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4 ENTRE DISCURSOS E PRÁTICAS: CAMINHOS E CONTRADIÇÕES

4.2 Algumas considerações

Consideramos oportuno destacar alguns pontos após a totalidade do que foi conversado e observado, e antes de partir para as considerações finais.

Algo que julgamos positivo é o fato dos dois professores se utilizarem dos aprendizados que obtém nas formações pedagógicas de suas áreas de conhecimento, ocorridas a cada 15 dias, como mencionado anteriormente. Certamente, dentro dos objetivos de tais formações, seu intuito não é ser o único momento de estudo e de ideias para o planejamento individual do professor, como parece ser o caso de Cláudio, todavia, frente à grande demanda de atribuições desse profissional, é reconfortante ver que as formações são vistas como algo a somar, para além de mais uma obrigação docente.

Observamos, enquanto fator negativo que precisa ser revisto na escola, que os professores não têm acesso ao laudo dos alunos que frequentam o AEE, o que mostra uma lacuna entre os profissionais que fornecem o apoio especializado, entre a gestão escolar e entre os professores que recebem esses alunos em sala. Como exemplo, podemos citar o fato de que havia, na sala de Marcos, desde o início do ano letivo, uma aluna com laudo, cuja situação ainda não haviam lhe explicado formalmente. O docente não sabia nem mesmo a idade da aluna, tampouco a história e suas reais dificuldades. Essa falha na comunicação interna da escola se configura como um empecilho, cujo principal prejudicado é o aluno, uma vez que dificulta a real inclusão em sala de aula, na medida em que incluir é bem mais do que inserir, o que não é possível sem que o professor conheça as necessidades do aluno.

Apesar de tal situação não condizer com as concepções dos sujeitos entrevistados, principalmente os gestores, há sinais indicativos de que, em meio às cobranças avaliativas externas, o aluno com necessidades especiais, quando com laudo, seja apenas um mero ocupante de espaço, uma vez que é dispensado das avaliações, não contando, portanto, para a medição do rendimento da escola. Nesse sentido, observamos que parece ser insuficiente o

interesse dos professores e gestores frente à aprendizagem desse aluno “pós-diagnosticado”, se considerarmos que, se o mesmo não conta para os resultados, não há uma efetiva preocupação, ou um empenho, para que seu avanço cognitivo aconteça realmente. Nas palavras de Cláudio, ao falar das avaliações, esse aluno “nem flui, nem contribui”. Contudo, essa é uma questão mais ampla que não cabe aqui ser discutida em sua totalidade.

Um ponto interessante a ser elencado é o fato de que, muito embora não esteja entre nossos objetivos a comparação entre os modos de ser, pensar e trabalhar dos dois professores, tendo em vista que este não se trata de um estudo comparado, é impossível não fazer relações entre os discursos e as práticas dos dois e, mais do que isso, seria um empobrecimento da análise, uma vez que tanto pode ser refletido a partir de algumas diferenças tão evidentes. Frente a tal ponto de vista, ressaltamos que, ainda que os dois professores tenham se utilizado, em suas narrativas, do discurso que enaltece uma prática capaz de, efetivamente, educar o aluno numa perspectiva ampla, com vistas a uma mudança de pensamento e de postura, frente à sociedade, podendo, assim, torná-la mais plural, democrática, e ainda que ambos, cada um a sua maneira, tenha suas crenças em relação à função importante dessa educação para a sociedade, os conceitos que norteiam suas ideias sobre o que vem a ser uma prática docente nessa direção, pouco ou em nada se assemelham.

Compreendemos na fala do professor Marcos a dedicação e o sonho de uma educação diferenciada, ainda que isso soe como uma oposição não só ao Sistema no qual está inserido, mas aos próprios colegas de profissão que, parecendo já ter desistido do sonho que deveria ser comum, o constrangem dizendo-lhe que é vão tanto esforço e que a desistência é iminente. Com efeito, não é possível julgar tal pessimismo, na medida em que é tangível deparar-se com professores que beiram a exaustão, frente a tantos dissabores, descaminhos, desafios da profissão.

