legal teleológica (tornando assim a personalidade humana um meio pelo qual os direitos humanos mesmos realizar-se-ão). O Di- reito Internacional, no que concerne aos Direitos Humanos, “positiva as categorias (...) inalie- náveis da lei natural” como “projetos reflexivos” de unir “dignidade humana à dignidade hu- mana”; em suma, “projetos teleológicos de tautologização” (p. 80).

Slaughter argumenta que a forma retórica do Direito faz do desenvolvimento integral da personalidade humana (no sentido da dignidade humana) uma questão de cultivo, “situando o ser humano capaz de ser sujeito de direitos e deveres” como produto desses mesmos direitos e deveres na forma dum sujeito que não está no ser, mas no vir-a-ser (ibid.). Segundo ele, o

Bildungsroman(romance de formação) é que historicamente teria tido o papel de tornar “legí-

vel” a estrutura de enredo das subjetivações dos direitos humanos e a sua “gramática narrati- va” (para que o homem torne-se positivamente aquilo que já seria, por direito natural).

O mesmo autor cita a importância do romance de Defoe (Robinson Crusoe) para a construção ou enunciação dum suposto “senso comum” (construído discursivamente): por e- xemplo, menção foi feita a esse romance pelos Delegados das Nações Unidas em 1948, que anunciavam, citando-o, falar em nome das “pessoas comuns” (common people) (p. 82). O ro- mance de Defoe teria tornado possível “articular as relações dialéticas entre o indivíduo e a sociedade na linguagem jurídica do Artigo 29” (das Nações Unidas) (ibid.). A difusão mesma desse romance teria sido em parte um efeito do colonialismo e do cosmopolitismo. Slaughter diz, de forma provocadora, que Robinson Crusoe atuou na função de “Deus” (ao garantir um princípio legal até então tido por imprescritível) ou, ao menos, como substituto da “Natureza”, em nome da qual se derivam axiomas de direitos humanos. No mesmo espírito, Slaughter ar- gumenta que a forma do romance tem levado a cabo, há mais de duzentos anos, a obra socio- cultural a qual os delegados das Nações Unidas aspiraram rearticular na forma de direitos in- ternacionais após a devastação da Segunda Guerra Mundial (p. 85).

O Bildungsroman teria sido uma ferramenta importante na naturalização de normas positivas dos direitos humanos e na propagação dum senso comum, ou seja, construção duma comunidade imaginária internacional. É interessante contrastar essas considerações sobre o uso político do romance de Defoe com a forma como Karl Marx ironiza o recurso à imagem do Robinson Crusoe como metáfora ilustrativa então em voga entre economistas (Marx o faz tanto no primeiro capítulo do primeiro volume do Capital77 quanto em sua Crítica da Econo-

mia Política78). Ele enfatiza e critica o papel do romance como construtor dum mito liberal no que isso possui (no caso, de forma reacionária) também de utópico.

77 MARX, 2005.

2. NAÇÃO, UTOPIA E MITO EM JORGE AMADO – A ÁFRICA E O