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Ofélia, um percurso entre o fascínio pelo mundo e a introspecção

No documento O Feminino e o Moderno (páginas 117-124)

Ofélia Gonçalves Pereira da Cruz nasceu em Lisboa, a 14 de Novem- bro de 1902. Dos seus dados pessoais, é escassa a informação disponível, desconhecendo-se até ao momento a história da sua família, onde morava, se tinha irmãos37 ou até o que faziam os seus pais. Claro é o que fica subentendido: a origem burguesa que a leva a completar os estudos no Liceu Maria Pia e a seguir depois, aos 15 anos, para a Faculdade de Le- tras de Lisboa, onde estuda Filologia Românica, terminando a licenciatura em 1922, de acordo com o registo mantido na Reitoria da Universidade de Lisboa.

Se é possível que a sua abordagem ao mundo da arte tenha sido facultada por Bernardo Marques (190038-1962), seu colega de faculdade, e futuro marido, é igualmente provável que, como menina burguesa, ela tenha tido acesso às habituais aulas privadas de desenho.

Expondo pela primeira vez em 1926, no II Salão de Outono, integrando o grupo dos modernistas, sem formação plástica académica, Ofélia soube guiar-se pela sua formação literária e usou as viagens, com as múltiplas oportunidades de contactar com as colecções de museus, exposições, tea- tro e cinema, bem como o seu pessoal sentido de observação e, por certo, as leituras, para produzir uma obra de características próprias.

Pese embora a sua participação regular em exposições colectivas, ja- mais organizou uma individual. E, tal como muitos dos seus colegas, Ofélia manteve um registo público dentro das normas do gosto e do mer- cado. Embora tenha sido a pintura a garantir-lhe maior reconhecimento, com a atribuição, em 1940, do Prémio Sousa-Cardoso, com um retrato da poetisa e tradutora Luísa d’Eça Leal (1899-1983), Ofélia foi sobretudo desenhadora.

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Pela carta de despedida de Ofélia, sabe-se da existência de uma irmã, Alda. Mas nada mais de concreto.

38Embora o seu nascimento seja em geral apontado como datando de 1898, numa carta

endereçada ao amigo Manuel Mendes, em que lhe envia alguns dados biográficos, Ber- nardo refere ter nascido a 21 de Novembro de 1900. Cf. Sem Título, CasaComum.org, Dis- ponível em: <http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04635.003.009> (2015- -5-9).

Ofélia Marques, Sem título, 1932. Tinta-da-china sobre Papel, 28,4 x 20,8 cm. DP921, Colecção CAM-Fundação Calouste Gulbenkian. Fotografia de José Manuel Costa Alves

Com efeito, o seu desenho – provocatório, analítico, irónico, versátil no traço – revela uma artista bastante mais inquieta do que a obra mais conhecida deixa supor. É disso exemplo a eloquente galeria de época que constitui o seu núcleo de caricaturas dos amigos. Nesse vasto grupo, em que algumas personalidades bisam presença, desfilam quase todos os nomes conhecidos das artes, literatura e ciência do país. Esse núcleo de caricaturas (várias dezenas), elaborado nos anos 30, revela uma Ofélia com claro sentido de humor e capacidade de análise psicológica, na repre- sentação dos amigos na infância (quase como se, no processo, ironizasse com o mercado e com a crítica que obsessivamente definia as artistas como pintoras de crianças), mas apontando o seu futuro, nos claros traços de personalidade registados através das poses e nas opções profissionais que seguiriam, denotados pelos objectos com que se “definiam”.

A década 30 é particularmente rica para Ofélia. Datam também desses anos as maiores oportunidades de viagem. Felizmente, e porque a artista gostava de manter correspondência com os amigos, podemos hoje começar a perceber como operou ela a sua educação informal. Nas múltiplas cartas que enviou, deu conta do que ia vendo, de com quem se encontrava o casal fora de Portugal e de como ela se sentia. Entre a alegria da descoberta cultural e artística e da liberdade que essas saídas constituíam e o desalento perante a perspectiva de regresso a Portugal, é possível antever uma personalidade curiosa e culta que sofria de facto com as limitações políticas e artísticas do país, ao tempo.

Convidado Bernardo Marques como artista decorador dos pavilhões oficiais portuguesas em feiras de arte internacionais, como Paris, 1937, ou Nova Iorque, 1939, Ofélia acompanhou-o, aproveitando o tempo livre da melhor maneira. De acordo com as suas próprias palavras, passava os dias a visitar exposições, e as noites saindo com os amigos, indo ao teatro e aproveitando todos os ensejos para observar a forma como as pessoas viviam. Através desse registo epistolar, torna-se claro que a artista – que se define como optimista – se apercebeu com toda a clareza de Portugal como de um país asfixiante, para onde seria penoso regressar.

Quando em Nova Iorque, aonde aportou nos últimos dias de Março de 1939, ela sentiu-se “como hum peixinho na água”, como declarou na carta

Ofélia Marques, s/título. Tinta-da-china, Aguarela, Grafite e Guache sobre Papel, 21,5 x 16,5 cm. DP629, Colecção CAM-Fundação Calouste Gulbenkian.

aos amigos Manuel e Berta Mendes, datada de 2 de Abril seguinte39, acalentando o sonho de ficar na cidade para sempre, um lugar que ins- tantaneamente a arrebatou, e onde ela estaria livre das restrições de Portugal e das ameaças que então pairavam sobre a Europa. Infelizmente para ela, tais sonhos não se tornaram realidade e o regresso a Portugal acabaria por acontecer.

E assim a vida de Ofélia prosseguiu. Respondendo às encomendas da imprensa, fazendo escassas capas para revistas, trabalhando sobretudo em ilustrações de textos e criando algumas bandas desenhadas, Ofélia manteve, contudo, uma clara parcimónia na sua produção que fez com que vários testemunhos a definissem como algo preguiçosa.

