• Nenhum resultado encontrado

Algumas sínteses e lições provisórias: a busca da (in)completude no

2 RE-CONHECENDO-ME NO ENCONTRO COM AS MINHAS MEMÓRIAS

2.3 Algumas sínteses e lições provisórias: a busca da (in)completude no

O compromisso de estar junto com os Kaiowá e Guarani no processo de construção de uma educação escolar específica e diferenciada obrigou-me a re-pensar a história da minha formação pessoal e profissional. Revirei documentos, cartas, bilhetes, fotografias, despi-me de pudores e tomei a decisão de narrar a minha autobiografia. Nesse percurso, fui alertada por Bourdieu sobre a “ilusão biográfica”. O autor tinha razão. As memórias não contam a nossa história como uma trajetória, um caminho. Como num caleidoscópio, as imagens que ela evoca mudam de forma, de espaço e de tempo. Buscamos captá-las, nas cores mais vivas. Partimos delas para construir nossas narrativas.

Gravitei a minha autobiografia em torno do meu “projeto de herança” familiar. Estou ciente de que poderia ter escolhido outros caminhos. O foco e as imagens seriam certamente outros. Sei também que poderia ter lido com outras lentes o que foi narrado neste texto. Não descarto a hipótese de fazê-lo em outro momento. De qualquer modo, acredito que a opção de trazer à tona lembranças do meu passado, sob o fio condutor do “projeto de herança”, constituiu-se num momento precioso para a reflexão sobre aspectos importantes da minha vida que, de uma ou outra forma, estão relacionados com o modo como me situo no mundo. Com o auxílio de contribuições teóricas, pude experimentar o potencial de des-“ilusão de transparência” e até mesmo de des-aprendizagem de práticas já sedimentadas. O exercício de lembrar do passado propiciou-me um encontro com recordações que, no mínimo, instigaram-me a uma percepção mais arguta dos condicionantes que envolvem a minha atuação como docente e pesquisadora. Pude ver como o passado se faz presente em minha

14 A noção de habitus tal como é discutida por Bourdieu (1983) refere-se a um “sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto de obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los, e coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um regente [...]” (p. 61).

vida profissional e, de certa forma, como o presente continua dando sentido ao meu passado. Reavivar e escrever sobre as minhas memórias foi, portanto, um exercício de

reflexãopesquisa, de re-conhecimento de mim mesma, do meu “lugar”, dos processos que impactaram o meu mundo e o modo como me movimentei/movimento nele.

Repensei-me como professora, “projeto de herança” em (in)acabamento. E me vi em professoralidade, em devir, em construção de minhas singularidades. Como um sistema complexo, aberto e não-linear, senti-me evoluindo, fissurando-me e recompondo-me, criando incompletudes e buscando novos significados para a minha prática. Re-pensei-me como pesquisadora no contexto da des-crença nos fundamentos produzidos e supostos pelo meu próprio Campo. A crença nas relações lineares entre causa e efeito, tão cara à física newtoniana (e para mim, tão mais fácil de decifrar), fazia menos sentido agora. Quem sabe um dia eu poderei entender e assimilar, de fato, um outro paradigma, não-linear - um sistema aberto e muito mais complexo - que me auxiliará a acolher explicações e visões de mundo distintas das que a ciência moderna me ensinou a conhecer?

Foi necessário revirar o passado e re-ler Bourdieu para que eu pudesse sentir que os Kaiowá e Guarani estavam perto de mim, muito mais do que eu imaginava. De dentro desse processo reflexivo, fui começando a perceber os Kaiowá e Guarani mais de perto, olhando-me de um jeito que eu não me via/vejo, instigando-me a olhar-me de um modo diferente do que eu fazia, encorajando-me a argüir a mim mesma, desafiando o medo de descobrir quem sou.

Apoiada em Bourdieu, poderia dizer que o meu interesse pelos Kaiowá e Guarani não resultou de uma situação fortuita.Também não foi mero acaso querer pesquisar/refletir sobre o meu encontro com eles. Ao contrário. Suspeito que meu encontro com os alunos kaiowá e guarani teria sido “pré-destinado” (como diria Bourdieu). Não me refiro a forças ocultas guiando o meu caminho, mas à possibilidade de que a disposição de estar com eles já estivesse inscrita no meu habitus, nos processos que constituíram o meu “projeto de herança”, originado bem antes do dia em que os conheci. Acredito mesmo que o meu encontro e a disposição, “durável e transferível” (para não perder de vista o conceito de habitus), de dialogar com os Kaiowá e Guarani poderiam ser compreendidos sob a óptica da construção do meu projeto de herança.

