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Algumas possíveis conseqüências do fenômeno da homogeneização no cenário político

CAPÍTULO 2 – PATOLOGIAS PARTIDÁRIAS

2.2. A homogeneização ou amorfismo dos partidos

2.2.4. Algumas possíveis conseqüências do fenômeno da homogeneização no cenário político

Além de todos os efeitos já difusamente mencionados acima, o amorfismo dos partidos políticos que disputam as preferências eleitorais é capaz de gerar algumas conseqüências muitos danosas sobre o cenário político-partidário.

A primeira delas é a fragilização dos debates eleitorais e ascensão potencial de demagogos. Que a homogeneização dos partidos contribui para a fragilização dos debates eleitorais é óbvio. Legendas amorfas só são capazes de produzir programas materialmente indistintos entre si. Em conseqüência, o processo de escolha passa a ser demasiadamente personalizado. Pois se os discursos são semelhantes, o que prepondera para a população não é a bandeira, mas quem a ostenta. Por decorrência, esta personalização sobrepõe exageradamente o líder ao partido, fomentando a formação do que Maurizio Ridolfi chama de “‘farsi’ di una ‘democrazia dell’opinione pubblica’, na qual:

il confronto tra i mezzi tradizionali di orgazizzazione del

consenso (manifesti, comizi, giornali) e i linguaggi di pubblicità e televisione definì un nouvo spazio per la comunicazione politica, ben oltre quello della propaganda di partito. Emerse una cerscente personalizzazione della luota politica ed elettorale sia per i leader nazionali che per i notabili locali” 158

.

Nos andares mais altos do poder esta personalização é uma das causas determinantes da oligarquização das decisões partidárias. Nos andares inferiores, o resultado é a fragilização dos vínculos entre o político e a legenda. Pois se o que realmente importa para o cidadão é a figura do candidato e não a imagem que faz do partido, então, os verdadeiros grandes chefes partidários – que normalmente ocupam os mais cargos eletivos de maior destaque – passam a exercer uma influência esmagadora

158Storia dei partiti politici – L’Italia dal Risorgimento alla Repubblica. Milano: Bruno Mondadori, 2008,

136 sobre a agremiação. Nas escalas internas de poder imediatamente inferiores, esta personalização fragiliza os vínculos que unem os políticos às próprias legendas. Pois se seu patrimônio pessoal de votos é realmente seu, particular, e não devido à sua conexão com qualquer legenda, então a troca de partido pode lhe ser interessante ou favorável no caso em que lhe seja vedado ocupar espaços políticos ou influir decisivamente nas escolhas internas de seu partido, ou mesmo quando a deserção se mostrar potencialmente apta a lhe trazer maiores chances de sucesso nas urnas, em função de razões matemáticas ligadas às expectativas relacionadas aos cálculos dos quocientes eleitorais e partidários (arts. 106 a 109 do Código Eleitoral).

É claro que esta fragilização de laços também se verifica nos níveis superiores do comando partidário. O peso dos votos do candidato o credencia para flexionar seus músculos eleitorais para exigir do partido determinada postura. Caso não seja bem sucedido nesta disputa interna de forças, ele pode procurar abrigo em outra legenda disposta a acolher seus eleitores de braços abertos. Não obstante, esta mudança é sempre mais delicada em função da comum existência de oligarquias já estabelecidas nos outros partidos e que nem sempre estão dispostas a dividir poder com um agente tão ou mais poderoso que elas.

Outro efeito da homogeneização das legendas e, conseqüentemente, dos debates eleitorais, é a tendência de tratamento superficial das questões sociais relevantes, dos problemas da máquina pública e dos serviços públicos prestados aos cidadãos. É verdade que a simples polarização das disputas não garante, por si só, a qualidade das discussões acerca dos problemas relevantes que afligem uma sociedade. Entretanto, favorece.

Ainda, legendas amorfas tendem a vergar seus programas diante de qualquer alteração dos humores sociais e políticos. Como uma asa delta que busca quaisquer correntes de ar quente que lhe permitam subir o suficiente para planar livremente durante algum tempo, os partidos homogeneizados tendem a alterar suas plataformas político-eleitorais sempre que os meios de pesquisa ou de comunicação indicarem que esta guinada tem potencial para se converter em votos (“catch-all party”).

137 Ora, todo partido tem o direito (quase o dever) de programaticamente evoluir em sintonia com a sociedade sob pena de ser substituído por outro que se mostre capaz de estabelecer esta conexão com as expectativas da maioria do eleitorado. Entretanto, esta transformação não pode ser fruto exclusivo de impulsos oportunistas e eleitoreiros. Deve ser decorrente, isso sim, de profundas e constantes discussões internas que envolvam todas as instâncias partidárias possíveis.

Segundo sua tradicional justificativa teórica, os partidos devem representar ideologias ou programas de governo coerentes com a vontade do eleitorado (ou, pelo menos, parte dela). A correspondência entre a conduta dos partidos, de seus integrantes eleitos e dirigentes com estes anseios populares – aferidos, em teoria, ao final de cada pleito - é um dos elementos que contribui para a legitimação do exercício do poder. Por conseguinte, quanto mais próxima da maior parte dos eleitores for esta correspondência, maiores são as chances de êxito de uma dada agremiação nas eleições periódicas que são disputadas.

