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Trilhando o caminho das pedras (ou como fui desenhando a pesquisa):

1 HISTÓRIAS DE QUERER PESQUISAR E JÁ PESQUISANDO

1.2 Trilhando o caminho das pedras (ou como fui desenhando a pesquisa):

Com o propósito de encontrar uma saída para a construção do objeto de estudo, comecei por fazer um balanço das minhas andanças desde o momento em que conheci os Kaiowá e Guarani. Logo vieram à tona lembranças do dia-a-dia da sala de aula de ciências naturais no Projeto Ara Verá - lugar e tempo privilegiados, nos quais minhas teorias foram desafiadas, ressignificadas, atualizadas e algumas até abandonadas. Foi na sala de aula que os Kaiowá e Guarani me ensinaram a ver um mundo muito diferente do que eu via, bem mais complexo do que a racionalidade acadêmica me apresentara um dia. Foi nesse lugar que, solidários, suportaram comigo as dores e as delícias de ser professora/aprendiz de ciências naturais querendo interagir com pessoas, realidades e lógicas diferentes das minhas. Lugar em que senti a mão gelada, suor brotando no corpo, falta de ar, taquicardia, secura na garganta e outras desordens biológicas típicas de professora principiante. Foi ali que ouvi, pela primeira vez, alguém dizer que eu já estava “quase bom” como professora. E por me saber “quase”, fui desafiada a tornar-me melhor, tanto pessoal como profissionalmente. Foi na sala de aula, com alunos kaiowá/guarani, que me vi aceitando (bem a contragosto, pelo menos a princípio) que

eu seria sempre e irremediavelmente “quase bom”...

Admitindo a importância que o Projeto Ara Verá teve para o meu crescimento pessoal e profissional, senti-me atraída pela idéia de produzir uma Tese em que pudesse dar vida às centenas de registros que colecionei durante o período em que ali atuei como professora de ciências naturais. Tantas memórias inertes, guardadas em caixas, bem que mereciam a oportunidade de se tornarem objetos de crítica. Por que não fazê-lo, agora?

Satisfeita com a possibilidade de ter encontrado uma porta de saída para essa que foi a minha primeira crise, comecei a vasculhar caixas e mais caixas abarrotadas de anotações sobre planejamentos, avaliações, atividades dos alunos, bilhetes, fitas gravadas, fotos, enfim, um imenso volume de fragmentos das memórias do trabalho realizado no Projeto. O que selecionar de toda aquela papelada? Li e reli, ordenei, re-ordenei, retirei e recoloquei, empilhei e guardei todo aquele material não sei quantas vezes. A cada nova tentativa de organização, via a minha história com os Kaiowá e Guarani acontecendo, indo e vindo, em um vai-e-vem caleidoscópico e absolutamente caótico.

No meio do caos me sentia propriamente uma obra em construção. Não uma obra qualquer. Vaidosa, me percebia como obra de linhas arrojadas, embora estivesse rodeada de entulhos. Como apresentá-la ao público sem a limpeza do canteiro e sem os detalhes do acabamento? Pensando assim, lembrei-me de Bourdieu, de como ele se referiu ao pesquisador da academia: como um Homo academicus que gosta do acabado, que evita mostrar os toques e os retoques da ciência que ele faz... Os entulhos, os meus rascunhos deveriam ser tratados até ficarem ao gosto da academia. Teria de cobrir os vestígios, tapar buracos. Que pena! Quantos segredos permaneceriam escondidos, quantas angústias disfarçadas, quantas alegrias contidas e lições não compartilhadas!

Num ímpeto, guardei todas as caixas. Ficaram lá, no armário, olhando pra mim e eu as olhando, quase em surto esquizofrênico, dizendo a elas para me ‘darem um tempo’ até que eu soubesse o que fazer. Permaneceriam adormecidas enquanto eu me voltaria às leituras, tentando encontrar algo que me encorajasse a ressuscitar os meus manuscritos.

