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2. ROMANCE, MITO, INICIAÇÃO E CATARSE

1.5 Mito, romance e nação

1.5.1 Mito e nação

Quanto às raízes religiosas do pensamento político, Carl Schmitt inicia sua Teologia Política da seguinte forma (optamos por citar longamente as considerações schmittianas pela sua relevância):

Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológi- cos secularizados. Não somente de acordo com seu desenvolvimento histórico, por-

que ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à medida que o Deus oni- potente tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua estrutura sistemática,

69 Mitologema, na definição de Karl Kerenyi, é um material mítico continuamente “revisitado, remodelado e plasmado, como

um rio de imagens sem fim”. KERENYI, K. Prolegomeni allo studio scientifico della mitologia, Torino: Boringhieri, 1983, págs. 15-17 apud PETRY, 2009, p. 21. Cf. p. 16 deste trabalho).

cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos. O Es- tado de exceção tem um significado análogo para jurisprudência, como o milagre pa- ra a teologia. Somente com a consciência de tal posição análoga pode ser reconheci- do o desenvolvimento tomado pelas idéias filosófico-estatais nos últimos séculos, pois, a idéia do Estado de Direito moderno ocupa-se com o deísmo, com uma teolo- gia e metafísica que repele o milagre do mundo e recusa o rompimento das leis natu- rais contido no conceito de milagre, o qual institui uma exceção através de uma in- tervenção direta, assim como, a intervenção direta do soberano na ordem jurídica vi- gente. O racionalismo do Iluminismo repudiava o caso excepcional em toda a forma. A convicção teísta dos escritores conservadores da contra-revolução pode, portanto, tentar fundamentar, ideologicamente, com analogias de uma teologia teísta, a sobe- rania pessoal do monarca (SCHMITT, Carl. Teologia Política, Del Rey, 8ª. Ed., 2006, Belo Horizonte, p. 35. Grifos nossos).

Afirma ainda:

(…) provavelmente fazia parte da sociologia do conceito de soberania daquela época [antigo regime] mostrar que a existência histórico-política da monarquia correspon-

dia a toda consciência da humanidade ocidental de então, e a configuração jurídica

da realidade histórico-política pôde encontrar um conceito cuja estrutura concor- dasse com a estrutura de conceitos metafísicos (ibid., p. 43. Grifos nossos).

E ademais:

Faz parte do conceito divino dos séculos XVII e XVIII a transcendência de Deus di- ante do mundo, assim como uma transcendência do soberano perante o Estado faz parte de sua filosofia estatal. No século XIX, tudo é sempre dominado, com cada vez mais expansão, por idéias de imanência. Todas as identidades, que retornam na doutrina política e jurídico-estatal do século XIX, baseiam-se em tais idéias de ima- nência: a tese democrática da identidade do governante com os governados, a teoria do Estado orgânica e sua identidade entre Estado e soberania, a doutrina jurídico- estatal de Krabbe e sua identidade entre soberania e ordem jurídica, finalmente, a doutrina de Kelsen da identidade do Estado com a ordem jurídica.

Após os escritores do tempo da restauração terem desenvolvido uma teologia políti- ca, a luta ideológica dos opositores radicais de toda ordem vigente voltou-se, com crescente consciência, mais contra a crença divina do que contra a expressão funda- mental mais extrema da crença em um poder e em uma unidade. Sob a evidente in- fluência de Augusto Comte, Proudhon assumiu a luta contra Deus. Bakunin lhe deu continuação com um ímpeto iraniano. A luta contra a religiosidade tradicional

tem, evidentemente, diversos motivos políticos e sociológicos: a posição conser-

vadora do cristianismo eclesiástico; a coligação entre trono e altar; a situação em que muitos autores eram “desclassificados”; a maneira como a arte e a literatura surgi- ram no século XIX, cujos geniais representantes, pelo menos em épocas decisivas de sua vida, foram renegados pela ordem burguesa, tudo isso ainda estava muito longe de ser conhecido e honrado nos detalhes sociológicos. A grande linha de desenvol- vimento vai, sem sombra de dúvida, no sentido de que, na massa dos instruídos, submergem todas as idéias de transcendência e se torna evidente um panteísmo da imanência mais ou menos claro, ou uma indiferença positivista contra toda metafísi- ca. Desde que a filosofia da imanência, que encontrou sua grandiosa arquitetura sis- temática na filosofia de Hegel, mantenha seu conceito de Deus, ela insere Deus no

mundo e acentua o Direito e o Estado a partir da imanência do aspecto objetivo (i-

