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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE PATOLOGIA E TRATAMENTO, DESARMONIA E HARMONIZAÇÃO

7 DESARMONIA E PATOLOGIA

7.7 ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE PATOLOGIA E TRATAMENTO, DESARMONIA E HARMONIZAÇÃO

A constatação de uma realidade psíquica que repete padrões antigos e originalmente aplicáveis a uma pessoa específica é correta. No caso da transferência psicanalítica temos um conceito que é consistentemente apoiado e confirmado pela observação e que se beneficia com alguns detalhamentos do seu modo de funcionar.

O primeiro destes detalhamentos refere-se ao fato de que na transferência há, organicamente e psiquicamente, um sistema dinâmico que se repete menos ou mais indiscriminadamente. Neste processo repetidor temos que uma significação específica, por exemplo, o pensar-se e sentir-se rejeitado pelo analista entra em funcionamento em uma situação desadaptativa. Ela é desadaptativa no sentido em que o analista não lhe rejeita. Por

outro lado é adaptativa, pois seus benefícios terapêuticos promovem uma adaptação na relação com o terapeuta, e se generaliza para outras relações. Alguém com estruturações afetivas predispostas ao medo sentirá medos em terapia; um ansioso, ansiedade; um paranóico, idéias e sentimentos de perseguição, etc. A pessoa transfere e repete, em primeiro lugar porque o sistema psíquico é eficazmente organizado para reproduzir esquemas os mais variados. Notamos, portanto, que a transferência possui mecanismos de assimilação reprodutora.

Em segundo lugar, o cérebro é organizado também, não apenas para repetir o esquema diante da mesma realidade, digamos, amedrontar-se diante de um pai violento, mas para generalizar as realidades psíquicas em outras situações diferentes. A própria vida biológica exige que as funções se expandam para outras realidades: na função agressiva é preciso identificar realidades ameaçadoras em geral; a função alimentar necessita, conforme a evolução das espécies avança, generalizar os processos de captura de presas, coleta de frutos variados, etc. As organizações motivacionais, entre elas, a transferência, possuem também a característica de uma assimilação generalizadora.

Em terceiro lugar, algumas generalizações destes esquemas possuem mecanismos de reconhecimento de elementos exteriores necessários a ações adaptadas: reconhecer aromas, sabores, expressões faciais agressivas, vocalizações de ameaça, armas de ataque, etc. Isto se refere ao aspecto adaptativo das

assimilações recognitivas. Observemos que a experiência de rejeição, em nosso exemplo de transferência, pode ou não possuir algum mecanismo de reconhecimento que desencadeie a repetição: um tom de voz do analista que seja semelhante ao do pai, o conteúdo de uma fala do terapeuta que remeta a cenas traumáticas, mas fica evidente que esta recognição é apenas parcialmente adaptativa. Em termos da esquemática cognitiva, não há grandes desadaptações; em termos afetivos, ao contrário, não há adaptação inerente ao próprio mecanismo transferencial. A utilidade terapêutica em questão só existe através de processos que o paciente desconhece e só reconhece posteriormente. Ele pode dar-se conta: “você, meu terapeuta, está me ajudando; não me rejeita, como eu pensava”. Esta pode ser uma construção nova, inexistente na esquemática anterior.

Se estamos tratando de aspectos mais ou menos patológicos, podemos acrescentar um quarto elemento conceitual construtivista: em termos biológicos, tratamos de assimilações insuficientemente adaptadas ao contexto presente. Em uma extensão conceitual da teoria piagetiana, uma assimilação deformante. Se os esquemas cognitivos podem permitir assimilações cognitivamente deformantes, os esquemas afetivos permitirão a ação de assimilações deformantes dos afetos.

Reunindo os quatro aspectos que apresentamos, podemos utilizar a seguinte linguagem: algumas desadaptações psíquicas funcionam por assimilação reprodutora, generalizadora,

parcialmente recognitiva e deformante de um esquema afetivo- cognitivo.

Piaget disse:

Insistamos principalmente sobre o fato de que Freud apresentou essencialmente uma técnica nova e que mesmo se suas concepções teóricas exijam hoje uma atualização geral, aquela técnica continuará e constitui verdadeiramente o único método sistemático que até aqui possuímos para a exploração dos esquemas “inconscientes”. (Ibid., p. 234).

O conhecimento dos processos harmonizadores endógenos, das relações harmonizadoras e das técnicas para enriquecer os repertórios saudáveis nos indivíduos e grupos é um passo importante na teoria e prática da Psicologia. Uma vez que um sistema afetivo se estruture de forma assimiladora deformante forte e rígida, é preciso um tipo de intervenção especial. Pensemos em um caso simples: se alguém está deprimido, está em relativa desarmonia psíquica. Se se recupera da depressão, se está em “ascensão motivacional”, por exemplo, está no curso da harmonização psíquica. Alguns conseguem isto por si sós, outros se beneficiam por intervenções psicoterapêuticas e farmacológicas.

A reconstrução de creodos ou caminhos psicogenéticos no caso de patologias ou desarmonias severas é uma abordagem promissora e com uma base teórica sólida, como nas concepções de Zélia Ramozzi-Chiarottino, por exemplo nas seguintes considerações:

Assim como a forma da neurose segundo Freud dependerá da fase da evolução da libido, a psicose dependeria da seqüência em que as funções cognitivas foram construídas. A criança normal, segundo o modelo de Piaget, faz a construção do real (noções de espaço, tempo e causalidade) paralelamente à construção endógena do funcionamento cerebral (ou funcionamento das estruturas mentais) até dois anos, em média, quando então adquirirá a função semiótica ou capacidade de

distinguir o significado do significante através de imagens mentais. A organização dessas imagens se dará graças à construção do real e à capacidade de raciocinar de acordo com uma determinada lógica. A criança cujo comportamento evoluirá em direção ao comportamento “borderline”, então, segundo nossa hipótese seria aquela que muito precocemente construiu as estruturas mentais (orgânicas) e adquiriu a capacidade de construir imagens (graças à função semiótica) também muito precocemente e antes da construção do real, quebrando assim a seqüência natural do creodos segundo o modelo de Piaget, sendo essa inversão do creodos uma das causas do distúrbio severo da conduta. (correspondência eletrônica enviada pela referida autora da idéia, 2009).