Em contrapartida, não se pode perder de vista as conseqüências do que denominaria o relacionamento dinâmico entre os partidos. De fato, conforme adiantado na introdução, interessa-nos o estudo dos partidos nos ambientes democráticos onde, por demanda das necessárias possibilidades de contestação legítima e de alternância do poder, mais de um grupo deve disputá-lo livremente. Nos regimes em que os partidos, por força da legislação, da tradição ou da dinâmica política, tornaram-se verdadeiras máquinas eleitorais, açambarcando uma maior relevância no processo de disputa pelos cargos eletivos, necessária e historicamente, precisam atuar segundo duas ordens de idéias que, não obstante paradoxais, coabitam.

A primeira, particular, corresponde à sua verdadeira razão de existir; é aquele conjunto de idéias ou de propostas que o aparta dos demais. Questões relativas, por exemplo, ao aborto, à eutanásia, à pesquisa com células tronco, à pena de morte, aos limites da intervenção do Estado na economia, à política tributária, à questão ecológica e a inúmeros outros temas importantes que povoam as páginas dos periódicos e, de certa forma, dividem as opiniões.

138 Estes aspectos, conforme apontado, são a razão de ser dos partidos. A busca por identificação com alguma parcela da sociedade foi o que, historicamente, pautou o surgimento dos partidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, os Partidos Republicano (posteriormente dividido em Republicano Nacional e Democrático, antecessor daquele que hoje carrega este último nome), liderado por Thomas Jefferson e o Federalista (antecessor do atual Partido Republicano), liderado por homens como Hamilton, contrapunham-se acerca do papel da União na nova federação que então se formava. Posteriormente, também a questão da escravidão, em meados do século XIX, afetou profundamente a divisão partidária naquele país. Outrossim, na Inglaterra, enquanto os tories (antecedentes remotos do Partido Conservador) representavam os interesses da então remanescente aristocracia feudal inglesa, os wighs (antecedentes remotos do Partido Liberal) defendiam os ideais da ascendente burguesia inglesa urbana e industrial 159. No Brasil, os liberais e os conservadores representavam diferentes interesses no parlamento imperial, ainda que a origem social semelhante dos membros de ambas as legendas tornasse, não raro, difusa esta diferenciação.

Ao que consta, estes primeiros agrupamentos, em sua origem, apresentavam estrutura e objetivos muito menos sofisticados que os atuais. Se já serviam para organizar os trabalhos legislativos e segmentar o parlamento em facções mais ou menos coesas em torno de determinados pontos programáticos, ainda não apresentavam a vocação para organizar forças em torno dos eventos eleitorais que exibem os partidos atuais. Mesmo porque as restrições eleitorais (censitárias, de gênero, de raça) que imperavam enquanto os partidos começavam a se difundir pelos regimes, de certa forma, homogeneizavam o pequeno contingente de cidadãos aptos a influir no processo eleitoral.

Entretanto, em uma sociedade tão complexa como a atual, buscar a maioria dos votos de um grande eleitorado sem ao mesmo tempo flexibilizar seus programas e dogmas para atingir um número maior de simpatizantes representa desafio quase intransponível. E é aí que surge a segunda tendência contraposta acima aludida.

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FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Alfa-Ômega, pp. 11-16.

139 Com efeito, se sob o ponto de vista particular, individual, os partidos devem se limitar a representar as opiniões de apenas um segmento da sociedade (ainda que majoritário); sob o prisma sistêmico, eleitoral, as diferenças marcantes eventualmente existentes entre eles acabam se diluindo na busca desta tão almejada maioria, uma vez que é da própria índole dos partidos políticos a mobilização da sociedade (ou de parcela dela) em prol da busca pelo poder político.

Estas duas ordens paradoxais de idéias convivem em um regime democrático de acordo com um equilíbrio muito delicado. Sistemas de partidos muito polarizados podem apresentar tendências ao radicalismo. Por outro lado, sistemas de partidos que flexibilizam fácil e demasiadamente seus programas e objetivos essenciais em busca de votos em um espectro maior da sociedade tendem à amorfia, à homogeneização.

O grande problema de todo este cenário de homogeneização partidária traçado é que a vontade popular deixa de ser a grande força motriz da ação política transformadora da realidade social e passa a ser um mero instrumento empregado pelos atores políticos para alcançarem seus próprios objetivos. É verdade que estes objetivos não são necessariamente individuais, egoísticos ou mesmo ilegais. Em muitos casos, os agentes do poder sinceramente acreditam que manipular o eleitorado em favor de suas próprias convicções acerca do que possa ser melhor para o povo é um pequeno preço que o regime democrático deve pagar em favor dos resultados materiais a serem alcançados assim que passarem a controlar a máquina administrativa. É desnecessário dizer, entretanto, tratar-se esta de conduta desviada que não pode ser considerada como parâmetro ideal para a elaboração de um modelo político baseado na ampla e livre participação popular.

Um sistema de partidos pouco distintos entre si limita a eficiência do processo dialético no qual se transforma um regime sadio de alternância no poder. Aos cidadãos, nesta paisagem, não são oferecidas alternativas eleitorais reais: apenas mais do mesmo.

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