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Após este percurso histórico em busca da memória do vestibular e dos processos de ingresso no ensino superior, não há como deixar de apontar a influência das condições de produção no discurso sobre a educação. Compreendemos que não há como analisar a constituição do ENEM sem examinar essa historicidade e as redes de sentido produzidas a partir de diferentes contextos. Olhar para o passado nos permite compreender que, quando se alteram as condições de produção, essas alterações se manifestam na constituição do sujeito e do discurso, pois “o sentido resulta de processos de significação com a inscrição da língua, não fechada em si mesma e capaz de falha, na história” (ORLANDI, 2012, p. 22).

Mudam-se os governos e a economia, e a educação precisa dar conta das demandas sociais de cada momento histórico. Em meio a essas transformações, observamos a retomada constante da necessidade de ruptura com o passado. O novo irrompe no discurso oficial como aquilo que vem para suprir as defasagens e dificuldades tanto do processo educacional quanto da sociedade em geral. Contudo, dificilmente há rompimento. Enquanto se apagam alguns sentidos para que outros possam emergir, a memória se faz presente e os já-ditos e não-ditos se ressignificam, num constante ir e vir de significados.

O discurso do novo se funda no passado. Ao negar o vestibular, o discurso sobre o ENEM o retoma. Dessa forma, os sentidos produzidos em torno do ENEM não são de substituição, mas de reformulação. A nomeação vestibular permanece e, ao ouvirmos ENEM, ainda ressoam imagens relacionadas aos antigos meios de ingresso: processo seletivo, ingresso no ensino superior, aprovação, reprovação, concorrência, sucesso ou mesmo fracassos. Essas ressonâncias produzem um efeito de memória em que o novo e o velho se fundem.

Figura 5 – Sítio de significação em torno das palavras ENEM e VESTIBULAR21

Fonte: elaborado pela autora.

A análise da carta de apresentação dos Guias que constituem o corpus analisado nos faz compreender que no discurso do Governo Federal, endereçado aos participantes do ENEM, irrompe uma tentativa de afirmação das políticas públicas de avaliação. Nesse sentido, os Guias oferecidos aos participantes do ENEM 2012 e 2013 têm um funcionamento que vai muito além do manual de redação. Entendemos que, nas cartas de apresentação analisadas, o discurso oficial produz um efeito de sentido de prefaciamento, na medida em que se constitui como aquilo que fala antes em relação aos documentos apresentados, numa linguagem promocional.

A ênfase dada à transparência no processo de avaliação demonstra uma preocupação com a imagem pública não só do ENEM como processo de avaliação, mas remete ao discurso democrático dos governos populares, que enfatiza a participação da população, por meio do acesso à informação e às decisões governamentais.

Contudo, essa linguagem promocional não está relacionada apenas aos Guias, ela ultrapassa esse espaço surgindo como uma tentativa de fortalecimento de uma política pública que materializa a ideologia do governo do Partido dos trabalhadores, no discurso da

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No decorrer desta pesquisa, procuramos criar imagens representativas das redes de sentido instauradas a partir da materialidade do corpus analisado. Em todas essas representações, os pontilhados representam a porosidade nas fronteiras dos sentidos, que são sempre capazes de deslizar e de serem outros.

transparência e da inclusão. Para tanto, utiliza-se da evidência de consenso, numa ilusão de unidade e completude, própria do discurso da democracia, sustentado na contradição.

3 (ENTRE) SABERES: EFEITOS DE SENTIDO E DA MEMÓRIA NO DISCURSO SOBRE A REDAÇÃO DO ENEM

[...] Eu vejo o futuro repetir o passado Eu vejo um museu de grandes novidades [...] Cazuza

A fim de que possamos compreender o funcionamento discursivo das competências avaliadas na redação do ENEM, em GP 2012 e GP 2013, consideramos necessário investigar a concepção de língua em funcionamento na história da educação brasileira e conhecer as condições de produção sócio-históricas desse discurso, para analisarmos como tais concepções reverberam na constituição dos Guias. Então, nesta etapa de nossa investigação, realizamos um movimento em busca de reconstituir a memória do ensino de Língua Portuguesa e percorremos um caminho que está (in) diretamente interligado à trajetória dos vestibulares.

Alvo de críticas e considerações, o ensino de Língua Portuguesa nas escolas passa continuamente por processos de reestruturação. Em nossa abordagem, consideramos que os saberes e os sentidos que hoje circulam sobre a história do ensino de Língua Portuguesa não podem ser tomados como únicos, já que não foi conferida a todos os discursos a possibilidade de circular. Apoiamos essa afirmação nas ideias de De Angelo (2005, p. 13), quando pondera que

O ensino tradicional de Língua Portuguesa não se esgota na imagem que nos é dada a conhecer sobre ele, ou seja, a de um todo homogêneo, um ensino que se repetiu sem alterações ao longo dos tempos; entendo que essa é apenas uma das imagens possíveis, que, por advir da esfera científica e oficial, tem silenciado a emergência de outros sentidos.

Consideramos que, pela interpelação ideológica22, alguns sentidos circulam enquanto outros se calam ou são forçados a calar. A maioria dos discursos institucionalizados sobre o ensino da língua são produzidos no âmbito acadêmico ou em documentos oficiais, e os efeitos de memória em relação ao tema se constituem ideologicamente, imersos na historicidade. Nesse processo, enquanto uns sentidos são legitimados e passam a ser reproduzidos, outros são silenciados, já que, nas palavras de Orlandi (2008), a linguagem é política e todo poder é

22 Para Pêcheux (1975, p. 163) “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação do sujeito com a FD que o domina”.

acompanhado por um silêncio23 em seu trabalho simbólico. Dessa forma, nosso estudo apresenta uma análise dos sentidos que foram (re)produzidos acerca do ensino de Língua Portuguesa, especialmente no que concerne aos textos, e que não esgotam nem representam a totalidade de uma história repleta de silenciamentos. Além disso, neste capítulo, buscamos problematizar as redes de sentido produzidas em torno dos saberes linguísticos, compreendendo os efeitos da ideologia e da história nesse processo discursivo.