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Algumas notas de contextualização

No documento O Feminino e o Moderno (páginas 100-104)

No último quartel do século XIX, Lisboa era uma cidade em mudança. Tentando acompanhar o ritmo do século – um século que instaurou a fer- rovia, o barco a vapor e as grandes exposições mundiais, e que tornou o mundo mais pequeno, prometendo, ainda que literariamente, uma viagem que o abraçasse em apenas 80 dias1 – a capital de Portugal estava na peugada no progresso. Apesar das restrições – como a escassa industria- lização, a débil economia ou os parcos meios culturais –, a modernização tentou romper as falhas sentidas. Nos meados dos anos 70 e ao longo da década de 80, Lisboa observou uma significativa melhoria nos meios de transportes, comércio, urbanismo, arquitectura, ensino e instituições culturais. Conta, finalmente, com o grande museu nacional, instituição de prestígio incontornável para qualquer capital europeia que se prezasse, sonhada durante gerações sucessivas desde o triunfo do liberalismo e, finalmente, inaugurado em 18842.

Assim, pese embora Portugal – e, portanto, a sua capital – não es- tivesse à altura do poder económico e cultural das grandes potências europeias, Lisboa oferecia algumas novidades.

As mulheres, porém, contribuíam para manter na cidade um rosto mais atávico. Como aponta Joel Serrão, em 1862, o número de mulheres en-

1 Refiro A Volta ao Mundo em 80 dias, publicada pelo escritor francês Jules Verne

(1828-1905), em 1872.

2

O então nomeado Museu Nacional de Bellas Artes e Archeologia abriu as portas ao público no dia 11 de Maio de 1884. Instalado no Palácio Alvor, às Janelas Verdes, é hoje o maior museu do país e, desde a legislação republicana de 1911, conhecido como Museu Nacional de Arte Antiga.

tregues às tarefas domésticas era significativo3. Também a percentagem de analfabetos em Portugal, apresentava ainda valores impressionantes, sobretudo entre o sexo feminino4.

Por outro lado, mesmo entre os que conseguiam estudar, o panorama nacional ostentava dificuldades. Ainda assim, a Lisboa já dos anos 70 e 80 manifestava sinais de mudança, como referi, na situação do ensino artístico e dos museus de arte. Como é sabido, entre nós, as Academias de Belas Artes, pese embora as várias tentativas5, só vingaram após o triunfo do liberalismo, sendo de 1836 os decretos que criaram as duas instituições de Lisboa e Porto, cujos projectos sofreriam várias alterações ao longo dos anos seguintes.

Em 1881, uma reforma lançou o debate sobre a adequação do pro- grama académico aos novos tempos. Em 1875, o relatório de Sousa Hols- tein6já pusera preto no branco as carências e falências do ensino artístico,

3 Então, a grande maioria, sobretudo das mães, ocupa-se no “governo de sua casa”

(81 018). Logo a seguir, as que estão ligadas a “qualquer ocupação agrícola” (21 861). “Outra qualquer profissão” abrange 5 368. E depois: “costureira, engomadeira, modista” (1594); “ofício fora da fábrica ou oficina” (1171); “vivendo de suas rendas” (1105); “criada de servir” (1038); “vivendo em casa dos pais” (935); “vivendo em casa alheia” (794); “tra- balho em fábrica ou oficina” (557); “comerciante, lojista” (408); “mendiga” (405). Quanto às restantes 10 948, “ignora-se” qual a sua profissão, se é que a tinham.” Como conclui o autor, “parece legítimo sugerir-se: 1) a grande maioria das mães que assumem a materni- dade respeita às donas de casa; 2) a seguir, perfila-se o grupo daquelas que se dedicam a tarefas agrárias; 3) por fim, profissões femininas em “enchimento”: costureiras, criadas de servir, operárias; 4) e, também, comerciantes e mendigas.” Joel Serrão, Da situação da Mulher Portuguesa no século XIX, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 40.

4

Em 1878, para uma população de 4 550 699 habitantes, a taxa de iletrados (somando homens e mulheres) era de 82,4%. Em 1890, num total de 5 049 729 habitantes, havia 79,2% de analfabetos, sendo este número composto por 72,5% de homens e 85,4% de mulheres. E, dez anos depois, em 1900, para uma população de 5 960 056 habitantes, nos 78,6% de analfabetos, 68,4% eram homens e 81,2% mulheres. Cf. Rui Grácio, op. cit., p. 394. Ver também, para maior detalhe de informação sobre as escolas criadas, p. 395.

5

Sobre este assunto ver Emília Ferreira, “Os Lugares do Desenho. De ensino marginal ao discurso do poder: As Academias de Belas Artes”, in O Desenho Dito. Catálogo da Exposição O Desenho Dito, Almada, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, 2008, pp. 48-61.

6Marquês de Sousa Holstein, Observações sobre o actual estado do ensino das artes

em Portugal, a organização dos Museus e o serviço dos Monumentos Historicos e da Archeologia offerecidas á Commissão nomeada por decreto de 10 de Novembro de 1875 por um vogal da mesma comissão, Lisboa, Imprensa Nacional, 1875.

à luz das necessidades do tempo. O grande projecto de reorganização das Academias portuguesas foi assim posto em curso, acompanhando o reno- vador movimento académico europeu e indo até um pouco mais além, no que concerne às mulheres.