Agrada-me a idéia de que venho construindo durante todo esse tempo relações de cumplicidade com os alunos indígenas que, assim como eu, sofreram/sofrem os efeitos da

76

desigualdade social e vão em busca de formas de minimizá-los. Sob essa óptica, o projeto de pesquisar populações indígenas não estaria des-localizado e des-historicizado da minha vida pessoal e profissional. O diálogo com os Kaiowá e Guarani teve e terá a marca dos meus lugares, da minha história de mulher, branca, neta de italianos, portugueses e africanos, filha de operários, formada nos moldes da ciência moderna, herdeira de um “projeto de herança” jamais terminado. Ao caminhar junto com eles, estou também, de certa forma, atualizando o meu “projeto de herança”, aproximando-me das minhas origens, enquanto, paradoxalmente, me distancio delas.

Com o habitus estorvado, estou aqui, hoje, na academia, pensando, com as minhas lógicas, sobre como poderei fazer a re-construção de mim mesma e em que medida serei protagonista da construção das minhas novas identidades. Ainda bem que conto com companheiros nessa viagem. Acabo de aprender, com Geraldi (2003, p. 47), que as incompletudes são a condição primeira da construção das identidades, a “energia geradora da busca da completude eternamente inconclusa [...]”. Que é a partir do Outro que podemos nos construir, pois é ele que, “dando-nos um acabamento por certo sempre provisório, permite-nos olharmos a nós mesmos com seus olhos”. Que são muitos “outros em cujos olhos habitamos para darmos um acabamento” e, portanto, “nossas identidades são múltiplas, estabilidades instáveis a que sempre regressamos [...]”.

Enchi-me de esperanças de chegar a bom termo em meio às confusões e lacunas que estou experimentando desde que conheci os Kaiowá e Guarani. Importa, agora, que eu continue receptiva a produzir mudanças em mim. Creio que já trilhei uma parte do caminho, fazendo essa espécie de catarse ao narrar os lugares e tempos onde me constituí como professora/bióloga/professora-de-biologia/pesquisadora. Identidades que senti construídas em partes e, ao mesmo tempo, todas juntas, num processo de permanente negociação nos meus ambientes familiar, escolar e profissional, num contexto de (in)acabamento do meu “projeto de herança”. Identidades atravessadas por relações de poder.

Depois desse primeiro exercício de re-conhecimento de mim mesma, começo a entender a impossibilidade de uma narrativa autobiográfica cujo autor se veja “de sobrevôo”. Aprendi que ao expor os lugares e tempos onde pensei/penso e escrevi/escrevo como pesquisadora e professora, também mostro o lugar e o tempo onde sou falada, pensada, avaliada, escolhida. O “eu” professorapesquisadoradoutoranda que escreve este texto opera num contexto de poder. A “memória” sofre os efeitos do poder, por isso escolhe, destaca,

esquece, nega... O “eu” certamente lembrou-se, escolheu e omitiu, pois foi afetado, consciente ou inconscientemente, pelas relações de força entre memória e poder.

Dentro desse contexto de poder, optei por teorias que me auxiliaram na construção da narrativa. Teorias que funcionaram como pontes, diria Corazza (2002), que ligam dois pontos, que funcionam como “rotas de fuga” enquanto nos lembram dos “lugares por onde passamos”, mas também lembram de que há “falhas de um caminho” (p. 125). De fato, não faz muito tempo, eu ainda estava trilhando rotas que se estreitavam e andando sobre pontes de aço que julgava inabaláveis. Hoje percebo que estou me esforçando para manter minhas “rotas de fuga” permanentemente abertas e com possibilidades de múltiplas saídas.

Neste capítulo, corri atrás de pistas sobre mim mesma, dos percursos da minha professoralidade, do meu envelhecimento social, dos contextos onde construí/construo relações de pertença. Encontrei muitas coisas importantes. Mas sinto que preciso ir além. Preparo-me, agora, para sair de dentro desse mergulho em mim mesma, na minha história e para construir outras pontes, ir ao encontro de outras “rotas”. Quero sentir mais de perto os Kaiowá e Guarani, a sua história, seus saberes e modos de ser. Pessoas e contextos tão diferentes do que a academia me ensinou e que, de um tempo para cá, começaram a incomodar o meu habitus e me mostraram que havia muitos obstáculos e profundas erosões nos caminhos da minha história.

3 RE-CONHECENDO OS KAIOWÁ E GUARANI E OS PROCESSOS DE