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Algumas leituras sobre muitas das falhas dos concursos públicos no Brasil são apresentadas por Fontainha et al (2014) e Coelho (2015).

No caso de Fontainha et al, algumas das soluções por eles propostas são um tanto polêmicas (a extinção das provas de múltipla escolha, por exemplo), mas a obra apresenta diagnóstico incisivo e fartamente fundamentado quanto a diversos desvios presentes nos processos seletivos públicos brasileiros.

Eles falam da troika ideológica que fundamentaria os concursos públicos: republicana, burocrática e meritocrática. E afirmam:

A primeira ideologia em questão é a ideologia republicana, sobre a qual se debruçaram todas as iniciativas de diminuir o poder de nomeação das monarquias. É através da ideologia republicana que a nomeação de funcionários diretamente pelo poder eleito, ainda nos dias de hoje, será vista como resquício aristocrático. (pp. 9- 10)

Já a ideologia burocrática segue o eixo conceitual weberiano (essencial à compreensão do fenômeno da burocracia, do poder racional-legal e conceitos afins) e prevê, entre vários outros itens, a seleção de pessoas através de concurso público. Porém,

Restava, ainda, o problema da necessária aproximação desta forma de seleção de elites com outro valor de incontestável importância e que jamais poderia se chocar frontalmente com a república: a democracia. Uma palavra, recentemente criada, veio a representar o enlace entre estes dois titãs do ocidente moderno: a meritocracia. Pela primeira vez escrita e publicada em 1956 no célebre “The rise of the meritocracy” (Young: 1994), ela apareceu como característica de um novo modelo de seleção de elites que superava a aristocracia do sangue e a plutocracia do dinheiro, instituindo uma verdadeira meritocracia do talento (Idem, ib., p. 10)

Quanto ao espírito republicano, embora seja um dos grandes fundamentos da existência dos concursos públicos nas configurações atuais, não parece ser um componente dos mais consistentes em grande parte dos servidores públicos brasileiros.

Nessa linha de raciocínio, sugestivo é o trabalho de Pinto (2014) que, entre diversas temáticas, pesquisou sobre algumas motivações de servidores públicos para prestar novos concursos.

No referido estudo, é evidenciado também um esforço colossal por parte dos candidatos. A concorrência cada vez maior e a indústria de cursos preparatórios que só cresce impõem uma competitividade que, guardadas as devidas proporções, até lembram algumas das reflexões de Bourdieu e Passeron (2014) na obra “Os Herdeiros” ou ainda o pensamento de Bourdieu (1989) sobre os preparatórios franceses às grandes écoles em sua La noblesse

d’état.

Sobre os cursos preparatórios brasileiros, há alguns muito específicos para carreiras como a diplomacia ou a magistratura, por exemplo, e que guardam certa similaridade com o caso francês (buscam um nível de disciplina, mentalidade e dedicação muito próprios e bastante elevados cujo grau de internalização comportamental é tão ou mais importante quanto a internalização dos conteúdos).

Entretanto, salvo exceções e em oposição ao modelo gálico, os preparatórios brasileiros têm pouco teor de esprit de corps (o corporativismo costuma ser bem mais forte nos conselhos profissionais, conforme retro, ou na fase em que o candidato já se tornou burocrata – após a posse em cargo público).

Por outro lado se, na França, os preparatórios abordados por Bourdieu têm uma organização bastante complexa e envolvem capital social, formação do habitus e outros caminhos para que os filhos da burguesia acessem carreiras públicas e oportunidades de alto nível, no Brasil boa parte dos preparatórios cultivam um forte pragmatismo, ensinando ao candidato apenas os conteúdos que as bancas costumam cobrar e, claro, tenta-se formar o

habitus da autodisciplina e de se marcar “X” na opção certa (algo essencial para atender o

modelo predominante de provas que existe no Brasil).

Exemplo disso é que não são raros os verdadeiros tratados de como usar criteriosamente (e com sucesso) o Cálculo Hipotético Universal Teórico Estimativo, cuja sigla dispensa comentários e ajuda a inserir incontáveis candidatos entre os aprovados.

Interagindo com aprovados (servidores), Pinto entrevistou membros do Ministério Público (o Parquet é instituição constitucionalmente apontada como essencial à justiça).

Após ouvi-los, ela concluiu: “[...] O teor público da função mostra-se secundário. Mesmo dentro do público, o que se coloca é um modo de funcionamento capitalista, que preza pelos projetos de carreira e por signos de conforto” (p. 161).

Itens como baixa preocupação com a “coisa pública”, individualismo e corporativismo exacerbados corroboram a visão de autores como Maritain (1952, p. 24), que há mais de meio século emitiu um alerta:

O poder tende a aumentar o poder; a máquina do poder tende incessantemente a expandir-se; a máquina suprema, legal e administrativa tende a uma autossuficiência burocrática e gostaria de considerar-se a si mesma como um fim, não como um meio.

Sob outro ângulo analítico, polêmicas recorrentes entre meritocracia, igualdade, oportunidade e desempenho não são objeto deste trabalho, mas figuras como as progressões automáticas e afins ajudam a responder parcialmente sobre a meritocracia no exercício de funções públicas. Quanto ao acesso aos cargos públicos, Barbosa (1996) contribui para uma eventual resposta:

(...) necessariamente, não é a existência ou não de um dispositivo como o concurso que garante que um determinado sistema privilegie o mérito. Existem sistemas meritocráticos que não selecionam os melhores por um concurso e sim pelo desempenho já comprovado em determinadas tarefas ou pela qualificação. Entretanto, no Brasil (...), o concurso é um elemento paradigmático na legitimação de meritocracia. Na realidade, existe no plano das representações na nossa sociedade uma superposição entre instrumentos democráticos, como é o caso do concurso, e sistemas meritocráticos. (p. 74)

O imaginário popular, portanto, confere legitimação aos concursos e aos aprovados em tais seleções, mas “a condição de funcionário público não é uma virtude” (LUSTOSA DA COSTA, 2011, p. 111) – é um dos pontos a considerar no questionamento à sacralização acrítica dos certames, um tema tabu em grande parte da literatura.

Desconstruir dogmatismos e aprimorar o concurso como meio e não fim em si mesmo, para que atinja os reais objetivos que deveria almejar, é tarefa árdua, mas mui necessária.