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Ressonâncias do Ensino de Tradição Gramatical/a Língua Imaginária

3.3 ENTRELACE DE SABERES

3.3.1 Ressonâncias do Ensino de Tradição Gramatical/a Língua Imaginária

Ao compormos o primeiro Grupo Discursivo (GDI), procuramos encontrar regularidades que nos permitissem pensar em como a concepção de língua imaginária funciona nas matrizes de referência para a avaliação da redação do ENEM. Se partíssemos da leitura superficial do documento, poderíamos afirmar que a concepção de língua imaginária irrompe apenas na primeira competência – responsável pelos aspectos gramaticais – mas ao mergulharmos no texto em busca de ultrapassar o efeito de evidência, compreendemos que essa língua idealizada surge, produzindo sentidos ao longo de todo o documento.

Assim, o primeiro grupo discursivo (GD1) foi organizado tendo como referência as SDRs que correspondem a duas das competências avaliadas, relacionadas a outras sequências

recortadas do corpus da pesquisa e que permitem a construção de redes parafrásticas em torno dos sentidos que se repetem, gerando ressonâncias discursivas. No quadro a seguir, sublinhamos algumas marcas linguísticas que correspondem à metalinguagem, ao passo que destacamos com o uso de itálico as estruturas das quais lançamos mão em nosso gesto de interpretação e que constituem as redes parafrásticas analisadas na sequência.

Quadro 7 – Grupo Discursivo I

GD 1 – Ressonâncias do ensino de tradição gramatical/a língua imaginária SDR1 Competência I (2012) Demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita.

SDR2 Competência I (2013) Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa.

SDR3 Competência IV (2012/2013) Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.

GP 2012 SD 1: Requisitos básicos do texto dissertativo-argumentativo Ausência de marcas de oralidade e registro informal.

Precisão vocabular

Obediência às regras gramaticais de:  Concordância nominal e verbal;  Regência nominal e verbal;  Pontuação;

 Flexão de nomes e verbos;  Colocação de pronomes átonos;  Grafia das palavras;

 Acentuação gráfica;

 Emprego de letras maiúsculas e minúsculas; e  Divisão silábica na mudança de linha (translineação)

SD 2: Procure utilizar as seguintes estratégias de coesão para se referir a elementos que já apareceram anteriormente no texto:

a) substituição de termos ou expressões por pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, advérbios que indicam localização, artigos;

b) substituição de termos ou expressões por sinônimos, antônimos, hipônimos, hiperônimos, expressões resumitivas ou expressões metafóricas;

c) substituição de substantivos, verbos, períodos ou fragmentos do texto por conectivos ou expressões que resumam e retomem o que já foi dito; e

d) elipse ou omissão de elementos que já tenham sido citados anteriormente ou sejam facilmente identificáveis.

SD 3: Resumindo: na elaboração da redação, você deve, pois, evitar: a) frases fragmentadas que comprometam a estrutura lógico-gramatical;

b) sequência justaposta de ideias sem encaixamentos sintáticos, reproduzindo hábitos da oralidade;

c) frase com apenas oração subordinada, sem oração principal;

d) emprego equivocado do conector (preposição, conjunção, pronome relativo, alguns advérbios e locuções adverbiais) que não estabeleça relação lógica entre dois trechos do texto e prejudique a compreensão da mensagem;

e) emprego do pronome relativo sem a preposição, quando obrigatória; e

f) repetição ou substituição inadequada de palavras sem se valer dos recursos oferecidos pela língua (pronome, advérbio, artigo, sinônimo).

GP 2013 SD 4: Além dos requisitos de ordem textual, como coesão, coerência, sequenciação, informatividade, há outras exigências para o desenvolvimento do texto dissertativo- argumentativo:

Ausência de marcas de oralidade e registro informal. Precisão vocabular; e

Obediência às regras gramaticais de  Concordância nominal e verbal;  Regência nominal e verbal;  Pontuação;

 Flexão de nomes e verbos;  Colocação de pronomes átonos;  Grafia das palavras;

 Acentuação gráfica;

 Emprego de letras maiúsculas e minúsculas; e  Divisão silábica na mudança de linha (translineação).

