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Narrativas e práticas docentes: Em busca de uma síntese

4 ENTRE DISCURSOS E PRÁTICAS: CAMINHOS E CONTRADIÇÕES

4.3 Narrativas e práticas docentes: Em busca de uma síntese

Através das narrativas dos professores, conhecemos suas trajetórias e suas concepções referentes tanto à profissão, quanto ao seu papel dentro da escola em que atuam, bem como, juntamente às observações em sala, sua prática, compreendendo os caminhos e as contradições desta, identificando contrassensos em suas ações. Por meio do diálogo que estabelecemos com os sujeitos e as visitas as suas aulas, conhecemos mais do que o que sabem ou pensam saber, as expressões do que são. Pudemos verificar, ainda, dentro de suas salas de aula, a relação de harmonia e incoerência, sensos e contrassensos entre o que narram e o que praticam.

Em síntese, apesar dos dois professores compreenderem a importância de seus papéis, enquanto tais, para uma educação que possibilite o desenvolvimento da autonomia e da criticidade discente e, com isso, a mudança e melhoria da sociedade, no momento da prática em sala de aula, um deles se perde no trilhar desse caminho, à medida que mantém uma relação, por vezes, pouco dialógica com os alunos, dificultando o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa na direção que aqui nos referimos.

A relação que observamos entre discurso e prática nos mostra harmonia e incoerência quanto ao que, mais especificamente, o professor Cláudio pensa e faz em sala de aula, revelando certas contradições na medida em que há a crença numa educação escolar que seja fundamental para a vida, no que tange a valores, reconhecendo o espaço da escola como possibilidade para a aquisição destes, e a crença na importância dessa educação para a mudança da sociedade em que vivemos, mas não há a promoção do diálogo, a abertura ao debate, a discussão política de uma forma apartidária, ou a discussão e expressão de outros pontos de vista. Nesse sentido, afirmamos ser o professor, por um lado, coeso na prática, uma vez que profere um discurso firme sobre disciplina discente e autoridade docente e assim age em sala de aula, mas, por outro, contraditório, uma vez que pensa estar contribuindo positivamente para a melhoria da sociedade no quesito pluralidade, democracia, justiça social. É convicto de que mantém uma postura “bem sucedida” frente aos demais professores que, como dissera, “já perderam a moral”.

O professor Marcos, por sua vez, mantém um discurso em harmonia com a prática, a qual realiza com base nas teorias pedagógicas que conheceu no percurso de sua formação e com base em suas vivências pessoais, bem como nas profissionais, anteriores à posse do concurso para professor da rede pública. Acredita na importância de sua atuação enquanto professor para a mudança social, a partir do que profere a seus alunos (grande parte destes sem maior apoio da família, tampouco do Sistema) e, mais do que isso, sente-se responsável por esses alunos, preocupando-se, ao fim de cada ano letivo, com a continuidade do trabalho que iniciara, quando os mesmos migrarem para outras escolas71. Verificamos que o professor tem, ainda, paixão, tem esperança, não aquela do verbo esperar, mas a do verbo

esperançar, como assinala Paulo Freire (2011).

Apesar de não fazer parte de nossos objetivos analisar a relação do professor com os demais professores, podemos dizer que a prática de Marcos entra em conflito com o discurso que profere somente ao passo que demonstra amor pela profissão e valoriza o papel da educação escolar para a vida além da escola, enaltecendo o valor do grupo, do trabalho em equipe, mas, como observara seu coordenador pedagógico72, não compartilha seus saberes com seu próprio grupo de colegas, não busca uma prática de excelência num âmbito maior, não divide, na escola, suas experiências tanto quanto poderia.

Frente a todas as situações aqui destacadas, conseguimos compreender (ponto central de nossos objetivos) a maneira como esses dois professores trabalham em sala, como trilham os caminhos (entre sensos e contrassensos) de suas práticas, com vistas a uma educação capaz de promover uma melhoria em nossa sociedade, de forma que venha a se tornar mais plural, a partir de sujeitos/alunos protagonistas, reflexivos, autônomos, solidários, democráticos.