Folheando meus livros, acabei diante de textos que tratavam da formação reflexiva do professor, do profissional preocupado em conhecer as suas ações e melhorar a sua prática. Àquela altura, a temática me pareceu interessante, pois supunha ter conduzido de modo reflexivo a minha prática no Projeto. Pensando que essa poderia ser uma via aberta à possibilidade de dar vida aos meus registros, reli cuidadosamente os textos, e fui me dando

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conta de que, cada um deles, em suas distintas abordagens, tinha algo a me dizer sobre a possibilidade de formular um projeto de Tese na perspectiva da reflexividade na docência.

Comecei a escrever alguma coisa, tentando sistematizar algumas das idéias principais da literatura que tinha em mãos. Esse momento se constituiu em uma etapa crucial da minha busca pelo objeto de estudo. Por esse motivo, apresentarei a seguir uma síntese do que apreendi e também as inquietações suscitadas pelas leituras. Antes, porém, não posso deixar de dizer que o exercício de ‘por no papel’ veio acompanhado de uma certa sensação de alívio. Percebia-me, naquele instante, como se estivesse, finalmente, fazendo pesquisa, algo que eu não via enquanto considerava que estava ‘apenas’ vasculhando, organizando e selecionando a documentação. A produção de um simples esboço foi sentida por mim como um ato de redenção do pecado de ter ficado tanto tempo em dúvida sobre o que faria com todas aquelas informações. (Ao lembrar, agora, desse momento, percebo quanto eu estava impregnada das concepções de pesquisa que herdei da minha formação positivista).

Com alguns retoques, resultantes de exclusões e inclusões próprias dos discursos passados a limpo por ocasião da produção de um trabalho de Tese, passo a expor algumas idéias sobre a reflexividade na docência, particularmente as que iluminaram meus caminhos até a escolha do meu objeto de pesquisa. Com esse exercício, estou tentando ser coerente com a minha convicção de que a explicitação do contexto é um dos momentos da pesquisa.

O movimento que discute a reflexividade na docência se espalhou no Brasil, em especial, no âmbito da discussão sobre a formação do professor. De modo bastante abreviado, pode-se dizer que os trabalhos a respeito da prática docente reflexiva relacionam-se, de uma ou outra forma, com a perspectiva do professor como intelectual, investigativo e crítico, dotado de competência teórica e metodológica para olhar retrospectiva e prospectivamente a sua ação, isto é, refletir sobre o que aconteceu, o que observou, que significados atribuiu ao que aconteceu e como utilizar esses conhecimentos nas ações futuras.

A idéia de conceber o professor como pesquisador de sua própria prática há muito vem sendo abordada por diversos autores, sobressaindo-se, em nosso meio, as discussões teóricas que têm origem nos trabalhos de Dewey (1933) e desenvolveram-se posteriormente no cenário internacional, repercutindo no Brasil os trabalhos de Schön (1983; 1987; 1995; 2000). Desde as primeiras obras de Donald Schön, autores preocupados com a formação de professores, tais como Henry Giroux (1997), Isabel Alarcão (1996), José Contreras (2002), Kenneth M. Zeichnner (1993; 1995; 1998), António Nóvoa (1991; 1992; 2002), Philippe

Perrenoud (2002), Selma Garrido Pimenta (2002), dentre outros, submeteram o conceito de prática docente reflexiva à crítica e lapidações.

Não é minha pretensão expor aqui uma revisão do repertório dessas discussões. Embora todas elas, de alguma forma, me conduzissem a pensar na possibilidade de desenhar uma pesquisa referenciada em teorizações que admitem o poder da reflexividade como catalisador de melhores práticas profissionais, destacarei, neste trabalho, a leitura que fiz dos momentos reflexivos propostos por Donald Schön. Foi inspirada nessa leitura que segui pensando na possibilidade de fazer desta pesquisa um momento privilegiado de reflexão.