SD 5: Procure utilizar as seguintes estratégias de coesão para se referir a elementos que já apareceram anteriormente no texto:

a) substituição de termos ou expressões por pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, advérbios que indicam localização, artigos;

b) substituição de termos ou expressões por sinônimos, antônimos, hipônimos, hiperônimos, expressões resumitivas ou expressões metafóricas;

c) substituição de substantivos, verbos, períodos ou fragmentos do texto por conectivos ou expressões que resumam e retomem o que já foi dito; e

d) elipse ou omissão de elementos que já tenham sido citados anteriormente ou sejam facilmente identificáveis.

SD 6: Resumindo: na elaboração da redação, você deve, pois, evitar: a) frases fragmentadas que comprometam a estrutura lógico-gramatical;

b) sequência justaposta de ideias sem encaixamentos sintáticos, reproduzindo hábitos da oralidade;

c) frase com apenas oração subordinada, sem oração principal;

d) emprego equivocado do conector (preposição, conjunção, pronome relativo, alguns advérbios e locuções adverbiais) que não estabeleça relação lógica entre dois trechos do texto e prejudique a compreensão da mensagem;

e) emprego do pronome relativo sem a preposição, quando obrigatória; e

f) repetição ou substituição inadequada de palavras sem se valer dos recursos oferecidos pela língua (pronome, advérbio, artigo, sinônimo).

Fonte: elaborado pela autora

Na avaliação da redação do ENEM, há uma competência que trata especificamente dos aspectos gramaticais e que aparece em ambos os documentos constituintes do corpus desta pesquisa. Ao compararmos a constituição de GP 2012 e GP 2013, identificamos a reformulação36 dessa competência.

A filiação à gramática normativa está materializada não só na formulação das competências SDR1, SDR2 e SDR3, mas também sintagmatizada nas orientações e na descrição de cada competência. Além do uso dos termos norma padrão e modalidade formal

36 No terceiro capítulo, discorremos sobre as redes de sentidos produzidas em torno da reformulação da primeira competência, por isso aqui nos deteremos às ressonâncias dos saberes linguísticos.

– que nos remetem à existência de parâmetros a serem seguidos –, os documentos apresentam a descrição dos aspectos necessários para que o candidato seja considerado competente em relação ao uso da norma padrão/modalidade formal da língua escrita/da Língua Portuguesa.

Na SD1, encontramos marcas que nos reportam à padronização dos dizeres, à busca pelo controle de sentidos, que sempre falha, pois há algo que escapa, já que o equívoco é constitutivo da língua. Entre os requisitos básicos para o texto dissertativo-argumentativo, apresenta-se a ausência de marcas da oralidade e de registro informal. Para Indursky (2010, p. 37), “a oposição língua/fala [...] exclui a atividade do homem com/na língua e, nesse mesmo movimento, dela exclui toda e qualquer relação com a exterioridade”. É como se a heterogeneidade fosse negada ao sujeito, uma vez que não se admite a variedade. Contrariamente, é na ausência que os sentidos proibidos se deixam emergir. Assim, ao denegar37 a oralidade, a voz que fala no documento marca essa heterogeneidade, que é constitutiva do discurso.

Ainda na SD1, são enumeradas as regras próprias do texto escrito, com ênfase na língua como código. Nessa SD, encontramos marcas da separação da dicotomia língua e fala, quando entre os requisitos básicos para o texto dissertativo-argumentativo, exige-se a ausência de marcas da oralidade e de registro informal. Também na SD1, são enumeradas as regras próprias do texto escrito, com ênfase na língua como código.

As SDs que compõem GD1 apresentam como regularidade a utilização da metalinguagem, que enfatiza aspectos tanto da morfologia quanto da sintaxe na construção dos textos. O texto produz efeitos de sentido relacionados à gramática prescritiva, que dita regras do bem escrever e, de certa forma, controla o que pode (deve) ser dito (escrito). Essa regulação é reforçada pelo uso de verbos no imperativo, como podemos observar em SD5; pela utilização do verbo dever, na SD3 e SD6; e também pela adoção dos termos obediência (SD1 e SD4) e exigências (SD4).

