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Algumas questões sobre o estudo da sociologia da religião no Brasil

2 BREVE INCURSÃO SOCIOLÓGICA SOBRE O FENÔMENO RELIGIOSO

2.2 Algumas questões sobre o estudo da sociologia da religião no Brasil

A pesquisa em ciências sociais da religião constituiu-se no Brasil, entre os anos 1950 e 1960, como campo disciplinar específico. O declínio do catolicismo – religião majoritária e hegemônica – propiciou a emergência e formação de uma postura favorável ao estudo do fenômeno religioso. No primeiro momento, a produção da sociologia da religião se caracterizou majoritariamente como uma “sociologia do catolicismo, não porque o catolicismo seja a religião majoritária, mas porque nesse momento suas elites têm necessidade pastoral de sociologia” (PIERUCCI, 1999a, p. 257). Esse início da pesquisa científica em sociologia da religião na academia também abriu espaço para os cientistas sociais no estudo dos grupos minoritários, como os protestantes (e pentecostais), espíritas e afro-brasileiros. Todavia, foi a partir de 1970 que se consolidou uma sociologia das religiões entre nós.21.

O principal estudo acadêmico sobre o pentecostalismo divulgado no país, em 1969, e que se tornou um marco pioneiro foi escrito por Beatriz Muniz de Souza. A obra intitulada A experiência da salvação: pentecostais em São Paulo, baseada na sua tese de doutorado e defendida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro - São Paulo, foi orientada por Cândido Procópio Ferreira de Camargo, um dos fundadores da sociologia da religião no Brasil.

Inclusive, a obra Católicos, protestantes, espíritas, de Cândido Procópio Ferreira de Camargo, publicada em 1973, desenvolveu um quadro teórico dos estudos de religião no país. Essa produção acadêmica buscava compreender a influência da religião nos processos de mudança social. Segundo Souza e Martino (2004, p. 8-9),

o livro [de Camargo] estabeleceu pela primeira vez uma tipologia das diversas manifestações religiosas no Brasil, atentando, sobretudo, às condições de sobrevivência da religião em uma sociedade em processo de modernização.

21 “[...] Cabe destacar que os anos 70 assistiram à implantação em terras brasileiras e mais especificamente paulistas de uma institucionalidade física sem precedentes para a pesquisa em ciências sociais da religião. Os anos 70 foram pródigos de novidades para a área. Essa institucionalidade de que falo tomou corpo: 1) na criação de 1970, sob a liderança de Cândido Procópio Ferreira de Camargo, do chamado Setor de Religião no recém-nascido CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise de Planejamento); 2) com a fundação do ISER na UNICAMP no início da década de 1970, sob a liderança de Rubem Alves; e 3) do CER, na USP, sob a liderança de Duglas Teixeira Monteiro, estas duas últimas organizações desembocando gloriosamente 4) na criação, em 1977, da revista Religião & Sociedade, ligada institucionalmente tanto ao ISER quanto ao CER já abriria nos anos antes com os chamados Cadernos do ISER, cujo n. 1 saiu em 1974, espaço que antes deles não existia. Graças aos Cadernos do ISER e à revista Religião & Sociedade aumenta enormemente a produção da área em número de publicações, divulgam-se os nomes e os achados dos pesquisadores especializados em religião para um público maior (se bem que sempre restrito, mesmo com o passar dos anos, a algumas centenas de envolvidos em todo o país) e, efeito ainda mais alentador, diversificam-se as temáticas e os enfoques” (PIERUCCI, 1999a, p. 265).

Esse livro [também] foi o primeiro a fazer reflexões sobre o inexorável processo de transformação da religião para se adequar às novas realidades do país – um país urbano, industrializado e com um índice progressivo de desigualdade social. Se isso abalou todas as estruturas agrárias e industriais do país, afetou igualmente a hegemonia católica, abrindo espaços para novos participantes do campo religioso – sobretudo evangélicos e espíritas.

Noutras palavras, Cândido Camargo procurou explicar o paradoxo entre modernidade e religião, que tomou como referencial Max Weber. Com essa obra, ainda, legitimou pelo uso do método sociológico, “os campos de estudos da religião e da sociedade”, visto que “foi apenas com Católicos, Protestantes, Espíritas que a religião ganhou o status de objeto de estudo” (Ibidem, p. 9).

No entanto, segundo Pierucci (1999a, 1999b) a sociologia da religião também se constituiu como “impuramente acadêmica” e carente de credibilidade científica perante as ciências sociais devido à presença de pesquisadores que professam ou praticam crenças religiosas, bem como por seus trabalhos intelectuais fazerem elogio da religião e aplaudirem o retorno do sagrado. Na sua visão ainda, o envolvimento entre ciência e religião é uma “ligação perigosa” que afeta os resultados, objetivos e pretensões da pesquisa científica. O fato de a religião ser estudada pelos cientistas sociais que tem uma formação religiosa impossibilita que as ciências sociais da religião sejam “verdadeiramente científicas”, pois “nunca foram, nem jamais chegaram a ser, uma área puramente acadêmica” (PIERUCCI, 1999a, p. 245, grifo do autor).

