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São recorrentes as críticas sobre os cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), que podem ser preenchidos, ao menos em parte, por pessoas não concursadas (os chamados cargos em comissão).

Há quem defenda até que tais cargos deveriam ser ocupados exclusivamente por concursados, o que conferiria um viés técnico ou profissional às nomeações e eliminaria o clientelismo e outras falhas e disfunções de cada dia.

A propósito de práticas clientelistas, deve-se admitir que o ato de se nomear um concursado para funções de direção é uma espécie de “carta de intenções” – mas talvez não muito mais que isso. Como o nomeado não seria um “estranho” ao serviço público e sua escolha, ao menos em tese, não seria mera arbitrariedade, pode ser salutar a priori. Mas a efetividade das nomeações ditas “técnicas” é algo que precisa ser relativizado em oposição à naturalização e ao tratamento quase diletante que a elas é dedicado.

Nomeações são consideradas técnicas pelo puro e simples fato de se tratar de um servidor efetivo. Afinal, ele foi aprovado em um concurso! Mas aqui residem alguns problemas cruciais.

A visão corrente de que a nomeação de concursados teria viés técnico (como se burocratas e políticos fossem categorias mutuamente excludentes) é refutada pelas pesquisas de D’Araújo (2009, 2014) sobre o perfil dos detentores de DAS no executivo federal, abrangendo os mandatos de Fernando Henrique Cardoso, aqueles de Luís Inácio Lula da Silva e chegando até o início do primeiro mandato de Dilma Vana Rousseff.

Entre muitos outros dados, ela demonstra que os servidores concursados com DAS têm militância (inclusive político-partidária) e patamares associativos bastante superiores aos do cidadão brasileiro médio, para dizer o mínimo.

Também Pacheco (2008) refletiu sobre o tema, demonstrando que o debate sobre dirigentes, políticos e burocratas vai (ou deveria ir) muito além da ambiguidade contumaz, sob pena de o Brasil “perder o timing” das reformas que poderiam melhorar o desempenho do Estado.

A quase generalizada omissão analítica da literatura em relação a várias distorções dos concursos públicos, aliada a certo dogmatismo em torno do tema, impedem um debate mais amplo e mais realista.

Os certames têm a inegável vantagem de ser um caminho mais democrático quanto ao acesso (possibilidade de isenção de taxa de inscrição, sistemas de cotas, inscrições presenciais e virtuais, entre outros), mas seguem eivados de falhas e arbitrariedades quanto à execução (objetivismo engessado, ausência de nexo entre seleção e atribuições, inexistência de marco regulatório e outros) e quanto à efetividade das nomeações (terceirizações espúrias, concursos apenas para cadastro de reserva e afins).

Sobre disfunções no plano das cidades quanto à realização de concursos públicos, Amorim (2008, 72) faz um recorte analítico em torno das municipalidades do Estado do Rio de Janeiro. Um dos achados é que 72,09% dos municípios sequer possuíam alguma norma que estabelecesse um porcentual mínimo de cargos em comissão para servidores, o que diz muito sobre a legalidade e o perfil das nomeações de funcionários públicos nas dezenas de cidades avaliadas.

Outro resultado mencionado na mesma obra reforça o perfil disfuncional e ilegal da grande maioria dos municípios estudados por Amorim:

Quanto às demais 39 (trinta e nove) Câmaras de Vereadores, que representam 86,7% (oitenta e seis vírgula sete por cento) do total pesquisado, registram os relatórios que, tanto tempo após a edição da Emenda Constitucional n° 19, de 5 de junho de 1998, funcionavam com elevados números de servidores admitidos por meio de nomeação para cargos em comissão, chegando 3 (três) delas a admitir a totalidade de seu pessoal dessa forma, numa demonstração de total desapreço pela determinação constitucional inserta no inciso V, do artigo 37, de nossa Carta Política, por parte daqueles que, a princípio, deveriam primar pela sua observância, os membros do poder legislativo municipal, os vereadores. Nestas casas legislativas pulula o empreguismo por intermédio de nomeações para cargos indevidamente criados como de livre nomeação e exoneração. (p. 76)

Como o clientelismo e assemelhados foram e são abordados à exaustão na literatura e em outros meios, talvez seja chegada a hora de evidenciar algumas das falhas legislativas, conceituais e metodológicas que fazem de muitos dos maiores concursos do Brasil uma seara quase tão preocupante quanto o próprio clientelismo que os concursos se propõem a combater.