Quando compreendemos que esquemas podem ser mais rígidos ou mais móveis, concluímos que as realidades psíquicas internas e as ambientações externas podem ser promotoras de mais rigidez ou de mais mobilidade. A idéia de terapia psíquica adquire, assim, uma concepção particular sobre uma de suas funções centrais: mobilizar (no sentido de tornar móvel) esquemas que sejam patologicamente rígidos. Neste ponto não podemos escapar do retorno à afirmação de que os esquemas psíquicos integrais compõem-se de esquemas afetivos coordenados a esquemas cognitivos: um esquema rígido, em níveis patológicos, pode envolver traços de um tipo de rigidez cognitiva e outras estruturas de rigidez afetiva. No caso, por exemplo, de alguém que tenha uma patológica “idealização” de si-mesma, estará “organizada” por esquemas que envolvem um “pensar sobre si como 'perfeito', ao mesmo tempo que certos sentimentos auto- satisfatórios surgem repetitiva, intensa e rigidamente.

Nestes casos, quando pensamos em estratégias clínicas terapêuticas, podemos notar que certas metáforas ditas pelo terapeuta têm utilidades várias. O terapeuta Peres (2008, expressão oral) contou-nos que em um caso oposto, apresentou ao paciente a metáfora do “patinho feio”. O paciente, segundo o

relato do terapeuta, aproveitou muito adaptativamente esta metáfora, observando na sua vida real, a esquemática essencial do “patinho feio”: possuir baixa auto-estima, viver em um grupo agressor e humilhador, escapar deste ambiente e se descobrir “cisne”, possuidor de virtudes, não apenas de “feiúras”, viver com pessoas menos agressivas, etc. Este paciente declarou que a metáfora passara a ter grande valor terapêutico, por facilitar a identificação destas dinâmicas internas na vida real, após a sessão em que ela foi primeiro apresentada. Tratamos, novamente, de assimilações reprodutoras, generalizadoras e recognitivas. A apreensão da metáfora pelo paciente parece ter significado a construção de uma simbologia análoga à esquemática rígida interna. A fábula apresenta-se como uma esquemática terapêutica, mobilizadora, que, quando bem compreendida e com afetos importantes, pode também se repetir e generalizar em situações futuras, muitas vezes iniciando-se pelo reconhecimento dos traços comuns entre a fábula e o acontecimento presente.

Nesta abordagem consideramos, portanto, que deve haver nas técnicas terapêuticas clínicas, por exemplo, atividades que visem construir esquemas afetivo-cognitivos harmônicos, por estruturações de sistemas adaptativos e desestruturações de sistemas desadaptativos.

Paralelamente à “desconstrução” de esquemas traumáticos é indispensável que se criem estratégias terapêuticas de construção gradual de condutas adaptadas, pela consideração de

quais são os esquemas “saudáveis” já presentes nos indivíduos e nos grupos, mas ainda insuficientemente participativos da vida em geral, fortalecer estes aspectos de conduta assimiladora adaptativa e, a partir deles, oferecer formas de criação de repertórios de novos esquemas de caráter afetivo-emocional, que darão sustento à sua permanência mais prolongada. As desconstruções e construções afetivo-cognitivas devem atingir primeiramente os estados psíquicos imediatos (por exemplo, um insight ou einsicht em terapia transforma a experiência daquele momento). A freqüência e a eficácia das harmonizações em terapia é que permitirão seu prolongamento, sua repetição e generalização em situações extra-consultório. Podemos considerar que estes processos atingem inicialmente os estados emocionais de curto prazo (emoções do tipo risos, choros, medos, culpas, sensações de liberdade, etc) e somente a posteriori é que as estruturas do sistema psíquico em sua totalidade se transformam mais estavelmente, harmonizando as tendências de personalidade. Esta observação da temporalidade dos processos psíquicos faz compreender que as técnicas terapêuticas de curto prazo (dessensibilizações progressivas, terapias breves, terapias focais, etc) podem complementar-se a necessidades de tratamentos mais prolongados.

Se nos seres humanos existem, conjuntamente, esquemas saudáveis ou adaptativos e esquemas patológicos ou desadaptativos, entendemos que as dinâmicas terapêuticas devem considerar estes dois aspectos. A conquista da saúde psíquica é

uma construção de novos esquemas, pelo aproveitamento de estruturações saudáveis já construídas, pela ocorrência de transformações, inserções de “novidades” esquemáticas, pela estabilização que esta esquemática adaptativa adquire por sua repetição no tempo e generalização nas diversas ocasiões a que nos expomos. A “conquista” da saúde se dá, em muitos casos, por construções adaptativas e desconstruções de esquemas patogênicos, paralela e solidariamente.

Um processo harmonizador pode comportar elaborações simbólicas das significações pessoais, dos perfis afetivos já constituídos e dos que estão em criação. As disposições de mais longo prazo da personalidade não são fixadas apenas por traços afetivo-emocionais, mas têm a participação importante dos pensamentos que o indivíduo tem a respeito de si-mesmo, das pessoas com quem se relaciona e do meio social geral. A cognição, além de consolidar certos aspectos gerais da personalidade, pode oferecer instrumentos de transformação destes quadros ou esquemas integrais relativamente estáveis.