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Algumas implicações da liberdade como não interferência para o direito

3.2 A liberdade liberal: não interferência

3.2.2 Algumas implicações da liberdade como não interferência para o direito

Ao estabelecer uma relação de equivalência entre liberdade e não interferência, o conceito negativo mobilizado pelos autores liberais pode ser desmembrado em duas teses. Elas são iden- tificadas e formuladas por Philip Pettit (2009, p. 42), que, à primeira, dá o nome de “tese da interferência–apenas”; e, à segunda, “tese da interferência–sempre”:

Tese da interferência–sempre: Se há interferência, então a liberdade é reduzida. Tese da interferência–apenas: Se a liberdade é reduzida, então há interferência.

A primeira tese é de fácil compreensão. Ela significa, primeiro, que toda forma de inter- ferência leva necessariamente a uma diminuição da liberdade; segundo, que, se não há redução de liberdade, então não há interferência. Ora, a liberdade é frequentemente mobilizada como uma razão moral para criticar ou justificar práticas sociais, ações de indivíduos, atos de coleti- vidades etc. Nesse sentido, segue-se da tese da “interferência–sempre” que, se é o caso que certo agente A remove opções, substitui alternativas, engana ou manipula outro agente B, então necessariamente uma razão para a crítica de A fundada no valor da liberdade também se verifica. Para ilustrar, pode-se dizer que, segundo a tese da “inferência–sempre”, “toda intervenção que o Estado eventualmente realize reduz a liberdade das pessoas” (LOVETT; PETTIT, 2009, p. 19), e que, portanto, sempre há uma razão para criticar a atividade estatal em nome da liberdade. Apesar disso, é compatível com essa primeira tese que a interferência perpetrada por um agente se justifique por outros valores, de modo a derrotar tal objeção. Nada impede que as perdas em liberdade causadas pelas interferências estatais se justifiquem, por exemplo, pela diminuição da pobreza que elas eventualmente promovam.

A segunda tese, por sua vez, traz duas implicações suplementares: primeiro, que a redução de liberdade necessariamente exige a ocorrência de alguma forma de interferência; segundo, que, se não há interferência, então não há redução de liberdade. Nesse sentido, a tese da “inter- ferência–apenas” acarreta duas consequências adicionais no âmbito da justificação moral. Ela implica, por um lado, que algo poderá ser criticado em nome da liberdade apenas se houver remoção de opções, substituição de alternativas, enganação ou manipulação. Por outro lado, ela quer dizer que as interferências perpetradas por um agente (o Estado, por exemplo) “somente se justificam com base na liberdade quando elas compensam interferências de outras fon-

tes — em particular, quando as intervenções do Estado previnem mais interferência do que a

que elas próprias perpetram” (LOVETT; PETTIT, 2009, p. 18, grifo nosso).

Agora, caso se admita que certas formas de governo necessariamente acarretam certo grau de interferência no domínio de escolhas dos indivíduos (o que é plausível), todas as considera- ções acima se seguem. A existência de um sistema jurídico é um exemplo pertinente: ele ne- cessariamente contém em si normas que impõem deveres (que, em si, podem ser onerosos), além de atribuir consequências jurídicas (invariavelmente onerosas, como punições, por exem- plo), em caso de descumprimento daquelas normas. Assim fazendo, o direito remove ou subs- titui opções que, de outra maneira, estariam abertas às pessoas a ele subordinadas.102 Essa ideia é uma constante no pensamento de Jeremy Bentham, um dos campeões da liberdade negativa: “Uma lei pela qual ninguém é vinculado [bound], […] pela qual ninguém é coagido, […] pela qual a liberdade de ninguém é cerceada, todas essas frases […] seriam […] contradições nos termos”(BENTHAM, 1970, p. 54).