Carl Schmitt é outro pensador que, assim como Lukács e Gramsci, também dialoga, em algum sentido, com Georges Sorel (FRAENKEL, 2006, p. 130) - a partir de pressupostos bem diferentes, evidentemente. Talvez não seria demasiado ousado propor, diante das citações acima, que a leitura que Schmitt faz de problemas culturais a partir de sua “teologia política” poderia dialogar com o conceito gramsciano de superestrutura, entendida como o sistema fi- losófico relacionado (de forma dialética) a determinada forma de vida70. Assim, a imanência seria a superestrutura da República moderna (deísmo etc); a imanência estaria para a Repúbli- ca, como o catolicismo conservador para a monarquia do antigo regime.

Se, como vimos, todo trabalho de arte é uma “anti-teodicéia” (MASLOW, 1967, p. 549) e o trabalho da arte, com o advento da modernidade, é “secularizar os mitos religiosos”, “des-divinizar o mundo” e “derrubar o paraíso, trazendo-o para a terra”, o trabalho da política na modernidade parece ser precisamente secularizar os conceitos teológicos e “inserir Deus no mundo”. Dialogando com Schmitt, Ernst Cassirer (1976, p. 274) vê na filosofia de Hegel (no que diz respeito ao problema do negativo na História) uma teodicéia.71 A respeito de Hegel é interessante notar como ele constrói e desenvolve sua filosofia (que é importantíssima, em termos de História das idéias, para a legitimação do Estado-Nação), com base em estruturas originalmente não só “teológicas”, mas esotéricas e iniciáticas72.

A essa altura, deve ter ficado claro que o conceito de “imanência” (bem como o de secularização) é importante no presente trabalho.

70 “Existe aqui uma relação de dupla implicação entre a estrutura e a superestrutura. Isto é, na mesma medida em que deter-

minada forma de vida (estrutura) geraria um sistema filosófico (superestrutura) correspondente, esse sistema atuaria sobre ela, renovando” (BIANCHI, 2012).

71O próprio Hegel escreve: “nosso modo de tratar o problema é, nesse aspecto, uma Teodicéia (…) o mal que se encontra no

mundo pode ser compreendido, e o Espírito pensante reconciliado com o fato da existência do mal” (Lectures on the Phi- losophy of History, p. 16 apud CASSIRER, 1976, p. 274).

72 A respeito de estruturas iniciáticas em Hegel, Magee ressalta (2001, p. 154) que Hegel fazia menção a uma “iniciação puri-

ficatória” operada pela Fenomenologia, a qual o punha num “estado alterado de consciência”, além da distinção entre su- jeito e objeto” (ibid.). O Filósofo hegeliano sendo um meio de manifestação do Espírito, é análogo ao poeta veículo das Musas (ibid.). Magee nota ainda o uso que Hegel faz do triângulo e do círculo como “formas simbólicas governando a arquitetura fundamental de seu sistema” (ibid.). Hegel enfatizava a tríade como um elemento da philosophia perennis (i- bid.). O mesmo autor analisa a importância de elementos do pensamento do místico Jakob Böhme na filosofia hegeliana (p. 60, 138) e também elementos maçônicos via Lessing e Goethe (p. 55, 254). No prefácio da Fenomenologia do Espíri-

