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4.1 Em direção a uma concepção neorrepublicana do Estado de Direito

4.1.3 O contraste com a justificação liberal do Estado de Direito

O ideal da legalidade é frequentemente associado com o liberalismo. Judith Shklar (1986, p. 23), por exemplo, afirma que “o Estado de Direito é o milagre do liberalismo, governo sem coerção”. Em outra passagem, a mesma autora escreve que os lemas de “‘liberdade sob o di- reito’, ‘um governo do direito, não de homens’— a limitação do poder público e privado por meio da aplicação vigorosa de regras gerais — é inseparável do liberalismo” (SHKLAR, 1986, p. 20). Frente a essas declarações, pode-se perguntar: a partir da definição de liberdade liberal trabalhada no capítulo 3, é mesmo possível justificar o Estado de Direito? Se sim, em que con- siste essa justificação e em que ela difere das teses neorrepublicanas fornecidas na última seção?

John Gardner (2012a, p. 215) vislumbra um “argumento liberal em favor do Estado de Direito” nas seguintes palavras escritas por H. L. A. Hart (2008b, p. 44, grifo do autor):

[N]ós devemos parar de encarar o direito como meramente um fator causal no com- portamento humano […]. Nós devemos parar […] de encarar o direito como simples- mente um sistema de estímulos [system of stimuli] incitando [goading] o indivíduo à conformidade por meio de suas ameaças. Em vez disso, considere o direito não como um sistema de estímulos, mas como o que pode ser chamado de um sistema de escolha [choosing system], em que indivíduos podem descobrir, em termos gerais pelo menos, os custos que eles têm de pagar se agem de certas maneiras. Isso feito, deixe-nos per- guntar que valor esse sistema teria na vida social e por que deveríamos lamentar sua ausência. Não quero sugerir, é claro, que é uma questão indiferente se nós obedecemos ao direito ou o violamos e cumprimos a pena. Punição é diferente de uma mera “taxa por um curso de ação”. O que quero dizer é que a concepção do direito simplesmente como incitando indivíduos para um curso de comportamento desejado é inadequada e enganosa; o que um sistema jurídico em que [o ideal do Estado de Direito é respei- tado]151 faz, é guiar as escolhas de indivíduos quanto a seu comportamento, apresen- tando a eles razões para exercitar a escolha em direção à obediência, mas deixando- os escolher.

Em outros trechos, Hart explicitamente menciona a liberdade como justificação para prin- cípios normalmente associados ao Estado de Direito:

Assim, regras gerais claramente definidas e publicamente promulgadas são a forma mais eficiente de controle social. Mas, do ponto de vista do cidadão individual, elas são mais do que isso: elas são exigidas para que ele tenha a vantagem de saber de antemão os meios pelos quais sua liberdade será restringida nas várias situações em que ele pode se encontrar, e ele precisa desse conhecimento para planejar a sua vida. Esse é um argumento em favor de leis que são gerais no sentido de exigirem cursos de ação e não ações particulares. O argumento em favor da generalidade no sentido de aplicabilidade a classes de pessoas é diferente: é que tais regras conferem ao indi- víduo a vantagem de conhecer as restrições às quais a conduta de outros, para além dele mesmo, estará submetida (HART, 1983a, p. 115).

151 É Gardner (2012a, p. 215) quem acrescenta o trecho entre colchetes, em uma tentativa de interpretar de forma mais abrangente o argumento de Hart no trecho citado. No texto original, a frase completa é a seguinte: “[O] que um sistema jurídico em que a responsabilidade depende geralmente de condições excludentes [excusing

Os trechos acima são complementados com uma discussão sobre o caráter da punição imposta por sistemas jurídicos:

A punição criminal como uma tentativa de assegurar o comportamento desejado difere das técnicas manipulativas de Admirável Mundo Novo (condicionamento, propaganda etc.) ou a simples incapacitação daqueles com tendências antissociais […]. Ela adia a ação até que o dano tenha sido feito; sua operação primária consiste simplesmente em anunciar certos padrões de conduta de comportamento e adicionar penalidades pelo desvio, tornando tal conduta menos elegível e então deixando os indivíduos escolhe- rem. Esse é um método de controle social que maximiza a liberdade individual no interior do quadro coercitivo do direito em uma série de diferentes maneiras ou, talvez, diferentes sentidos. Primeiro, o indivíduo tem uma opção entre obedecer ou pagar [pela desobediência]. Quanto piores as leis, mais valorosa se torna a possibilidade de exercitar essa escolha relativamente à capacitação do indivíduo a decidir como ele viverá. Segundo, esse sistema não apenas capacita o agente a exercitar essa escolha, como também aumenta o poder dos indivíduos para identificar de antemão períodos em que as punições do direito não irão interferir com eles e a planejar as suas vidas de acordo (HART, 2008a, p. 23).

O conceito de direito subjacente a essas citações não difere dos traços constitutivos ex- plorados na seção 4.1.2, item (A). O que dizer de suas preocupações morais subjacentes? Dis- cutindo trechos da obra hartiana relacionados a essas passagens, Gardner (2008, p. xxxvii, nota de rodapé 36) aponta para a influência de Isaiah Berlin (2002b) em seu pensamento sobre o valor da liberdade. Com isso, surge a hipótese de que Hart, ao referir-se à maximização da “liberdade no interior do quadro coercitivo do direito”, tinha em mente uma noção específica de liberdade: a liberdade como não interferência.