Cláudio, por sua vez, apresenta uma compreensão na qual quase tudo perpassa pela imposição da disciplina e de valores que, em seu entender, devem ser inculcados nos alunos desde cedo, enquanto se pode “moldá-los, doutriná-los”. Na perspectiva desta opinativa concepção, persiste a ideia de que, enquanto professor, é seu dever contribuir para essa doutrinação, palavra que tanto gosta, enfatiza, enaltece. Todavia, seus conceitos de disciplina e de valores são bastante peculiares e, se podemos assim dizer sem ter a intenção de fazer juízo de valor, são também, por vezes, antidemocráticos.

Outro ponto a ser ressaltado é quando tivemos acesso a provas das disciplinas de Matemática e de Geografia, elaboradas anteriormente a nossas visitas, pelo professor Marcos e pelo professor Claudio, respectivamente. Pudemos obsevar que a prova de Marcos tinha um

caráter interpretativo, contendo questões que instigavam o aluno a pensar, enquanto a prova elaborada por Claudio tinha características mais tradicionais, não atraentes ao aluno e exigindo respostas que não requeriam a necessidade de interpretação ou reflexão, mas de memorização (segundo suas palavras, em História e Geografia “não tem muito o que

interpretar”).

Trata-se de um fato instigante uma vez que, uma prova da área de exatas, vulgarmente entendida como mera resolução de cálculos e memorização de fórmulas, quando bem elaborada e levando-se em consideração uma concepção educacional para além do tradicional, exige mais reflexão do aluno do que uma prova da área de Ciências Humanas. Recursos como uma charge, um mapa, um texto, podem compor a prova como efetivas estratégias para melhor avaliar a aprendizagem dos conteúdos pelo aluno, dependendo do quanto o professor se empenha ou não em sua elaboração. Conquanto, não podemos ignorar a situação da falta de recursos da escola, cujo acesso dos professores ao material de impressão para as provas estava, havia um tempo, limitado. Tal situação não justifica a elaboração de provas pouco ou nada interpretativas, mas atesta a situação complicada na qual o professor brasileiro se encontra, bem como a realidade da escola pública na qual trabalha.

Fatos como este justificam o porquê de não termos feito exigências quanto ao conteúdo das aulas ou mesmo quanto a uma ou outra área do conhecimento, para a observação da prática dos sujeitos em sala de aula, uma vez que acreditamos ser nas atitudes e sutilezas que o saber-fazer do professor se mostra em sua essência. É por meio da observação de características dessa natureza que a prática nos interessa, sendo, na junção das pequenas atitudes docentes, que compreendemos como ocorre sua contribuição ou não para a formação do aluno na direção que julgamos necessária para uma melhoria, quiçá transformação social.

Asseveramos que, na ilusão de paradigmas que parecem ter resistido às mudanças do mundo em volta da escola, na cegueira de uma prática narcisista e, por isso, engessada, e na arrogância de um poder impregnado de autoritarismo e atrelado à ingenuidade de que medo equivale a respeito, é possível que o professor aja na direção oposta do que pretende, ou se diz pretender, promovendo, ainda que não queira ou perceba, uma involução no processo de aprendizagem do aluno, mesmo quando pensa estar fazendo o contrário.

Em vista disso, compreendemos que não basta um discurso pautado nas leis e um currículo preenchido com cursos e experiências diversificadas. É preciso querer, mas querer ativamente, e é preciso que esse querer se faça constante no momento pedagógico, ainda que o momento seja de revisão, de descanso, de ludicidade, de pós-avaliações, de dias de reposição de aulas. É preciso que a atividade que esse querer produz seja guiada por reflexão,

e que essa reflexão seja permeada de humildade, posto que é somente sendo humilde que o professor se permite saber que há sempre mais o que aprender, seja com a leitura de um teórico, com uma reunião de pais e mestres, com um momento de sala dialogando livremente com os alunos numa relação de cumplicidade e, por que não, de afetuosidade.