to Hegel escreve que “a vida do Espírito não é a vida que se atemoriza diante da morte e conserva-se intacta da devasta- ção, mas antes é a vida que suporta a morte e nela se conserva. O Espírito só atinge sua verdade quando, no seu dilace- ramento absoluto, encontra a si mesmo”. Magee compara a Fenomenologia a uma iniciação e argumenta que esse trecho dialoga com a imagem do Osíris egípcio e Dionísio, ambos heróis míticos (deuses) que foram dilacerados e ressuscitaram (p. 131). Dialogaria também com o mito maçônico de Hiram Abif, modelo mítico com o qual todo Mestre Maçom, em sua iniciação ritual, identifica-se (ibid.). A questão é evidentemente complexa; o que queremos destacar, na elaboração de filosofemas em dálogo com mitologemas (lembrando que, como vimos, a filosofia mesma de certa forma originou-se dos mitos, assim como a química moderna deriva da alquimia etc) é esse mesmo movimento de “secularização” e re- apropriação humanista de estruturas iniciáticas e míticas. Cf. WALSH, 1978.

Seguindo das teorias do Estado à nação mesma (o Estado-Nação), podemos ver que José Murilo de Carvalho também dialoga com Carl Schmitt, mostrando que a questão nacio- nal passa necessariamente pela questão do “mito”:

A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. É por meio do imaginário que se pode atingir não só a cabeça, de modo es- pecial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, or- ganizam seu passado, presente e futuro. O imaginário social é constituído e se ex- pressa por ideologias e utopias, sem dúvida, mas também [...] por símbolos, alego-

rias, rituais, mitos” (ibid., 1990, p. 10. Grifos nossos).

Nesse ponto coloca-se na História a questão da eleição e seleção, tal como ocorre na arte (a pintura, por exemplo) e na literatura. A questão do mito, como vimos, está entrelaçada com a da História, afinal

A criação de um mito de origem é fenômeno universal que se verifica não só em re- gimes políticos mas também em nações, povos, tribos, cidades […] o mito de origem procura estabelecer uma versão dos fatos, real ou imaginada, que dará sentido e legi- timidade à situação vencedora […] o processo de “heroificação” inclui necessaria- mente a transmutação da figura real, a fim de torná-la arquétipo de valores ou aspi- rações coletivas (ibid., 1990, p. 13 e 14).

Em verdade, construção do mito e construção da nação caminham lado a lado, afinal, não se pode naturalizar o conceito de nação no sentido moderno de país, Estado-Nação etc.

Antes de 1884 “a palavra nación significava simplesmente “o agregado de habitan- tes de uma província, de um país ou de um reino” (...) Mas agora era dada como “um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de governo comum” (HOBSBAWM, 1992, p. 27).

O historiador Hobsbawm também nota que

“Governo” não foi ligado ao conceito de nação até 1884 (em Espanha). “O conceito de nação é historicamente muito recente” (ibid., p. 30).

A idéia da “autodeterminação dos povos” que ganha força na Revolução Francesa, é uma idéia revolucionária, explosiva, presente no começo mesmo da Primeira Guerra Mundial, quando os nacionalismos locais, no caso o sérvio, põem em xeque a legitimidade do Império Austro-Húngaro (multinacional).

“Nacionalismo” e “patriotismo”, antes do advento do Estado-Nação, nada mais eram do que o amor à terra, aldeia ou vila em que se nasceu. A lealdade ao monarca fazia parte dum sistema de pactos de lealdade entre senhores, vassalos etc. Não necessariamente o homem que um camponês chamava de seu rei falava a mesma língua que ele ou era da mesma nação que ele (“nação” entendida como simples comunidade étnico-lingüística, às vezes espalhada, não necessariamente relacionada sequer a um mesmo território).

A nação, em suma, é uma “comunidade imaginária”, cujo senso de identidade é cons- truído historicamente (ANDERSON, 1983). O livro, em língua vernácula, surge como possí- vel primeira mercadoria produzida em massa, criando uma comunidade de leitores e mesmo uma “língua nacional”, ao eleger e/ou construir um dos dialetos ou variantes lingüísticas como língua padrão literária.