Assumindo essa descrição do direito como verdadeira e aplicando a ele a tese da “inter- ferência–sempre”, tem-se que um sistema jurídico necessariamente reduz em algum grau a li- berdade dos indivíduos (podendo, portanto, ser criticado nessa medida). Ademais, aplicando a um sistema jurídico a tese da “interferência–apenas”, tem-se que se poderá justificar sua exis- tência com base na liberdade somente se a interferência exercida pelo sistema jurídico servir para impedir formas mais graves de interferência oriundas de outras fontes (que, caso não fos- sem impedidas, superariam os níveis de interferência produzida pelo direito que as impede de ocorrer). Por isso, a única “maximização” da liberdade que um sistema jurídico pode promover é, na verdade, a menor redução da liberdade, o que vem a ser (conforme a liberdade liberal, negativa) o menor grau de interferência possível nas circunstâncias do caso, todas as coisas

102 Afirmações como essa são o tipo de elemento que pode vir a constar no que chamei de “aparato conceitual subjacente” à justificação do Estado de Direito (ver p. 86 acima).

consideradas. Henry Sidgwick (1897, p. 46), outro campeão do liberalismo, expõe de forma bastante clara essa conclusão:

Se for garantido […] que a minha liberdade é prejudicada pelo impedimento sobre a volição causada pelo medo de atos de seres humanos em geral, a afirmação às vezes feita de que “toda lei é contrária à liberdade” é enganadora, embora seja, em um sen- tido, verdadeira, uma vez que a diminuição da liberdade causada pelo medo de pena- lidades legais pode ser mais do que equilibrada pela diminuição simultânea de coerção privada. Pode-se dizer de maneira justa que o fim do governo é promover a liberdade tanto quanto a coerção governamental impedir pior coerção por parte de indivíduos privados.103

Não é possível dizer, contudo, a despeito das circunstâncias específicas do caso, que essa interferência exercida pelas leis será necessariamente menor do que a interferência que elas eliminarão, pois isso depende de diversos fatores contingentes.104 Esse balanço positivo de- pende não apenas do nível exato de interferência que um dado sistema jurídico produz e reduz, mas também do nível de interferência produzido por outras fontes de interferência (a interfe- rência que os indivíduos exercem uns sobre os outros na ausência de um sistema jurídico, por exemplo). Em dadas circunstâncias c1, por exemplo, em que pouca interferência exercida pelos

indivíduos entre si se verifica, é possível que, na métrica da liberdade negativa, seja melhor sequer ter um sistema jurídico em vigor — na soma total, ele simplesmente introduziria uma interferência desnecessária. Já em outras circunstâncias c2, em que a coerção privada predo-

mina, um sistema jurídico pode, sim, ser desejável nesses termos. Conclui-se, disso, que um sistema jurídico é apenas contingentemente requerido pela liberdade como não interferência.

Caso se generalize essa conclusão para outras formas de “governo” além do direito, pode- se dizer que, segundo a perspectiva negativa de liberdade, há certa independência entre a liber- dade como não interferência e formas políticas específicas. Quentin Skinner (1998, p. 81, referências suprimidas) chama a atenção para essa constante em muitos autores liberais:

[Segundo a noção liberal de liberdade, a] medida de sua liberdade enquanto cidadão depende da medida em que o aparato coercitivo do direito o deixa sem restrições para exercer seus poderes conforme a sua vontade. Mas isso significa que o que importa para a liberdade cívica não é quem faz as leis, mas simplesmente quantas leis são feitas, e, assim, quantas de suas ações são de fato restringidas. Isso, por sua vez, mos- tra que não há nenhuma conexão necessária entre a preservação da liberdade indivi- dual e a manutenção de qualquer forma particular de governo. Como [William] Paley

103 Cf. BERLIN, 2002a, p. 41, nota de rodapé 1: “Toda lei parece, para mim, reduzir alguma liberdade, embora possa ser um meio para aumentar outra. Se ela aumenta a soma total de liberdade atingível, isso dependerá, é claro, da situação particular. Mesmo uma lei que decreta que ninguém deve coagir ninguém em uma dada esfera, enquanto obviamente aumenta a liberdade da maioria, é uma infração da liberdade de agressores poten- ciais e policiais. Essa infração pode, como nesse caso, ser altamente desejável, mas ela continua sendo uma infração. Não há razão para pensar que Bentham, que era favorável a leis, quis dizer mais do que isso.” 104 A “interferência” que deve ser diminuída é, por definição, a soma das probabilidades de interferência para cada

conclui, não há em princípio nenhuma razão por que “uma forma absoluta de governo” não possa deixar você “não menos livre do que a mais pura democracia”.