As nomenclaturas gramaticais utilizadas (sublinhadas no GD1) marcam a irrupção de sentidos filiados ao discurso da gramática normativa, sentidos já naturalizados, que compõem a memória do ensino de Língua Portuguesa, inicialmente pautado exclusivamente na normatização, na língua imaginária, uma língua idealizada em que não há espaço para a falha. Ao se sobrepor a norma, a língua do falante ideal, denega-se o espaço das especificidades, da

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Com base nas leituras de Authier- Revuz (1990), entendemos a denegação como um mecanismo de defesa em que o sujeito se recusa a reconhecer um pensamento ou desejo como seu, mesmo que tal desejo ou pensamento tenha sido expressado anteriormente, de forma consciente.

língua fluida que permeia relações sociais e constitui o sujeito em sua historicidade. No que concerne à relação entre língua, sujeito e história, Orlandi (2009, p. 110-111) nos mostra que:

[...] a gramática em seu processo de produção faz muito mais do que ser um lugar de conhecimento ou um repositório de normas. Ela é a forma da relação da língua com a sociedade na história, realizada por um sujeito também representado no modo como a sociedade se organiza na história. Essa é a posição sujeito que somos convidados a ocupar quando aprendemos a gramática. Ao entendê-la, nos submetemos.

Ao analisarmos as SDs recortadas para compor o GD1, em consonância com as SDRs, compreendemos a existência de sítios de significação, cujas regularidades fazem emergir, dentre os sentidos possíveis, aqueles ligados à norma, à língua imaginária. Assim, compreendemos que no GD1 há presença de um discurso autoritário, que dita normas. Pela adoção da linguagem imperativa e pelo uso da metalinguagem, nessa trama discursiva que funciona de forma espiralada e contínua, retomando sentidos de diferentes memórias associadas ao ensino de Língua Portuguesa, irrompe a concepção de língua imaginária, que passeia da linguística à tradição gramatical, conforme representado na imagem a seguir.

Figura 7 – Representação das ressonâncias discursivas da língua imaginária no GD1

Fonte: elaborado pela autora.

Em nossa análise, há ressonâncias discursivas que nos indicam “uma regularidade inscrita na memória configurada pela divisão não-visível, mas produtiva e consequente, que separa sujeitos, direitos, espaços, sentidos” (PFEIFER, 2014, p. 106). A língua imaginária que controla e dita normas ressoa nas formas materiais obediência, exigência, deve e procure e

também nos sintagmas norma padrão, modalidade formal, precisão vocabular, requisitos básicos e na metalinguagem utilizada para se referir a essas regras.

Nessa tentativa de estabelecer padrões, busca-se o sujeito idealizado como interlocutor, pressupõe-se que o discurso metalinguístico produza efeitos mesmos em todos os envolvidos no processo discursivo, na ilusão de controlar os dizeres e estabelecer sentidos possíveis, ou considerados ideais, dentro de uma formação discursiva filiada à tradição gramatical, à tradição do bem dizer para bem comunicar.

Dessa forma, assujeitar-se significa seguir as regras desse jogo e ser interpelado pela ideologia, sem desviar-se38 do caminho, mantendo-se no curso ideal das relações sociais, da forma-sujeito capitalista. Isso porque “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 2012, p. 17). Há, portanto, uma exigência do domínio da norma, da língua padrão, para que o participante do ENEM possa usufruir de seu direito ao ensino superior público, ao se assujeitar a uma língua que visa ao efeito de homogeneidade, negando a diversidade e a dispersão.

A respeito desse efeito de homogeneidade semântica, na sequência, discutimos marcas discursivas que significam em torno da clareza e da unidade, da busca por controlar os sentidos produzidos, que, conforme Pêcheux (1997), é ilusória, uma vez que não somos fonte de nosso dizer, nem temos domínio sobre ele.