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Reações quanto aos problemas sobre a justificação do Estado de Direito

4.2 A reação neorrepublicana às questões persistentes sobre o Estado de Direito

4.2.2 Reações quanto aos problemas sobre a justificação do Estado de Direito

Questão (x): Se a conformidade aos princípios do Estado de Direito é condição necessária

para a própria existência e eficácia do sistema jurídico, em que sentido pode a obediência a tais princípios ter (por essa mesma razão) um valor moral? (Ver p. 66 acima.)

Para o neorrepublicanismo, existe efetivamente uma relação estreita entre os traços cons- titutivos do direito e os princípios do Estado de Direito.162 Generalidade, publicidade, prospec- tividade etc. são características que tornam o direito ao mesmo tempo possível e moralmente importante. No entanto, não é porque esses traços são constitutivos do direito que eles são mo- ralmente importantes. Desse modo, o Estado de Direito republicano não é um ideal moral por-

que conformidade com seus princípios implica um direito eficaz; mas, sim, porque ele promove

um valor moral (a liberdade como não dominação) cuja realização importa para além de suas consequências positivas para um “adequado artesanato legal”.

Questão (xi): Em relação a dado fim moral, a conformidade aos princípios do Estado de Direito

é necessária? (Ver p. 68 acima.)

Segundo o argumento elaborado nas seções 4.1.1 e 4.1.2, o neorrepublicanismo aponta para o Estado de Direito como, de fato, um meio necessário para a promoção do fim moral da liberdade como não dominação. Isso porque (1) há uma exigência por robustez inerente à con- cepção neorrepublicana de liberdade e (2) a conformidade com os princípios da legalidade é capaz de promover a robustez exigida por tal concepção. A justificação da legalidade nesses termos difere de outra, fundada sobre a liberdade liberal, que não exige o estabelecimento de qualquer forma de controle social específica. Visto que o argumento já foi suficientemente tra- balhado nas seções mencionadas acima, pode-se passar à próxima questão.

Questão (xii): Há alguma relação entre, de um lado, a conformidade aos princípios da “mora-

lidade interna” do direito e, de outro, a promoção dos vários ideais que compõem sua “mora- lidade externa”? (Ver p. 69 acima.)

Interpretada à luz do neorrepublicanismo, a pergunta sobre a relação entre a promoção da “moralidade interna” e a realização da “moralidade externa” pode ser reformulada do seguinte modo: que relação existe entre a promoção do Estado de Direito e a promoção de outros ideais republicanos?

Tome-se o exemplo da diferença entre imperium (o poder arbitrário público) e dominium (o poder arbitrário privado). É verdade que o respeito aos princípios do Estado de Direito se justifica, para os neorrepublicanos, pela redução de imperium, não de dominium. É possível, portanto, imaginar casos-limite em que um sistema jurídico conforma-se perfeitamente aos princípios do Estado de Direito, mas falha gravemente, por exemplo, em ser uma democracia ou em perseguir objetivos neorrepublicanos de diminuição de desigualdades sociais e econô- micas. Conformidade com os princípios da legalidade, nesse sentido, não é nem meio necessá- rio, nem meio suficiente para a promoção de outros ideais neorrepublicanos.

As relações de “meio suficiente” e de “meio necessário” não são, no entanto, os únicos tipos de relações possíveis entre a promoção de diferentes ideais morais. Há também as chama- das “afinidades eletivas”. Introduzida nas ciências sociais por Max Weber, essa expressão se refere ao “processo pelo qual duas formas culturais — religiosas, literárias, políticas, econômi- cas etc. — entram, a partir de certas analogias ou correspondências estruturais, em uma relação de influência recíproca, escolha mútua, convergência, simbiose e mesmo, em alguns casos, fu- são” (LÖWY, 1999, p. 44). Algo semelhante é evocado quando Jeremy Waldron (2012a, p. 51) advoga em favor de abordar o Estado de Direito a partir de sua “tendência substantiva”:

[Um modo de proceder] é ver se nós podemos discernir uma dimensão substantiva para o Estado de Direito ao considerarmos a tendência substantiva de alguns de seus elementos formais e procedimentais reconhecidos. O que quero dizer é que algumas características da noção formal/procedimental163 podem nos apontar a direção de cer- tos valores substantivos, transmitindo um certo momentum que pode nos levar a uma direção substantiva particular.