Então, o texto afirmava com clareza a abertura das suas aulas às mulheres. Com efeito, qualquer das modalidades (alunos ordinários e voluntários) estava aberta a pessoas de ambos os sexos, como se podia ler no corpo do relatório. Serão admitidos á matricula em qualquer d’estas

classes, os individuos de ambos os sexos que requererem ao inspector da academia7.

Tal abertura respondia à acusação feita por Sousa Holstein, em 1875, de inexistência de ensino artístico dirigido ao sexo feminino e seria pio- neira até em relação ao seu grande modelo académico, a França, que apenas abriria as portas da Academia às mulheres em 18978, ou seja, 16

anos depois de Portugal.

Compreensivelmente, apesar dessa abertura, continuará a haver menos raparigas que rapazes, nesses estabelecimentos de ensino. Se as carên- cias sociais e culturais colocaram entraves aos artistas, as candidatas ao exercício da mesma profissão sentiram-nos em maior grau. Sabe-se que, apesar de o movimento de emancipação das mulheres portuguesas ter tido início ainda no século XVIII, com algumas vozes de apoio durante o século XIX, muitas mais foram as opiniões críticas que preconizavam a manuten- ção da mulher no lar9. Grandes intelectuais como Ramalho Ortigão ou

7 Idem, Título II, Capítulo VIII, Artigo 54o. “Reforma das academias de bellas artes

de Lisboa e do Porto”, Collecção de Legislação Portugueza, 1o semestre de 1881. 22 de Março de 1881.

8

Gabriel P. Weisberg; Jane R. Becker (editores), Overcoming all Obstacles: the Wo- men of the Académie Julian, New York, New Brunswick, New Jersey, London, The Dahesh Museum & Rutgers University Press, 2000, p. 3.

9

Sobre este assunto, ver por exemplo Maria Filomena Mónica, A Formação da Classe Operária: Antologia da Imprensa Operária (1850-1934), Lisboa, Fundação Calouste Gul- benkian, 1982. José Luís Simões, num texto inicialmente publicado em O Eco Metalúrgico, Lisboa, 4/7/1897, defende que o lugar da mulher é em casa, no seu importante e incon- tornável papel de doméstica e educadora, e sustenta tal opinião com as dificuldades que elas encontram, até em termos salariais, quando se dedicam à indústria ou à agricultura (chegando a receber somente metade do salário daquele), tornando-se de modo dupla- mente injusto elemento preferencial para o empregador, provocando assim desemprego nos homens e mais gastos para o agregado familiar. Além disso, apesar de reconhecer o

Fialho de Almeida, embora respeitando a necessidade de educação do

belo sexo, criticavam a escassa adequação dos programas escolares ao

verdadeiro destino da mulher: o de esposa e mãe10. Embora Portugal tenha tido a preocupação de dar às suas jovens acesso ao ensino, de- fendendo a sua emancipação pela educação (relembremos que, no século XVIII, coubera ao Intendente Pina Manique a tentativa de roubar à mendi- cidade e à prostituição várias jovens órfãs e indigentes que, recolhidas na Casa Pia, tinham aí acesso ao ensino básico das letras e à aprendizagem de uma profissão), esta mantinha, portanto, um pendor de compromisso, no qual eram claras as suas responsabilidades de futuras mães e, por- tanto, de futuras educadoras. Eventualmente, o mesmo sucedeu a partir de 1885, quando a Câmara Municipal de Lisboa criou a Escola Maria Pia, na Graça, estabelecimento de ensino com ambições profissionalizantes, no qual se ministravam as disciplinas de francês e inglês e algumas “no- ções de tipografia, telegrafia eléctrica, escrituração comercial e lavores”11. Este ensino, eminentemente prático, com objectivos de carreira orientada para a subsistência, garante da honestidade moral, tinha simplesmente como alvo a jovem sem recursos.

A burguesa, económica e socialmente defendida da mendicidade e dos vícios “adjacentes”, não carecia de escolas, já que as famílias providencia- vam um ensino particular dirigido às suas necessidades específicas, muitas vezes colmatado pelas viagens, pelas leituras da moda, orientadoras do gosto e formadoras do carácter.

É fácil, neste contexto particular, compreender quem poderiam ser as candidatas à Academia. Apenas as mulheres social e economicamente de- fendidas, além de cultural e artisticamente despertas, podiam ter interesse e oportunidade de seguir uma carreira artística12. Contudo, a possibili- autor a existência de cérebros de altíssima qualidade em mulheres como Angelina Vidal, Luísa Michel e outras, elas devem confinar-se ao seu papel de mães e domésticas (cf. pp. 149 a 151).

10

Sobre este assunto ver Cecília Barreira, História das nossas avós: Retrato da Bur- guesa em Lisboa 1890-1930, Lisboa, Círculo de Leitores, 1992.

11 Idem, p. 44. 12

Na verdade, esta situação acompanhou as mulheres, por toda a Europa, ao longo de séculos. Sobre o ensino artístico e as mulheres ver, por exemplo, Frances Borzello, A World of Our Own: Women Artists since the Renaissance, New York, Watson-Guptill Publications, 2000.

dade de seguir os estudos não equivalia a um efectivo apoio – familiar ou social – a uma opção profissional, na qual existiam parcos modelos a seguir, muito particularmente em profissões associadas ao poder e à criação13. Pese embora as múltiplas condicionantes, Portugal viu surgir, no início do século XX, um número significativo de mulheres artistas.

No documento O Feminino e o Moderno (páginas 100-104)