Torna-se evidente o facto de já durante a sua vida o seu trabalho ser pouco visto e conhecido. Isso nos confirma esta observação de Diogo de Macedo, por ocasião da atribuição do Prémio de Pintura a Ofélia, em 1940.

Será difícil aos críticos julgar um dia um artista de quem pouca obra conhecem, porque dispersa, sem inventário, por casas onde se não coleccionava arte por luxo, ficará reservada a admiração de quem mais a estima do que a analisa, ao público, porém, que sem presunções também é crítico exigente, essa obra não passará des- percebida, porque tipo na altura própria, em páginas de revistas, em ilustrações de livros, em paredes de exposições, na rua, no dobrar das esquinas da vida comum, sempre modestamente, como natural acessório de embelesamento dessa actividade quotidiana.

Há artistas, que o são tanto como os demais com notoriedades e medalhas, mas que não produzem para museus nem fazem cálculos de assalto à História. São artistas por leis naturais duma obriga- ção do destino, mas que o são egoisticamente, só para si e para os admiradores mais íntimos, negando-se à ambição e ignorando disciplinas. Livres de tão graves compromissos, são dos tais que embaraçam os críticos quando calha destes lhe descobrirem a obra. É este o caso de Ofélia Marques. Caprichosa e dispersa, raramente frequenta lugares onde possam ser vistas as pinturas que pinta, os desenhos que desenha, as fantasias que inventa. Mas se acaso aparece, logo reparam nela, apreciam-na e premeiam-na. É pouco

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Carta aos amigos Manuel e Bertha Mendes, 2 de Abril de 1939. Arquivo do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado.

avultada a sua obra de pintura a óleo e sobre tela, como foi a de José Tagarro, por exemplo, e no entanto ninguém contesta o mérito desse pintor, ainda que bem pouca pintura deste se conheça. Com Ofélia Marques acontecerá o mesmo, para arrelia de críticos e de histo- riadores. Todavia, nas originais interpretações e das predispostas possibilidades que revela, quando se apresenta em público, nin- guém duvida. Das suas aguarelas, dos gouaches, dos desenhos, de quantas ilustrações e decorações executa consoante os caprichos da inspiração e sua dispersão feminina, maiores são os conhecimentos, e talvez que por estes se avalie um dia do mérito dessa pintora que se esconde, que brinca com as coisas sérias e que, se quisesse, sim- plificaria amanhã a tarefa dos críticos mostrando em bloco quanto distribui ao Deus dará e só a pessoas íntimas, como quem mostra brinquedos ou futilidades de vestidos, desvenda talentos e obras, fantasias e interpretações, farrapos vivos dum temperamento irre- gular40.

Em 1945, o mesmo Diogo de Macedo escreveria ainda sobre ela:

Sem compromissos de estudo em qualquer escola de arte, esta ar- tista deve-se exclusivamente aos seus dons de gosto e sensibilidade, praticando com a maior independência e apenas encorajada pelos museus e galerias que visitou no estrangeiro. Ilustradora e pintora, distinguiu-se em diversas exposições de carácter moderno a que tem concorrido, tendo conquistado prémios e louvores da crítica. As suas actividades como ilustradora, principalmente, lhe impuseram a categoria de que gosa41.

Semelhante categoria não a levaria, porém, a uma maior dedicação a provar o valor da sua obra. O desinteresse de Ofélia pelos panteões talvez se devesse, pelo menos em parte, pelo facto de ela manter um lado secreto na sua produção, sabendo decerto que essas obras não teriam boa recepção pública. É o caso de um núcleo de desenhos que apenas foi tornado público pela primeira vez em 1988, na Galeria de Colares, pelo historiador de arte António Rodrigues.

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Arquivo da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Diogo de Macedo. Notas manuscritas, lendo-se “Do livro em preparação para o Secretariado”. 1940.

41Arquivo da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Diogo de Macedo.

Essa “série” de desenhos eróticos, em que mais de um toque de sedu- ção, o amor lésbico foi claramente indicado, viu a luz do dia pela primeira vez. Contraponto poderoso para as imagens conhecidas, esse trabalho clandestino de Ofélia revela ainda o mundo dos bordéis, ambientes de tristeza e silêncio, em que jovens abonecadas esperam. Crua metáfora para a situação de um país triste e sem voz, tais obras – cuja original e provocatória natureza na produção portuguesa modernista parece ser única – também revelam excelente precisão na caracterização de ambien- tes, evoluindo de uma forma mais lânguida a composições mais frias e geométricas, das linhas mais sedutoras à caracterização de atmosferas mais tensas. O seu traço certeiro soube captar situações intimistas e de universos decerto proibidos às mulheres.

Ofélia Marques, sem título. Grafite e Pastel sobre Papel, 45 x 65,2 cm. 80DP624, Colecção CAM-Fundação Calouste Gulbenkian. Fotografia de Paulo Costa

Fora das convenções sociais e culturais da época, Ofélia criou, por- tanto, uma obra “marginal” muito mais rica do que a pública. Divorciada de Bernardo, Ofélia manter-se-ia ainda produtiva. Mas os anos da desi- lusão, que abalaram tantos dos nossos intelectuais e artistas, também se abateram sobre ela. Que razões se terão somado para o fim? O desespero que encontramos nas suas cartas de despedida, dirigidas a Bernardo, e em especial à irmã, a quem dá conta de que deseja abandonar uma vida detestável42, torna clara a decisão. Essa decisão chegou, inabalável, na noite fria de 17 de Dezembro de 1952. Poucas semanas depois de ter completado 50 anos.

No documento O Feminino e o Moderno (páginas 117-124)