Esta dissertação, ao situar o Estado de Direito como um meio necessário para reduzir a capacidade de interferência arbitrária em uma sociedade, procurou demonstrar que a “tendência substantiva” dos princípios da legalidade é o valor da liberdade como não dominação. Agora,

163 Para as noções “formais”, “procedimentais” e “substantivas” do Estado de Direito, ver listas de princípios da legalidade contidas na seção 1.2 acima.

com esses conceitos em mãos, pode-se afirmar que, muito embora a legalidade seja compatível com grandes iniquidades, pode haver, sim, relações de afinidade entre o Estado de Direito e os outros ideais que compõem o ideal mais abrangente do Estado neorrepublicano (ver Figura 1, p. 120 acima). Por exemplo: uma vez que se demonstre que tanto o Estado de Direito quanto a democracia promovem a liberdade republicana, há pelo menos uma razão para respeitar os prin- cípios da legalidade que justifica também o respeito aos princípios democráticos (a saber, que é moralmente desejável reduzir os níveis de dominação existentes em uma sociedade). Isso atestaria em favor de uma espécie de “convergência” (um dos elementos que podem estar pre- sentes em relações de afinidade eletiva) entre a democracia e o Estado de Direito. Examinando- os mais de perto, talvez se encontre mais do que isso — “analogias”, “correspondências estru- turais”, “influências recíprocas” etc., elementos que possivelmente estarão ausentes na relação entre o Estado de Direito e uma monarquia absolutista.

Esta dissertação não pretende estabelecer de maneira definitiva tais afinidades, senão dar pistas para investigações futuras. Como hipótese, é plausível acreditar na existência de uma afinidade estreita entre ideais e instituições que visam a reduzir imperium (poder arbitrário pú- blico) e ideais e instituições que visam a reduzir dominium (poder arbitrário privado). Já foi demonstrado que o ideal neorrepublicano do Estado de Direito abrange não apenas princípios formais, como também princípios procedimentais (ver p. 135 acima). A relação de afinidade entre reduzir imperium e reduzir dominium abriria caminho, agora, para novas interpretações dos chamados princípios “substantivos” do Estado de Direito. Segundo a lógica de um “mo-

mentum” substantivo, nada impede que esses princípios (direitos humanos, democracia etc.)

apresentem afinidades eletivas com os princípios formais/procedimentais do Estado de Direito (generalidade, congruência etc.) — embora, em sentido estrito, não se possa falar em princípios

da legalidade, visto que esses ideais “substantivos” não dizem respeito ao modo republicano

pelo qual um sistema jurídico persegue fins republicanos. Seja como for, dever-se-á analisar caso a caso se essas afinidades se verificam.

Questão (xiii): Em que difere o respeito aos princípios da legalidade do uso da legalidade como

um mero instrumento para a promoção dos objetivos (morais ou imorais) de um regime polí- tico? (Ver p. 70 acima.)

O ideal neorrepublicano da liberdade exige não somente a existência de um sistema jurí- dico, como também de um sistema jurídico que respeite os princípios do Estado de Direito. Exige-se, em outras palavras, tanto um “governo pelas leis” (Tese 1) quanto um “governo das

leis” (Tese 2).164 Ambos são compatíveis com dominium, é claro; porém, o governo pelas leis (o direito) permite a existência de um alto nível de imperium — nível que o governo das leis (o Estado de Direito) não permite. Enquanto aquele não acarreta necessariamente reduções signi- ficativas da capacidade arbitrária de interferência dos oficiais, este as acarreta. Desse modo, a intuição moral por trás da mera substituição da preposição “pelas” por “das”, na literatura sobre o ideal da legalidade, é a de que os meros traços constitutivos do direito não são suficientes para que haja um nível elevado de Estado de Direito. Nas palavras de Jeremy Waldron, “uma das diferenças-chave entre o Estado de Direito [rule of law] e o governo pelo direito [rule by

law] é que qualquer restrição sobre governo, quanto ao último, na verdade é apenas uma questão

de autorrestrição, o que pode ser desnivelado e frágil quando comparado com exigências cons- titucionais reais e aplicáveis”. Segundo essa definição, as restrições do “governo pelas leis” continuam dependendo, em algum grau, do arbítrio dos oficiais.