Apesar de alguns avanços, os concursos seguem dominados por várias disfunções, em parte decorrentes da inexistência de uma regulamentação mínima sobre o tema.

Nem mesmo os requisitos para que uma empresa se torne e atue como uma banca organizadora de concursos públicos são claros. O que há é um padrão relativamente estabelecido com base numa espécie de tradição.

Um dos reflexos disso é que, em muitos casos, aplica-se a Lei no 8.666/1993 (Lei de Licitações) de modo amplamente discricionário ou, ainda, selecionam-se, via pregão eletrônico (Lei no 10.520/2002), propostas por meio do quesito único do menor preço e não pela qualificação técnica do proponente. Mas a discricionariedade, quando desprovida de diretrizes mínimas (legais ou de razoabilidade), tende a produzir disfunções.

Alguns dos muitos exemplos ocorridos em concursos apenas entre agosto e outubro de 2016 podem ilustrar melhor a situação. A seguir, três exemplos muito recentes:

O primeiro caso é sobre exigências desprovidas de fundamento em concursos públicos: o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo divulgou, em agosto de 2016, um edital onde solicitava exames médicos como Papanicolau e mamografia às candidatas. Além de não medir capacidade laboral, eles não têm relação manifesta com as competências do cargo e, no caso do Papanicolau (nome popular da colpocitopatologia oncótica), trata-se de exame invasivo que só pode ser aplicado em mulheres com vida sexual ativa. Em setembro de 2016, após fortes questionamentos por parte dos candidatos, o TRE retificou o edital e excluiu os referidos exames (G1, 2016).

Esse tipo de pedido ainda é comum no Brasil. Amplamente questionados, órgãos públicos costumam alegar que tais exames têm fins preventivos às candidatas. Mas os mesmos concursos que se preocupam com a prevenção da saúde da mulher não costumam solicitar exames “preventivos” nessa mesma escala aos homens.

Sobre o processo de licitação para escolher a empresa que organizará o concurso, há outro exemplo advindo do Poder Judiciário: o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) usou o critério menor preço no pregão para escolha da instituição que conduziria o certame do tribunal e teve que eliminar (até setembro de 2016) nada menos que sete empresas. Havia desde bancas com apenas dois anos de existência até empresas sem sítio na internet. A banca AOCP, por exemplo, foi eliminada por propor preço inferior ao mínimo: “considerado manifestamente inexequível, segundo interpretação do Tribunal sobre a lei de licitações, o valor apresentado pela banca desclassificada foi de R$ 77,14, enquanto o mínimo exigido é de R$ 85,66” (ESTRATÉGIA, 2016).

Sobre a elaboração de um edital, os requisitos de aprovação e o tratamento dispensado aos aprovados, o case da Caixa Econômica Federal (CEF) parece bastante ilustrativo: a Caixa realizou concurso nacional no ano de 2014 – apenas para cadastro de reserva – e obteve mais de 1,2 milhão de inscritos. Em julho de 2016, encerraria a validade do certame e cerca de 30 mil aprovados (técnicos, médicos e engenheiros) não seriam convocados para posse. Poderia

abrir novo concurso a qualquer momento, mas sentença judicial proferida em 6 de outubro de 2016 determinou a manutenção da validade do certame e convocação de até oito mil aprovados, em cumprimento ao Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) 2014/2015 (FOLHA DIRIGIDA, 2016).

Esses são apenas alguns dos incontáveis casos atuais que poderiam ser relatados. De um modo ou de outro, proteger e aprimorar a conquista do concurso público é diferente de sacralizá-la sem reconhecer e sem corrigir suas tantas disfunções.

É preciso reconhecer que o concurso público, nas configurações atuais, tem a salutar tendência de respeitar o princípio da impessoalidade, evitando favorecimentos, filhotismos, clientelismos, nepotismos e situações similares. Trata-se de inegável conquista histórica, especialmente se se considerar a trajetória do Estado brasileiro com suas tendências personalistas e patrimonialistas.

Todavia, resta claro que muitos outros princípios tão ou mais importantes – como efetividade, proporcionalidade, isonomia e razoabilidade – nem sempre são o forte desses mesmos processos seletivos que tanto primam pela impessoalidade.

