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3. O Bailado do Encantamento e A Princesa dos Sapatos de Ferro (1918) 1 As Madrinhas de Guerra e a preparação dos bailados

3.3. Os elementos artísticos

3.3.3. Algumas questões a propósito dos figurinos

Ao contrário do que aconteceu com o Bailado do Encantamento, que terá tido uma recepção mais mediatizada e com um outro impacto, como comprovam as muitas fotografias dos intérpretes publicadas na revista Ilustração Portuguesa e no nº32 da revista Atlântida, A Princesa dos Sapatos de Ferro teve uma divulgação bastante mais discreta. Os registos visuais publicados na imprensa são essenciais para que se estabeleça uma análise entre desenho/fotografia a respeito dos elementos artísticos que compuseram os bailados do Teatro de São Carlos – neste caso, dos figurinos – servindo assim para uma compreensão ampla de ambas as realizações.

É através dessa observação comparativa que verificamos uma semelhança notória entre desenho e confecção dos figurinos de Raul Lino para o Bailado do

Encantamento; enquanto nos figurinos de Almada Negreiros para A Princesa dos Sapatos de Ferro constatamos algumas disparidades assinaláveis. É difícil ajuizar sobre

as razões de tal discrepância, embora seja possível que, para além da questão custo/funcionalidade dos figurinos, também a notoriedade pública dos artistas possa ter tido o seu peso no processo criativo dos bailados. Almada Negreiros era, na época, um jovem “desalinhado” com as convenções, que provocava a desconfiança da opinião pública pela sua personalidade excêntrica; Raul Lino era, pelo contrário, um reconhecido e celebrado arquitecto, por muitos considerado como um dos expoentes máximos da arte moderna portuguesa. De modo a ilustrar estas diferenças criativas, será talvez pertinente invocar os figurinos (BE.24, BE.25 e BE.26) da autoria de Almada Negreiros para o Bailado do Encantamento.

BE.24 e BE.25: Figurinos de Almada Negreiros para Bailado do Encantamento, 1918. (desenho BE.24)

Rainha, tinta-da-china e aguarela, 27x18,5cm, colecção particular. Imagem de Manuel Rosa (Documenta | Sistema Solar); (desenho BE.25) Escrava, tinta-da-china e aguarela, colecção particular.5

BE.26: Figurino de Almada Negreiros para um Pajem da Rainha do Bailado do Encantamento, 1918, tinta-da-china e

aguarela, 27x18,5cm, colecção particular. Imagem de Manuel Rosa (Documenta | Sistema Solar).

5 Para os desenhos BE.24, BE.25 e BE.26, o meu agradecimento especial à Doutora Mariana Pinto dos

A publicação destes três desenhos num catálogo, em 2015,6 levou a considerar-

se a hipótese de Almada Negreiros ter desenhado os figurinos de ambos os bailados, e não apenas de A Princesa dos Sapatos de Ferro. (ABREU 2016: 56). De facto, a 27 de Fevereiro de 1918, o nome de Almada era apontado como um dos desenhadores dos figurinos, a par com Raul Lino,7 o que não exclui a hipótese de Almada ter desenhado

numa fase embrionária para o Bailado do Encantamento. Este era o único bailado que estava previsto apresentar inicialmente, tendo começado por ter um outro título - A

Rainha Encantada - conforme também atesta a legenda em cada um dos três desenhos

dos figurinos de Almada Negreiros (desenhos BE.24, BE.25 e BE.26). Este facto reafirma a probabilidade de estes projectos para figurinos da autoria de Almada remeterem para uma fase mais embrionária de preparação daquilo que acabou por ser o Bailado do Encantamento propriamente dito, e em que os figurinos de Raul Lino foram os escolhidos para a apresentação no Teatro de São Carlos.

De qualquer forma, é curioso observar como os desenhos de Almada denotam uma estética mais vanguardista do que os de Raul Lino, estando mesmo mais próxima de trabalhos de figurinistas dos Ballets Russes, como Léon Bakst ou Mikhail Larionov, ou dos figurinos simultaneístas de Sonia Delaunay.8 O jogo de contrastes de cor e a

profusão de padrões geométricos caracteriza estes três figurinos que apresentam linhas bastante estilizadas. Sara Afonso Ferreira vai mais longe na descrição destes desenhos de Almada, definindo-os como figuras “primitivistas” e infantilizantes, à semelhança do trabalho de Larionov, figurinista dos Ballets Russes, para o bailado

Soleil de Minuit (1915) (FERREIRA 2014: 441-442). A perspectiva tosca e caracterização

das personagens são feitas de uma forma um tanto naïve, quase diríamos como personagens-tipo – particularmente visível nos desenhos da Rainha e da Escrava, já que aparecem representadas com os respectivos atributos. Teria sido muito interessante ver o resultado final dos figurinos confeccionados, já que parecem ter provocado um assinalável efeito visual em palco.