A tradição republicana, em consonância com essas considerações, preocupa-se com a ins- trumentalização do direito pela vontade arbitrária dos oficiais. Nas palavras de Philip Pettit (1997, p. 183, grifo nosso), “[s]e o governo não é mediado pelo direito, seguindo o padrão

daquelas condições [as formas do constitucionalismo, que incluem o Estado de Direito], então

ele [o governo] será prontamente manipulável por uma vontade arbitrária e talvez seccional”. Em outra passagem, o mesmo autor afirma que “[q]uando as leis tornam-se os instrumentos da vontade […], então temos um regime […] em que os cidadãos tornam-se escravos e são intei- ramente destituídos de sua liberdade” (PETTIT, 1997, p. 36).

Isso não significa que o império pelas leis (o direito) não é moralmente importante. Como foi exposto na seção 4.1.2, o neorrepublicanismo sustenta que ser governado pelo direito é bom na medida em que ele é um meio necessário para assegurar o status de cidadão a cada indivíduo (Tese 1).

164 Um jogo de preposições semelhante a esse encontra-se em passagem bastante famosa de James Harrington (1992, p. 20, grifo nosso): “Pois dizer que o luquês não tem mais liberdade ou imunidade das leis de Luca [from the laws of Lucca] do que um turco tem das leis de Constantinopla [from those of Constantinople] e dizer que um luquês não tem mais liberdade ou imunidade pelas leis de Luca [by the laws of Lucca] do que um turco tem pelas leis de Constantinopla [by those of Constantinople] são discursos bastante diferentes. Enquanto o primeiro [discurso] pode ser dito, semelhantemente, quanto a todos os governos, o segundo [discurso] é escasso em qualquer um dos dois [casos]; muito menos neste [do turco], visto que é sabido que, enquanto o maior paxá é um inquilino da vontade de seu senhor, tanto em relação à sua cabeça quanto ao seu patrimônio, o pior luquês que possui terras é um livre portador de ambos [cabeça e patrimônio] e não deve ser controlado senão pelo direito; e esse [o direito] deve ser criado por todo homem privado para nenhum outro fim (ou então eles podem parabenizar a si mesmos) senão proteger a liberdade de todo homem privado, o que, por esse meio, vem a ser a liberdade da república.” Deve-se atentar que, nesse caso, é a preposição “das” [from] (e não “pelas” [by]) que corresponde àquilo que a literatura contemporânea se refere a “rule by law”. Ver PETTIT, 1997, p. 39.

Questão (xiv): Que peso devem ter as reivindicações morais feitas pelo ideal do Estado de

Direito? (Ver p. 72 acima.)

Conforme observado no capítulo 3, o argumento neorrepublicano em favor do Estado de Direito é teleológico. Sob essa perspectiva, permite-se o raciocínio de que se “deve lutar a guerra para acabar com todas as guerras” (ver seção 3.1.1). Consequentemente, a concepção neorrepublicana do Estado de Direito eventualmente admite violações dos princípios da legali- dade caso sejam necessárias, em circunstâncias específicas, para maximizar a liberdade como não dominação. Quais circunstâncias específicas são essas (e quão específicas ela são) é uma questão bastante difícil. De todo modo, trata-se de uma possibilidade expressamente admitida por Philip Pettit (1997, p. 102):

Há várias maneiras em que pode ser bastante natural tolerar uma falha política em honrar a não dominação, se a falha representa o meio mais efetivo de aumentar a não dominação total [overall non-domination]. Pode ser que a causa da maximização da não dominação exija dar ao parlamento poderes irrestritos especiais em alguma área, por exemplo, ou dar a juízes bastante poder discricionário em sentenças quanto a al- gum tipo de infração. E, se a causa da maximização da não dominação exige, de fato, tais desvios em relação à constituição perfeita — a constituição que exemplifica a não dominação em toda e qualquer característica de seu design —, então pareceria apenas natural tolerar tais desvios; seria preciosista, até mesmo fetichista, insistir em conti- nuar fiel ao ideal em abstrato.165

Para além disso, pode haver conflitos entre o ideal de Estado de Direito (e a não domina- ção promovida por ele) e outros valores diferentes da não dominação. Mais uma vez, o neorre- publicanismo não pretende riscar essa possibilidade:

Ser livre de dominação é importante, mas certamente não é a única coisa com a qual deveríamos nos importar. Suponha, por exemplo, que haja um trade-off entre o Estado de Direito e a segurança nacional: em circunstâncias de emergência, poderia ser razo- ável para algumas sociedades abandonar um pouco do primeiro a fim de obter mais da segunda. Em casos de justiça de transição, similarmente, a aderência estrita ao Es- tado de Direito poderia esbarrar em reivindicações morais mais amplas. Maus regimes frequentemente permitem ou mesmo exigem juridicamente ações que são encaradas, em retrospectiva, como moralmente abomináveis. […]. De maneira alguma deve ser presumido que o Estado de Direito sempre triunfa sobre [trumps] outras considera- ções. Ao passo que ele sempre possui valor, esse valor deve ser sopesado em relação a outros valores de uma maneira razoável (LOVETT, 2016, p. 126, notas e referências suprimidas).

165 Aplicado ao problema do Estado de Direito, Frank Lovett (2016, p. 125-126) menciona o caso das políticas públicas antitruste: “Leis proibindo práticas monopolísticas específicas não precisam conflitar com o Estado de Direito […]. Quando monopólios ‘naturais’ perigosos se formam apesar dessas precauções, entretanto, pode não ser possível quebrá-los sem violar o Estado de Direito. Se isso reduzisse a dominação econômica substan- cialmente, seria tolo deixar uma mera devoção servil ao Estado de Direito enquanto tal nos impedir de assim proceder.”

Investigar as regras de prioridade que existem entre esses valores frente às mais diferentes circunstâncias é uma tarefa a ser constantemente empreendida pela filosofia política normativa. Para os nossos propósitos, basta notar que a concepção neorrepublicana da legalidade não é “legalista” no sentido de atribuir um peso absoluto a esse ideal.

Questão (xv): É o Estado de Direito um ideal antidemocrático? (Ver p. 73 acima.)

Questão (xvi): É o ideal do Estado de Direito um impedimento à realização da justiça social? (Ver p. 75 acima.)

Essas duas questões — sobre a relação entre o Estado de Direito, de um lado, e a demo- cracia e a justiça social, de outro — podem ser consideradas em conjunto. Nada de muito espe- cífico pode ser dito, dados os limites desta dissertação. É necessário dizer, contudo, que, uma vez introduzido o conceito de “afinidade eletiva” (ver p. 142 acima), abre-se um novo horizonte de análise da relação entre tais ideais. Todos eles fazem parte do ideal neorrepublicano de Es- tado (ver Figura 1 acima) e, portanto, convergem em um dos fins morais que promovem, o que já é um indício importante de afinidade.

Pegue-se o exemplo da democracia. Na teoria neorrepublicana, sua forma preferida é a de uma “democracia contestatória”, baseada não no consentimento via eleições, mas na exigên- cia de que os cidadãos tenham o poder de contestar decisões impostas sem seu controle ou sem atentar para os seus interesses relevantes. Dela, o neorrepublicanismo deriva exigências de transparência, de escrutínio público, de liberdade de informação, de contraditório, de compe- tência, de profissionalização (pelo menos em algumas áreas de decisão, como aquelas proferi- das pelo poder judiciário) e assim por diante (PETTIT, 1997, p. 189-192).

Ora, é tentador encontrar conexões entre muitas dessas exigências e os princípios proce- dimentais do Estado de Direito, tais como a necessidade de fundamentação das decisões, de contraditório, de ampla defesa, de assistência jurídica especializada, entre outras. Philip Pettit (1997, p. 193), por exemplo, situa na lista de exigências democráticas o direito de recorrer de decisões judiciais, algo que a literatura especializada sobre Estado de Direito classifica como um princípio da legalidade (ver p. 51 acima). Essas “fusões” ou “influências recíprocas” fazem com que a intuição fundamental da legalidade — um “império de leis e não de indiví- duos” — passe a incluir, sob a rubrica de um “império de indivíduos”, regimes antidemocráti- cos. Essas são pistas para estudos ulteriores sobre a interessante expressão “Estado Democrático de Direito” (ver DIFINI, 2012) e sobre se é possível dizer que há “mais” Estado de Direito se ele for democrático.

Há também razões para se procurar afinidades entre o ideal republicano do Estado de Direito e o ideal de justiça social, visto que o neorrepublicanismo acha “plausível pensar que podemos determinar o que a justiça social exige ao elaborar a ordem jurídica e econômica de uma sociedade que capacitasse você e outros a viver em liberdade [como não dominação]” (PETTIT, 2014, p. xix).