O próprio Isaiah Berlin admite o ponto em diversas passagens:

[A] liberdade nesse sentido [negativo] não é incompatível com alguns tipos de auto- cracia, ou pelo menos com a ausência de autogoverno. A liberdade nesse sentido se preocupa principalmente com a área de controle, não com a sua fonte. Assim como uma democracia pode, de fato, privar o cidadão individual de um grande número de liberdades que ele poderia ter em alguma outra forma de sociedade, também é perfei- tamente concebível que um déspota de orientação liberal conceda a seus súditos uma grande medida de liberdade pessoal (BERLIN, 2002b, p. 176).

E, mais adiante em seu famoso artigo, citando Benjamin Constant:

Constant não conseguia ver por que, embora o soberano fosse “todo mundo”, ele não pudesse oprimir um dos “membros” de seu eu [self] indivisível, se ele assim decidisse. Eu posso, é claro, preferir ser privado de minhas liberdades por uma assembleia, ou por uma família, ou por uma classe na qual eu sou minoria. Isso pode me dar uma oportunidade de, um dia, persuadir os outros a fazerem para mim aquilo a que eu sinto ter direito. Mas ser privado de minha liberdade pelas mãos de minha família, ou ami- gos, ou concidadãos, é ser privado dela tão efetivamente quanto. Hobbes ao menos era mais cândido: ele não fingia que um soberano não escraviza; ele justificava essa escravidão, mas pelo menos ele não tinha a audácia de chamá-la de liberdade (BERLIN, 2002b, p. 210).105

Em tais trechos, menciona-se principalmente a relação entre formas democráticas de go- verno e a promoção da liberdade como não interferência. Entretanto, a tese de acordo com a qual a liberdade negativa não exige formas específicas de “governo” também tem consequên- cias importantes para o modo como se pensa o Estado de Direito, caso consideremos que um “Estado de Direito” é também uma forma específica de “governo”. Essas consequências serão exploradas no capítulo 4. Passo, agora, à análise da liberdade neorrepublicana.

105 Pensar de outra maneira, subentende-se em tal passagem, seria embrenhar-se em confusões conceituais. No mesmo espírito, Henry Sidgwick (1897, p. 375-376, grifo do autor, notas suprimidas) já tinha apresentado o mesmo ponto meio século antes: “A consideração das vantagens morais de um governo ‘livre’ exige de nós que notemos a confusão que o uso comum da palavra ‘Liberdade’ é apta a causar. Quando um autor fala de instituições ‘Livres’, ele às vezes quer insinuar que o governo deixa o indivíduo em paz para cuidar de seus próprios negócios; às vezes, que os membros privados da comunidade exercem coletivamente um controle efetivo sobre o governo: às vezes ele parece insinuar ambos juntos, aparentemente assumindo uma conexão necessária entre os dois fatos, que podemos convenientemente distinguir como liberdade ‘civil’ e ‘constitucio- nal’, respectivamente. […] [A] liberdade constitucional fornece uma segurança para a liberdade civil; mas raciocínio a priori e experiência combinam para mostrar que não há nenhuma conexão ulterior entre os dois. Por exemplo, eu entendo que o Governo não faz nada para impedir um homem de ficar tão bêbado quanto ele quiser na Rússia: enquanto a democracia vigorosa da América do Norte estabeleceu em muitos estados leis severamente restritivas contra o álcool.” (Tudo indica que a expressão “segurança para liberdade civil” utilizada por Sidgwick pode ser adequadamente interpretada como “probabilidade de não interferência”. Para a diferen- ciação feita pelos autores liberais entre “liberdade em si” e “garantias da liberdade”, ver SKINNER, 1998, p. 80.)