Schön distingue três tipos de reflexão: reflexão na ação, sobre a ação e sobre a reflexão na ação. O primeiro ocorre durante a prática; o segundo propõe uma reflexão fora e depois do cenário do acontecimento, possibilitando ao profissional tomar consciência do conhecimento tácito, procurando crenças errôneas e reformulando o pensamento. O terceiro tipo - reflexão sobre a reflexão na ação - ajuda o profissional a construir a sua forma pessoal de conhecer. Isso significa olhar retrospectivamente para a ação e refletir sobre o momento da reflexão na ação, isto é, sobre o que aconteceu, o que o profissional observou, que significados atribuiu e pode atribuir ao que aconteceu (SCHÖN, 1987; 1995). Esse último tipo é proativo – orientado para uma ação futura - enquanto os dois primeiros são reativos – orientados para o passado. Tem lugar quando se revisitam os contextos políticos, sociais, culturais e pessoais em que ocorreu a ação, ajudando a compreender novos problemas, a descobrir soluções e a orientar ações futuras (SCHÖN, 1983; 1987).

Traduzindo essas idéias para a profissão do professor, pode-se dizer que a prática docente reflexiva não se reduz ao nível da descrição das experiências docentes. Isso é relativamente fácil; contudo é o nível mais elementar da reflexão. Ser reflexivo supõe, segundo Alarcão (2002) “passar ao nível da compreensão do que aconteceu e depois é preciso passar ao nível crítico, ao nível ético, ao nível de intervenção, inclusive política, porque o professor é alguém que também tem uma dimensão social, interventiva, de cidadania.” (p. 22). A reflexão deve ter, pois, um caráter emancipatório, isto é, o professor deve estar atento às situações de desigualdades e de injustiça (ZEICHNER, 1996), e desejar ativamente a transformação social. O professor reflexivo pensa a si mesmo, avalia-se em processo e, para tanto, deve ter uma atitude investigativa, deve ser capaz de levantar questões e de aprofundá- las para intervir e modificar situações (ALARCÃO, 2002). A pesquisa sobre a prática estaria inserida numa visão ampla e problematizadora da pesquisa, isto é, na perspectiva de alargar o seu espectro, encarando a justiça e a igualdade como valores fundamentais (PONTE, 2005).

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De acordo com Perrenoud (1999), o motor da reflexão do professor não pode ser somente os sentimentos de fracasso, impotência ou desconforto. Em outras palavras, no ambiente de ensino, a prática reflexiva não pode se limitar à resolução de crises. Para o autor, a reflexão é necessária em momentos estáveis, mas é vital em casos de turbulência. O profissional reflexivo aceita a fazer parte do problema e está em estado de alerta permanente. Como parte do problema, o professor necessita de métodos para observar, analisar e compreender melhor os processos e a si mesmo. Isso significa dizer que a reflexão não pode ser jamais inteiramente solitária e, sim, deve apoiar-se em informações, bases teóricas, discussões com colegas etc. Deve ser metódica, disciplinada e, para tanto, necessita de métodos de observação e de sistematização de dados.

Diferentes estratégias têm sido apontadas visando à observação e registro do que ocorre nesse ambiente. Uma das estratégias mais difundidas é a da elaboração, pelo professor, de um “diário de aula” - conforme sugerem Porlán e Martin (1997), além de Zabalza (1994) - entendido como um conjunto de narrações que refletem as perspectivas do professor, nas dimensões objetiva e subjetiva, sobre os processos mais significativos da sua ação. Qual deve ser o conteúdo dos “diários” de modo a favorecer a reflexão? De acordo com os autores, os registros dos “diários de aula” deveriam ultrapassar o nível do simples relato e fazer todo o possível para contemplar os registros dos pensamentos, sentimentos, análises dos fatos, problematizando-os e procurando fundamentar hipóteses que constituam alternativas de ação. Desse modo, os “diários de aula” representariam uma forma de o professor se colocar diante de uma perspectiva diacrônica em relação às situações vividas, possibilitando-o a refletir sobre a sua evolução e desenvolvimento profissional num determinado período de tempo. Além disso, segundo Porlán e Martin (1997), a leitura reflexiva sobre os registros tornaria possível ao professor estabelecer conexões significativas entre o conhecimento teórico e o conhecimento prático, habilitando-o a tomar decisões cada vez mais fundamentadas. Nessa mesma direção, Zabalza (1994) assinala que os registros feitos pelo professor sobre a sua prática e as reflexões que eles suscitam, tornam o professor investigador de si mesmo, primeiro como narrador e posteriormente como analista crítico dos registros que elabora.