Mas, tal como Camurça (2000), não concordamos com a argumentação de Pierucci (1999a, 1999b), de que a sociologia da religião se constituiu como “impuramente acadêmica” ou “academicamente impura” devido à presença de sociólogos que participam em graus diversos do campo religioso. Isso porque, o estudo dos fenômenos sociais, exige de qualquer cientista social um intenso trabalho de distanciamento. Além disso,

para manter uma coerência acadêmica, esta cobrança epistemológica [de Pierucci], feita aos cientistas sociais com confissão religiosa, no limite, deveria ser estendida a pesquisadores com outras pertenças: uma militante feminista que faça uma antropologia do gênero, um ativista negro ou gay que realizem pesquisas sobre comportamento étnico e sexualidade, todos possíveis de suspeição metodológica e suas áreas sob o risco de se tornarem “impuras” academicamente (CAMURÇA, 2000, p. 73).

Noutras palavras, a postura de rigor e distanciamento científico não deve ser exigida exclusivamente dos cientistas sociais com pertença religiosa que estudam sua própria religião, pois quaisquer pesquisadores que tenham outros pertencimentos devem se afastar das pré- noções e convicções pessoais. Inclusive, segundo Bourdieu (2004), há outras dificuldades de

fazer sociologia do campo religioso, não pelo fato do campo religioso ser difícil de ser analisado,

mas porque, quando se faz parte dele [do campo religioso], participa-se da crença inerente ao fato de se pertencer a um campo, qualquer que seja ele (religioso, universitário, etc.), e porque, quando não se faz parte dele, corre-se em primeiro lugar o risco de deixar de inscrever a crença no modelo, etc. [...], e, em segundo lugar, de ser privado de uma parte da informação útil (BOURDIEU, 2004, p. 108)

Mais detalhadamente, ao fazer parte do campo religioso, os pesquisadores que estudam religião têm dificuldades de objetivarem as experiências autóctones ou “olhares autóctones”, isto é, a familiaridade com seus objetos de pesquisa, bem como as convicções religiosas podem impedir uma “objetivação participante”. Mas, também, os pesquisadores da religião que estão fora do campo, em suas análises, podem ignorar pequenos detalhes ou excluir informações importantes para o entendimento científico da religião. Ou ainda, ao acreditarem que os obstáculos epistemológicos irão “saltar aos olhos” ao pesquisarem determinada religião, acabam tendo dificuldades na coleta de informações para o desenvolvimento da pesquisa, pois os dados não são disponibilizados pelas instituições religiosas pelo fato deles não terem pertencimento religioso.

Aproveitando essa discussão, destacamos ainda que a construção do objeto desta dissertação foi guiada pelas pré-noções, ou melhor, pelo vínculo estreito que existe em relação ao objeto e a pesquisadora22. Por isso que, na compreensão dos fatos sociais da qual a religião se faz presente, é importante considerar que “os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados como coisas” (DURKHEIM, 2013, p. 203), tratando-os de fora, distanciando-se de determinadas representações elaboradas e cristalizadas que são comuns. No entanto, Durkheim (2013, p. 208) afirma:

O que torna essa libertação particularmente difícil em sociologia é que o sentimento com frequência se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas próprias crenças políticas e religiosas, por nossas práticas morais, muito mais do que pelas coisas do mundo físico; em consequência, esse caráter passional transmite-se à maneira como concebemos e como nós explicamos as primeiras. [...] Toda opinião que as perturba é tratada como inimiga.

Ou ainda, “todo indício de valorização é mau sinal para o conhecimento que busca a objetividade. [...] desde que intervém um valor, haverá oposições a esse valor. O valor

22 Durante a construção do objeto de estudo desta pesquisa, interessou-se pela Assembleia de Deus na Ilha de São Luís, pois, para além de ser uma igreja com representatividade no estado do Maranhão, faz parte de um processo para entender o grupo evangélico que eu sou vinculada há mais de dez anos.

produz automaticamente atração ou repulsão” (BACHELARD, 1996, p. 81). Por outras palavras, a libertação das pré-noções na compreensão dos fenômenos sociais é um exercício difícil, porque o sentimento é formado historicamente, um produto da experiência humana, que pode ser objeto de estudo da ciência, mas não um critério da verdade científica, o que dificulta uma análise objetiva dos fenômenos. A realidade social apresenta a particularidade de ser capaz de cristalizar-se, pois a força do pré-construído se mostra com as aparências da evidência que passa despercebida porque se naturaliza. Isto posto,

A ruptura [com o pré-construído] é, com efeito, uma conversão do olhar e pode-se dizer do ensino da pesquisa em sociologia que ele deve em primeiro lugar, “dar novos olhos” [...]. Trata-se de produzir, senão “um homem novo”, pelo menos, “um novo olhar”, um olhar sociológico (BOURDIEU, 2011, p. 49).

Durante um trabalho científico, é importante “olhar sociologicamente”, sem que as influências religiosas arraigadas, ideias adquiridas e convicções morais interfiram nas análises. Ou ainda, afastar-se das pré-noções, isto é, dos preconceitos, sensações, paixões e emoções, além do emprego de conceitos formados fora da ciência, assim como das falsas evidências que dominam as pressuposições do senso comum. Por outro lado, “aproveitar” a inserção no campo religioso para “retirar daí experiências e informações necessárias para produzir uma objetivação não redutora, capaz de superar a alternativa do interior e do exterior, da vinculação cega e da lucidez parcial” (BOURDIEU, 2004, p. 112).