• Nenhum resultado encontrado

Wallas Jefferson de Lima

No documento O Feminino e o Moderno (páginas 81-84)

Universidade Federal do Paraná

Falar de Simone de Beauvoir é falar de uma escritora que enveredou pela ficção, pelo ensaio, por textos autobiográficos e de memória. Pode-se dizer que sua grande estreia se deu em 1943, com um romance notável,

A convidada. Com O segundo sexo, de 1949, ensaio acerca da condição

feminina, conquistou o mundo e nunca mais sua vida foi a mesma. Com o romance Os mandarins, publicado em 1954, obteve o prestigiado prêmio Goncourt e a partir daí viajou muito e conheceu todos os continentes. Em seguida, contou toda sua história em três volumes: As memórias de uma

moça bem comportada, A força da idade e A força das coisas. Para André

Maurois, Simone de Beauvoir é uma romancista nata: segundo ele, os romances dela estão impregnados de metafísica1. Com efeito, para ela

era tão legítimo escrever romances metafísicos quanto psicológicos, uma vez que cabia ao escritor descrever as consequências emocionais da expe- riência metafísica. Apesar de romancista nata, fazendo eco das palavras

de Maurois, Simone de Beauvoir dava grande importância ao ensaio. Para ela, havia uma clara diferença entre escrever ensaios e romances: “Meus ensaios refletem minhas opções práticas; meus romances, o espanto em que me lança, na totalidade e nas minúcias, a condição humana”2.

Diante disso e dando destaque à produção ensaística da autora, este artigo tem apenas uma ambição: refletir acerca das circunstâncias his- tóricas que possibilitaram a escrita de O segundo sexo por Simone de Beauvoir, destacando a atmosfera social e cultural da época a partir da produção desse livro e de sua circulação na sociedade francesa. O mo- mento atual parece propício à elaboração de um breve balanço, uma vez que o tema da mulher, seja na Literatura seja na História, continua tendo um interesse vivo no meio acadêmico. A importância da reflexão reside no fato de se compreender melhor o interesse da sociedade francesa pela “textualidade” e pela “literariedade” de Beauvoir de 1950 em diante. Com efeito, este tema não é uma verdadeira novidade: sem sequer remontar ao memorável Les années Beauvoir, de Sylvie Chaperon3, ilustram-no vá- rios pesquisadores da geração precedente. Dessa forma, mais do que uma descoberta, é necessário falar aqui em “redescobertas”. Todavia, se a questão não é nova, ela é atualmente colocada sob novos olhares: por trás dessa aparente evidência, ilumina-se uma face escondida (ou pouco lembrada) de uma parte da história intelectual francesa do entreguerras. Vale a pena levantar a questão que convida a uma análise atenta entre

O segundo sexo e o contexto histórico de sua produção.

Nascida em Paris, em 9 de janeiro de 1908, Simone de Beauvoir es- tudou no curso Désir, sob forte orientação católica. Após conseguir o certificado, em 1929, atuou como professora de Filosofia em Marseille, Rouen e Paris, até 1943. Foi, sem dúvida, a ponta de lança, logo após a Segunda Grande Guerra, para a voga do feminismo mundial. Sua obra mais famosa, Le deuxième sexe, no original, continua tendo uma importân- cia fundamental ainda hoje. É um ensaio profundamente analítico, carre- gado de abordagens políticas e filosóficas de cunho existencial, centradas na ideia de liberdade da mulher. Sua acrimônia ajudou a desagregar o sistema que buscava perpetuar a situação de inferioridade do sujeito fe-

2

Simone de Beauvoir apud André Maurois, De Gide a Sartre, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1966, p. 281.

3

minino em relação ao homem, tanto no campo político quanto no campo social. O livro exigia, em outras palavras, reformas sociais e jurídicas visando remover os controles patriarcais na família e na sociedade como um todo. O feminismo, é verdade, não nasce com Beauvoir4. Todavia, os acontecimentos relacionados à escrita de O segundo sexo lhe dão um ine- gável impulso que se mantém por vários anos. No âmbito mais profundo, o êxito do feminismo está intimamente relacionado ao êxito alcançado por esse livro.