Se esse for o caso, o argumento de Hart pode ser formulado do seguinte modo: (1) Um sistema jurídico (cenário (I) ou (II)) necessariamente interfere nas escolhas

dos indivíduos (substituindo opções que eles teriam na ausência de um sistema jurídico).

(2) Em virtude do conceito liberal de liberdade, um sistema jurídico, ao interferir nas escolhas dos indivíduos, necessariamente reduz a sua liberdade em relação a um cenário em que não existe tal sistema jurídico (cenário (III)).

(3) No entanto, se o direito cumprir com algumas condições (generalidade e pros- pectividade, por exemplo), ele permitirá aos indivíduos uma maior margem de escolha (desobedecer à lei e ser punido ou obedecer à lei e não ser punido, por exemplo) comparativamente a um cenário em que ele não cumpre essas condi- ções (um cenário em que se interfere com o indivíduo sem que ele tenha tido a capacidade de escolher pela não interferência, como no caso de uma punição retroativa).

(4) Logo, um sistema jurídico que respeita essas condições (cenário (I)) “maximiza a liberdade no interior do quadro coercitivo do direito” (isto é, em relação ao cenário (II)).

Se esse for o argumento, duas implicações se seguem. Em primeiro lugar, o leque de princípios do Estado de Direito exigidos pelo argumento liberal será limitado aos princípios formais, o que, para o neorrepublicanismo, contraria as nossas intuições morais sobre liberdade. Para a liberdade neorrepublicana, ao menos certos princípios procedimentais e certos arranjos institucionais devem estar presentes para que o ideal do Estado de Direito seja realizado.

Para o argumento liberal, o direito necessariamente fecha algumas das portas que o indi- víduo teria na ausência de um sistema jurídico. Nesse contexto, a conformidade com os princí- pios do Estado de Direito deve simplesmente aumentar o número de portas disponíveis à esco- lha do indivíduo (sem precisar abrir as portas que foram fechadas pela mera presença de leis coercitivas). Como resultado, os princípios do Estado de Direito são aqueles que se relacionam à capacidade de planejamento e de previsibilidade — mais precisamente, a lista de princípios formais expostas na seção 1.2 acima.152 Normas jurídicas, segundo eles, devem ser criadas, modificadas, administradas e aplicadas de tal maneira que opções sejam removidas, substituí- das, enganadas ou manipuladas o menos possível (pressupondo a interferência já operada pela mera existência do direito). Assim, se uma grande parte das normas jurídicas não são claras o suficiente, por exemplo, isso acarreta um déficit informacional quanto às escolhas em aberto, o que é considerado uma forma de interferência da parte dos oficiais que escondem tais informa- ções e, portanto, tais opções (trata-se de uma instância de “enganação”, ver p. 96 acima).

O que dizer, porém, dos princípios procedimentais? Não há nada no argumento liberal em favor do Estado de Direito que os exija. Em tese, normas jurídicas podem ser gerais, públi- cas, prospectivas, inteligíveis, consistentes, praticáveis, estáveis e efetivamente aplicadas em seus termos (P1 a P9) em razão da mera benevolência dos oficiais do sistema. Em tal cenário,

os indivíduos gozariam do tipo específico de não interferência atrelada ao Estado de Direito liberal, mas formas de dominação continuariam subsistindo (vigilância e intimidação). É sufi- ciente imaginar um sistema jurídico que não disponha, por exemplo, de contraditório (P13), de

ampla defesa (P14) e das garantias do devido processo legal (P10). Sua não existência não sig-

nifica uma forma de interferência, mas significa uma forma de imperium, visto que a margem de escolha “no interior do quadro coercitivo do direito” dependerá da boa vontade do oficial

152 Para a posição central que a previsibilidade das regras assume na concepção liberal do Estado de Direito, ver WALDRON, 1989.

responsável por administrar o direito em dado caso. Para o neorrepublicanismo, o destino de alguém não pode depender da sorte ou do azar de ter esse ou aquele juiz julgando a sua causa. Aspectos procedimentais que reduzam a arbitrariedade dos oficiais devem, portanto, fazer parte de uma concepção adequada do Estado de Direito.153

A segunda implicação da justificação da legalidade pautada na não interferência é que ela não fornece uma razão para que um sistema jurídico exista (comparação 1) (ver GARDNER, 2012a, p. 215-216). Para isso, outras razões, para além da liberdade, devem intervir (a paz, a segurança, a justiça etc.). Do ponto de vista neorrepublicano, a ausência de um valor atrelado à própria existência de um sistema jurídico é um erro, pois é somente sob um sistema jurídico que os indivíduos podem ser independentes da capacidade arbitrária de interferência (seja do-

minium, seja imperium).154 Além disso, o fundamento dos princípios da legalidade, segundo o argumento neorrepublicano, deve fazer referência aos traços constitutivos do direito considera- dos desejáveis sob o ponto de vista da liberdade como não dominação.155