Zeichner e Liston (1985), Anderson e Herr (1999), além de outros pesquisadores interessados em conhecer detalhes da prática do professor no interior das salas de aula, sugeriram modelos ou formatos tanto para a construção de formas de acompanhamento do trabalho docente (semelhante aos “diários”, por exemplo), quanto para a análise de conteúdo

referente aos registros efetuados.1 André (2001), ao referir-se à pesquisa como elemento da profissionalização do professor, assinala a importância de o professor ter disposição e formação para investigar, além da necessidade de existir um ambiente favorável para tal empreendimento (constituição de grupos de estudo, assessorias, materiais bibliográficos etc). Nessa mesma direção, Zeichner (1998) e Ponte (2005), entre outros, apontam para a necessidade de o pesquisador atuar em equipe, de trabalhar em colaboração (isto é, com base relacional simétrica, de ajuda mútua) com pessoas de diferentes experiências e estatutos profissionais. Para Ponte (2005), essa seria uma forma de enriquecer as reflexões sobre questões demasiado complexas para serem “percebidas pelo investigador sozinho” ou “pelo professor sozinho, mas que os dois, em colaboração, podem compreender e transformar” (p. 113).

Importa dizer que a formulação de critérios para elaboração de registros esbarra na diversidade das condições de pesquisa da prática docente (diferentes comunidades, objetivos, recursos etc). Ponte (2005) assinala que, ainda assim, a investigação se faz necessária e, para isso, o pesquisador deve buscar formas de definir estratégias próprias, levando-se em consideração o que é exeqüível dentro do contexto em que está inserida a sua prática.

Enquanto escrevia este texto, fui me apercebendo de que, no meu caso específico, a “reflexão na ação” esbarrou em dificuldades diversas. Não fiz “diários de aula”, sistematizados, conforme recomendam Porlán e Martin (1997), por exemplo. Tentei registrar tudo o que foi possível, do meu jeito, e dentro das limitações do contexto em que a prática se deu. Dentre essas limitações, destaco a carência de uma reflexão colaborativa rotineira e sistematizada, com a participação ativa, in situ, dos meus pares, dos alunos e também de outras pessoas de estatutos profissionais diferentes. Creio que essa falta se deveu, principalmente, ao fato de eu não tê-los requisitado para colaborar nessa tarefa. Assim, as reflexões que fiz durante a ação tiveram de se contentar com as conversas que tive comigo mesma, com as minhas intuições e meus interesses, com os teóricos que acompanharam a minha formação acadêmica e/ou aqueles que conheci ao longo do caminho, e com os pares

1 Ver categorias indicadoras de profissional reflexivo em: ZEICHNER, K.; LISTON, D. Varieties of discourse in supervisory conferences. Teaching and Teacher Education, Kidlington Oxford, UK v.1, n.2, 155-174, 1985. Ver textos relativos à qualidade das pesquisas na área da prática reflexiva e critérios de validade para este tipo de pesquisa: ANDERSON, G.L.; HERR, K. The new paradigm wars: is there room regorous practtitoner knowledge in schools and universities? Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 28, n. 5, p. 12-21, 1999, além de GERALDI, C. M. G.; MESSIAS, M. G. M.; GUERRA, M. D. S. Reflectindo com Zeichner: um encontro orientado por preocupações políticas, teóricas e epistemológicas. In: GERALDI, C. M. G.; FIORENTINI, D. ; PEREIRA, E. M. (Org.). Cartografias do trabalho docente. Campinas: Mercado das Letras, 1998, p. 237-274.

