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Por mais que, conforme apontamos no subcapítulo anterior, não haja rompimento no que concerne às nomeações do concurso, surgem algumas alterações nas leis que regem o funcionamento da educação brasileira. Em relação ao ensino médio regulamentado pelo governo brasileiro, por exemplo, a Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 (LDBEN) traz em seu texto algumas orientações e especificações, que passam a conferir a esse grau de ensino maior importância, dotando-o de formato e identidade próprios. As políticas educacionais são, então, voltadas para a cidadania e o trabalho, além da formação integral do cidadão. No art. 22, a LDBEN 9.394/96 menciona, ainda, que, ao final dos três níveis de ensino, a educação básica deve investir no aluno no sentido de “assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (BRASIL, 2006, p. 24).

Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:

I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;

II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;

III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (BRASIL, 2006, p. 24, grifo nosso).

Para Orlandi (2012, p. 38), “todo dizer é ideologicamente marcado. É na ideologia que a língua se materializa”. Percebemos no discurso oficial, que legisla sobre a educação, a manifestação de um discurso de participação, próprio da abertura política vivenciada pelo país à época, que necessita de um cidadão participativo, apto a interferir no meio em que vive e a continuar sua formação, a fim de se preparar para o mercado de trabalho.

De acordo com Silva (2011), o ensino médio é a etapa final da educação básica, por isso seus estudos são considerados como o período de concretização e aprofundamento de

muitos dos conhecimentos adquiridos ao longo do ensino fundamental. Nessa perspectiva, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) preconizam que, nessa etapa, o aluno deve desenvolver competências que lhe permitam:

a) a formação da pessoa, de maneira a desenvolver valores e competências necessárias à integração de seu próprio projeto da sociedade em que se situa; b) o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

c) a preparação e orientação básica para a sua integração ao mundo do trabalho, com as competências que garantem seu aprimoramento profissional e permitam acompanhar as mudanças que caracterizam a produção no nosso tempo;

d) o desenvolvimento das competências para continuar aprendendo, de forma autônoma e crítica, em níveis mais complexos de estudos. (BRASIL, 1999, p. 22) Observa-se nos excertos acima a estreita relação do ensino médio com o mundo do trabalho, já que é concebido com o intuito de garantir o acesso à profissionalização e à cidadania. Com as transformações ocorridas nas relações de trabalho, as exigências profissionais são cada vez maiores e, segundo os PCNEM (BRASIL, 1999), é responsabilidade da escola fornecer ao aluno os subsídios necessários ao desenvolvimento das competências profissionais contemporâneas. Contudo, para Silva (2011), o texto da LDBEN 9.394/96 amplia essa perspectiva e responsabiliza a escola pela formação integral do indivíduo. “Qualquer que seja o seu formato de ensino, o educando é levado a conhecer mais sobre a vida, a qualificar-se para a cidadania e a preparar-se para o aprendizado permanente, seja nos bancos escolares, seja no mundo do trabalho” (SILVA, 2011, p. 767).

Com a LDBEN/1996, o currículo do Ensino Médio passa por uma reformulação organizada em torno do conceito de Competência, baseado nos quatro pilares do conhecimento elencados pela Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO) – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser.

Para poder dar resposta ao conjunto das suas missões, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes. É claro que estas quatro vias do saber constituem apenas uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato, de relacionamento e de permuta. (UNESCO, 1996, p. 89, grifo do autor)

De acordo com Dias (2003, p.1), a noção de competência surge inicialmente na década de 1950, com Noam Chomsky, nos domínios da linguística, “entendendo-se competência como a faculdade inata de falar e compreender uma língua”. A autora cita Bernstein (1996)

para apontar a convergência conceitual que fez surgir o conceito de competência para o campo da educação,

[…] entre as décadas sessenta e setenta, como processo de recontextualização de diversos campos do conhecimento como a Linguística: competência linguística (Chomsky), a Antropologia Social: competência social (Lévi-Strauss), a Psicologia: competência cognitiva (Piaget), a sociolinguística: competência comunicativa (Dell Hymes), entre outros. (DIAS, 2003, p.1)

A partir dos anos 1970, esse conceito passa a ser usado associado à educação profissional. “Nesta perspectiva empresarial, a competência é interpretada como uma forma de flexibilização laboral e de diminuição da precariedade do emprego”.

Em educação, o termo competência tem sido utilizado como habilidades individuais a serem desenvolvidas. Conforme aponta Perrenoud (1999), o conceito de competência pressupõe um sujeito autônomo, capaz de se posicionar diante das adversidades e de intervir nas mais diversas situações. Para o autor, os currículos por competências devem construir uma relação com o saber menos baseada na hierarquia do saber erudito descontextualizado, uma vez que os conhecimentos devem se ancorar na ação.

De acordo com Machado (2002), a organização do currículo por competências pressupõe a ênfase no “valor de uso” de cada conhecimento, em formas de mobilizar os saberes para realizar o que se deseja, o que se projeta.

Alguns temem que desenvolver competências na escola levaria a renunciar às disciplinas de ensino e apostar tudo em competências transversais e em uma formação pluri, inter ou transdisciplinar. Este temor é infundado: a questão é saber qual concepção das disciplinas escolares adotar. Em toda hipótese, as competências mobilizam conhecimentos, dos quais grande parte é e continuará sendo de ordem disciplinar [...] (PERRENOUD, 1999, p. 40).

Contudo, alguns autores trazem diversas críticas ao Ensino por Competências, por compreendê-lo com uma forma de reproduzir estruturas sociais vigentes, adaptando-se às realidades distintas e às necessidades das organizações de trabalho. Podemos situar o discurso das competências como produzido numa formação ideológica capitalista: a educação precisa dar conta das novas determinações socioeconômicas mundiais para que o país se afirme no cenário mundial, globalizado, e cada cidadão é interpelado a se sentir como parte responsável no sucesso da nação. Orlandi (2007b, p. 4) afirma que “é o Estado, com suas instituições e as relações materializadas pela formação social que lhe correspondem, que individualiza a forma-sujeito histórica, produzindo diferentes efeitos nos processos de identificação”. Ao ser

interpelado pela ideologia, num processo simbólico, o indivíduo, agora sujeito, passa a definir como se inscreve na história.

Ao mesmo tempo em que se atribui a origem da noção de competências à educação técnico-profissional, sua transposição para a educação geral, assim como suas críticas, exigem cuidados, pois são formações distintas, ainda que estejam imersas em um mesmo contexto histórico e sociocultural. Nesse sentido, ambas as formações buscam responder de diferentes maneiras às mudanças sociais (RICARDO, 2010, p. 608).

Amparado nessa ideologia capitalista das competências, oriundas do discurso do mundo do trabalho, em meio a uma atmosfera de políticas de inclusão e visando à avaliação do Ensino Médio, surge o ENEM. Contudo, apesar de ter sido intensificada com a promulgação da LDB (9.394/96), a preocupação com a avaliação é anterior ao documento, principalmente em razão dos compromissos econômicos e acordos com o Banco Mundial (GOMES NETTO; ROSEMBERG, 1995). Segundo Minhoto (2008, p. 69), com a LDB, a avaliação ganha destaque e passa a funcionar como “instrumento estratégico para o controle do governo sobre todos os níveis de ensino, revelando a enorme ênfase atribuída aos julgamentos externos para a padronização da qualidade do sistema”. Acerca dessa padronização, no próximo subcapítulo, continuamos a problematizar esses ecos da memória na constituição do ENEM como política de avaliação e inclusão.