Compreendemos que Marcos, à revelia de todas as contradições que permeiam o ofício de professor, como algumas destacadas por Charlot (2013a), as quais são frutos de um Sistema falho (que, além de pouco contribuir com esse ofício, parece, por vezes, impor-lhe barreiras) e de uma sociedade inexorável em suas críticas, realiza sua prática de forma a contribuir de maneira significativa e positiva com uma educação que, gradativamente, proporciona a formação de alunos com pensar autônomo, autoconfiança, senso de justiça, criticidade e consciência de que podem e devem reivindicar o direito de expressar suas

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A preocupação do professor, como nos foi relatada por ele em determinado momento da observação em sala de aula, deve-se, principalmente, ao fato dos alunos terem de ser transferidos para escolas vizinhas (tendo em vista que a escola em questão não contempla o Ensino Fundamental II) onde se depararão com um novo contexto, contendo alunos bem maiores e, frente a isso, o medo do risco de estarem em situação de vulnerabilidade, no convívio com esses alunos mais velhos.

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opiniões, ainda quando estas divirjam da maioria. Alunos que, apesar da pouca idade, são cônscios da realidade social a sua volta e da existência da possibilidade de mudá-la, em virtude da relação de troca, de boa afetividade e de diálogo proporcionada pelo professor, o qual afirma que “plantando determinadas sementes, a gente [professor] espera que, junto com

a família e as políticas públicas, rendam aí um pouquinho de sucesso”.

Compreendemos também que Cláudio, por sua vez, não atenta para questões fundamentais no momento de sua prática, o que a empobrece, consequentemente, atingindo a educação e limitando oportunidades de desenvolvimento. Admitimos que a questão vai bem além da necessidade de uma mudança da prática, na medida em que envolve a premência de uma mudança de paradigma pessoal. No que crê o professor? Acreditamos que um trabalho fundamentado com leituras de teóricos do ramo educacional e pedagógico, na medida do possível e dentro das possibilidades que sua formação lhe conferiu e/ou dentro de seu interesse em investir na profissão que escolhera para sua vida, lhe ajudaria no trabalho docente. E, nesse sentido, vale questionar se houve mesmo tal escolha ou o fato de ser professor, ainda que graduado e especializado, trata-se de um acomodamento enquanto sua sonhada aprovação em outro concurso não acontece, um ganha-pão que tem valido a pena frente à experiência salarial negativa em um outro estado, cujas condições são ainda mais sucateadas. Um trabalho, portanto, no qual o único contento do professor é o sustento que paga suas contas, mas que, ainda assim, não é realizado com a devida seriedade, posto que gasta as horas deste desenvolvendo atividades que pertencem a outro, em detrimento de uma prática satisfatória.

Sabemos que, na realidade das faculdades brasileiras, não raro deparamo-nos com profissionais muito bons em sua área de conhecimento, mas pouco ou nada preparados na área pedagógica, na didática, na prática, o que é compreensível, apesar de preocupante. Todavia, ao depararmo-nos com tal situação numa escola pública municipal, cujo requisito para tomar posse do cargo de professor do Ensino Fundamenta I é a formação em Pedagogia, é espantoso saber que há professores que não têm um apresto que dê subsídios às aulas que ministram aos alunos que, antes de mais nada, são crianças que necessitam de situações de aprendizagem ricas e diversificadas para aprenderem efetivamente. Tão, senão mais espantoso ainda, é saber (e ver) que tais professores depreciam as teorias pedagógicas que tiveram a oportunidade de conhecer durante a faculdade, mas não as assimilaram, seja porque não puderam, seja porque não quiseram (na medida em que, convictamente, as renegam).

Tal situação reflete a necessidade da Pedagogia enquanto base da prática docente para que esta possa ser pedagógica e, consequentemente, nos remete à preocupação de

Libâneo (apud Franco 2013) apresentada no capitulo 3, que também é nossa, referente à prática apenas como técnica, desprovida da fundamentação teórico-pedagógica.

A dedicação do profissional da área da educação deve ir muito além de cursar uma faculdade e mesmo uma pós-graduação, ou de ser aprovado em provas de determinado concurso público (tendo em vista que, como muito discutido pelos pesquisadores da área de avaliação, pouco medem o conhecimento, tampouco, nessa perspectiva, as capacidades do profissional em sala de aula). Uma efetiva prática docente requer leitura, pesquisa, flexibilidade, criticidade, humildade, compreensão do que se pensa e mesmo do que se sente, como julgamos permitido por meio das narrativas. A partir dessa compreensão, dá-se o primeiro passo para a melhoria que, por mais que tanto se fale sobre, só o professor pode realmente fazer, uma vez que o mundo da sala de aula é outro, não sabido por quem não atua nele.