O julgamento objetivo, é preciso que se diga, é uma aspiração muito forte não apenas nos certames e se faz presente no tratamento que é direcionado aos servidores públicos federais, conforme relato captado por Fontainha et al:

[...] passaram a gerir um cotidiano de trabalho repleto de pessoas que só podem ser demitidas nos casos expressos em lei, dentro dos quais não se incluem questões comportamentais ou mesmo a produtividade/desempenho [...] os servidores recém- empossados não podem ser dispensados por questões posteriores à sua posse que, mesmo estritamente afeitas ao seu desempenho e atuação no ambiente de trabalho, não estejam expressas em lei (op. cit. p. 69)

O diploma legal citado no trecho reproduzido supra é o artigo 139 da Lei 8.112, de 1990 (que estabelece o regime jurídico dos servidores públicos civis da União Federal). Entre a proteção trazida pela estabilidade (por vezes necessária) e o comodismo e a impunidade que frequentemente nascem dessa mesma estabilidade, passeiam engessamentos e outras distorções em relação a desempenho, comportamento, mérito etc., como aquelas apontadas por Barbosa (1996, 1999).

Diante de cenários como esse, alterações e atualizações legislativas são importantes para corrigir rumos e consolidar práticas, mas não são suficientes para, isoladamente, introjetar princípios em toda uma sociedade, por mais que esses princípios possam resultar em

benefícios a essa mesma sociedade. O mesmo ocorre com grande parte dos concursos públicos, que sofrem a ausência de regulamentação mínima à altura da relevância e complexidade do tema.

Ainda sobre o vácuo regulamentar da matéria, todas as colorações partidárias e ideológicas que governaram a república brasileira desde 1988 pouco ou nada fizeram para melhorar o cenário. Agiram de modos distintos sobre o quantitativo, realizando maior ou menor número de certames e de contratações (CAVALCANTE; CARVALHO, 2016), mas foram quase igualitárias em esquecer o qualitativo: em maior ou menor grau, todas foram omissas na hora de regulamentar o assunto ou aprimorar o modelo.

Longe de engessar o poder decisório dos gestores públicos, a regulamentação mínima orientaria para que tal poder fosse exercido com obediência a diretrizes básicas. A razoabilidade seria uma delas.

Contudo, a construção ou revisão de diretrizes exige reflexões para que o processo não ocorra de forma disfuncional.

No tocante às disfunções, é preciso registrar ainda que o objetivismo (um dos aspectos analisados neste estudo) frequentemente aclamado como “justo”, “técnico” e “meritocrático”, já fez com que um analfabeto, por exemplo, conseguisse ser aprovado para a faculdade de direito de uma universidade do Rio de Janeiro, segundo noticiou o jornal Folha de São Paulo (2001).

Como obviamente não sabia ler, ele saiu “chutando” as mesmíssimas opções (letras A e B) ao longo de todo o exame e acabou sendo aprovado entre os dez primeiros colocados.

Depois da polêmica que se instalou e da grande repercussão midiática, a meritocracia objetivista à brasileira sofreu um duro golpe: ao menos nos vestibulares de todo o Brasil, passou a ser obrigatória a existência de uma prova eliminatória de redação, regra introduzida como resposta do MEC aos fatos através da Portaria no 2.941, de 17 de dezembro de 2001. Paralelamente, muitos até hoje continuam a ver riscos ao mérito na adoção de redações, provas discursivas e afins em concursos públicos.

Resultado: enquanto é possível passar décadas como servidor concursado com base unicamente em provas de múltipla escolha, ninguém consegue oficialmente passar um único dia como estudante de nível superior no Brasil sem ter feito ao menos uma prova de redação.

Nossos conhecimentos são apenas aproximação da plenitude da realidade, e por isso mesmo são sempre relativos; na medida, entretanto, em que representam a aproximação efetiva da realidade objetiva, que existe independente da nossa consciência, são sempre absolutos. O caráter ao mesmo tempo absoluto e relativo da consciência forma uma unidade dialética indivisível.

3 METODOLOGIA

Esta pesquisa será empreendida de forma descritiva, por meio de levantamento bibliográfico/documental e análises comparativas. A seguir, o detalhamento metodológico sob a taxonomia de Vergara (2005) e Gil (2008).