Que mais se admira em Simone de Beauvoir? A pensadora, a filósofa, a francesa. Mencionam-na como escritora5 de primeira ordem (vencedora do famoso Prix Goncourt), ativista política da mais alta estirpe e teórica social de grande influência. Beauvoir debate, dentre outros, os pensamen- tos de Descartes, Kant, Husserl, Hegel e Sartre. De Descartes, herdou a ideia de liberdade de espírito; de Kant, recebeu a noção de idealismo transcendental; com Husserl, afirmou a importância da análise fenomeno- lógica; de Hegel, problematizou o conceito do “Outro”6 a partir da dialé-

4

Houve, no século XVIII, poucos movimentos de mulheres. Apesar de isolados e espo- rádicos, sua incidência cresceu em volume e ímpeto nos séculos XIX e XX, solidificando como força ideológica e política influente. Em geral, os historiadores tendem a dividir a história do feminismo em dois períodos. A “primeira onda”, entre 1860 e 1920, se concreti- zou em movimentos reformistas e almejava por direitos iguais. A Convenção pelos direitos das mulheres de Seneca Falls (EUA), em 1848, é, quase sempre, tida como o momento fundador do feminismo ocidental. Na Grã-Bretanha, esta onda atingiu seu ápice com as lutas pelo sufrágio feminino, mobilização que obteve êxito já em 1918. A “segunda onda” teve início em fins de 1960, fruto do clima de radicalismo estudantil na Europa e nos Estados Unidos, e se erguendo a partir das análises teóricas de Simone de Beauvoir. Caracterizou-se pela luta por direitos iguais, o fim da discriminação das mulheres, a cam- panha pelo aborto voluntário e maior liberdade sexual (Cf. Sheila Rowbotham, Women, Resistance and Revolution, London, Penguin, 1972).

5

Além do famoso O segundo sexo, a obra de Beauvoir compreende numerosos ensaios filosóficos e romances. Dentre estes convém citar Quando o espiritual domina (1979), O sangue dos outros (1945), Todos os homens são mortais (1946), Os mandarins (1954), As belas imagens (1966), A mulher desiludida (1968), A velhice (1970), A cerimônia do adeus (1981) e Cartas a Castor (1983). Destaque-se, ainda, que Beauvoir colaborou de forma ativa para a revista Les temps modernes, fundada por ela e Sartre.

6O existencialismo enfatizava que as relações com “o Outro” eram, na maior parte das

vezes, potencialmente inimigas dos sujeitos. “O inferno são os outros”, escreveu Sartre – não porque o outro seja o mal, mas porque pode privar os humanos do sentido de liberdade. Nas relações pessoais, de maneira geral, cada um tenta reduzir a liberdade

tica entre senhor e escravo; e com Sartre aprofundou o entendimento da “atitude existencial”. Todavia, dentre todas as características marcantes, a que mais se destaca é sua ideia de “liberdade”, palavra essencial para aqueles que desejam interpretar sua obra. Por se interessar pela rea- lidade por meio de uma abordagem existencialista, Beauvoir acreditava que as mulheres deviam se transformar naquilo que eram. As mulheres, vistas, de maneira geral, como seres alienados e passivos, estavam acor- rentadas, muitas vezes sem o perceberem, por vontades exteriores. No fundo, seguiam apenas “modelos”: se “identificavam” como mãe, esposa e até objeto sexual, aceitando livremente tais papéis. Recusavam a luta, a rebeldia. Por isso, segundo Beauvoir, a transcendência da mulher estava cortada. A fronteira entre a liberdade e a sujeição era demasiado porosa.

No documento O Feminino e o Moderno (páginas 81-84)