6 O artigo de Mariana Pinto dos Santos e de Sara Afonso Ferreira menciona que os desenhos de Almada

Negreiros foram feitos para o bailado A Rainha Encantada, como aliás atestam as legendas autógrafas no canto superior direito de cada desenho. No entanto, esse título reporta-se a um nome primordial do que acabou por ser o Bailado do Encantamento, conforme se verifica nas primeiras referências feitas à festa de caridade na imprensa portuguesa. Cf. ANEXO 1, texto 15.

7 Cf. ANEXO 1, texto 5 e texto 15.

É possível que algo semelhante tenha acontecido com um outro nome apontado pela imprensa como figurinista do Bailado do Encantamento, e que acabou por não constar na ficha artística do programa dos bailados. O Diário Nacional de 25 de Março de 1918 menciona o nome de José Amorim,9 que estaria a trabalhar com Raul

Lino no desenho dos fatos das Damas da Corte. Este parece ser o único registo feito ao trabalho conjunto entre Lino e Amorim, já que não encontrámos nenhuma outra referência na documentação consultada. No entanto, conseguimos identificar três desenhos de um artista que assina apenas “Amorim”, assinados e datados de 1918, que abaixo reproduzimos, respeitantes a um figurino feminino (BE.27) e a dois masculinos (BE.28 e BE.29), até hoje não referenciados, e que se encontram num dossier de colecção particular, juntamente com os desenhos BE.20 e BE.23 já referidos.

BE.27: Figurino de Amorim para uma Dama da Corte (?) do Bailado do Encantamento, 1918. Colecção

particular.

BE.28 e BE.29: Figurinos de Amorim para Gentishomens (?)/Pajens (?) do Bailado do Encantamento, 1918.

Colecção particular.

Aparentemente mais comprometidos com uma estética medievalizante, os três desenhos assinados por Amorim levam-nos a especular sobre se de facto chegaram ou não a ser confeccionados para as apresentações públicas do Bailado do Encantamento. Esta é uma dúvida a que não nos é possível responder, já que a documentação a que tivemos acesso não é esclarecedora quanto a esse aspecto. A partir das fotografias consultadas, não conseguimos identificar nenhum dos figurinos dos intérpretes como sendo de Amorim. Terá trabalhado em colaboração com Raul Lino? Não sabemos também por que é que existem dois desenhos de figurinos masculinos, sendo que o

Diário Nacional noticiara que Amorim estaria apenas a criar para as Damas da Corte.

De qualquer forma, Raul Lino é de facto o único nome creditado na ficha técnica do

Bailado do Encantamento que consta no programa dos bailados, o que nos leva a

considerar que os projectos para o mesmo bailado de Amorim tenham sido abandonados, tal como terá acontecido com os desenhos de Almada Negreiros. É possível que a escolha final tenha recaído sobre um nome mais consagrado e consensual como era o de Raul Lino.

Sobre os figurinos de A Princesa dos Sapatos de Ferro, não há documentação relevante no que respeita aos figurinos da Velha, representada também por Almada Negreiros, e aos dos vários Diabinhos. Sarah Affonso10 recordaria mais tarde este

mesmo bailado no livro de Maria José de Almada Negreiros, Conversas com Sarah

Affonso, dizendo ter assistido à terceira récita, a 21 de Abril de 1918. Nessa obra, a

mulher de Almada relata como os Diabinhos teriam vestido uns maillots vermelhos, enquanto a personagem da Velha vestia um vestido de veludo e seda roxo e preto, um chapéu com uma pluma e levava uma vassoura. Mas Sarah Affonso menciona um dado mais curioso ainda a propósito do figurino da Velha, especificando que “vinha sobre

andas, de forma que fazia uma figura muito teatral.”11 Como vimos no desenho de

Almada, o seu Diabo (PSF.7) tinha também umas andas nos pés, solução que terá sido eliminada no figurino final (PSF.8). É possível que Almada Negreiros tenha querido utilizar este dispositivo tanto na Velha como no Diabo; a utilização simultânea das andas nas duas personagens poderia ter, então, reforçado a ideia de um grande Diabo

em disfarce.

A preparação dos bailados parece ter passado por múltiplas etapas de criação, com os vários artistas a trazerem opções estéticas à discussão; através da documentação visual, é possível extrapolar que dentro da equipa artística haveria vozes dissonantes quanto ao rumo a tomar em ambos os bailados. Essa discussão teve talvez particular expressão no Bailado do Encantamento, já que os desenhos de figurinos denotam uma dicotomia na estética da romantização do passado (Raul Lino) e da modernidade (Almada Negreiros). Apesar da riqueza da documentação visual encontrada, há muitos elementos sobre os quais apenas podemos conjecturar, nomeadamente no que respeita aos espectáculos e às respectivas coreografias dançadas. As fotografias encontradas apenas representam os intérpretes com os seus figurinos; não deixam, ainda assim, de ser meros registos encenados, forjados para divulgação, do que terão sido os bailados propriamente ditos. Ainda assim, a análise iconográfica apresenta-se-nos, pois, como etapa fundamental para tentar reconstituir e compreender o processo de construção dos espectáculos, bem como as opções estéticas e os seus intervenientes na criação.

3.4. Impacto mediático