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que se dispuseram a me ouvir, quando solicitados, as minhas inquietudes durante e após a ação. Nessa circunstância, certamente me escaparam muitos detalhes do que fiz no Projeto.

Advertida das possíveis fragilidades dos meus registros resolvi, assim mesmo, correr o risco de olhar com olhos da pesquisa reflexiva a documentação que fiz sobre o meu trabalho no Projeto. De algum modo, eu estava convencida de que os meus registros se constituíram em uma forma de reflexão na ação e favoreceram novas reflexões e ações, sempre em busca de melhorar a minha prática. Por esse motivo, algo me dizia que deveria me interessar por pensar naquele imenso volume de anotações.

Persisti, então, nas minhas leituras e, inspirando-me em Donald Schön (resguardadas as contribuições dos demais pesquisadores desse movimento), comecei a rascunhar o desenho de um possível objeto de estudo. Pensei na possibilidade de realizar uma pesquisa que mostrasse o meu processo de reflexão, experimentado em dois tempos, antes e agora, isto é, estando lá - no Projeto - e estando aqui - no momento da construção deste trabalho (Tomei emprestadas as expressões aqui e lá de Clifford Geertz (1989), da obra “A interpretação das Culturas”). Tomaria como ponto de partida os registros que havia feito enquanto estive lá. Guardava a convicção de que ao retomá-los e re-interpretá-los com os olhos de aqui, poderia encontrar indicadores de que a reflexão foi um componente importante do meu processo de formação como professora de ciências naturais que queria/quer aprender a construir relações entre sujeitos de culturas diferentes.

Foi ganhando força a idéia de narrar a minha experiência. Estava curiosa para compreender os meus percursos reflexivos, isto é, como elaborei reflexões “na ação”, “sobre a ação” e/ou “sobre a reflexão na ação” enquanto tentava aprender a ensinar ciências com alunos kaiowá/guarani. Comecei, então, a passar a limpo algumas idéias. Fiz várias tentativas de reorganizar os meus registros, mas tive mais dificuldades do que esperava, a princípio. O material era volumoso e, ao perscrutá-lo agora com o olhar da pesquisa, todo ele me parecia potencialmente aproveitável. Mas não conseguia colocar ordem em tantas anotações, fragmentadas e distribuídas em papéis avulsos, agendas, cadernos, capas e contracapas, sobre envelopes, guardanapos, enfim, no que tinha em mãos no momento em que os fatos se deram (Figura 14). Tudo produzido intuitivamente, sem nenhum plano, método ou técnica... Que lástima!

Para que a pena me fosse leve, confortei-me com o que assinalou Ponte (2005): a pesquisa, no âmbito da escola, se debate com a dificuldade de ser realizada por profissionais em situações reais e nem sempre ideais. Assim, se quisesse insistir nesse caminho, eu deveria estar disposta a lidar com as minhas des-organizações, apostando que encontraria nelas algo de valor. Com esse alento, aceitei-me como professora que se quer pesquisadora e está mergulhada nos limites da concretude da sua prática. Comecei a acreditar que os limites e limitações, próprios das situações reais, poderiam ser, justamente, o diferencial e o valor do meu trabalho de Tese. Encorajei-me, então, a iniciar o trabalho de decifração das linhas e entrelinhas, tentando extrair delas o caldo necessário à continuidade da pesquisa.

E assim pensando, não foi difícil perceber registrei, dentre outras coisas, inquietudes, conflitos e angústia diante das minhas limitações. Era isso o que me diziam anotações do tipo “o que eles [os alunos] querem dizer com isso?”, “por que não fizeram o Figura 14: Amostras de registros feitos por mim durante uma aula de ciências naturais no Projeto Ara Verá. Fonte: Acervo pessoal

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trabalho como foi proposto?”, “ver como fazer para entusiasmá-los com a brincadeira...”, “o que deu errado com o tempo das atividades hoje?”, “por que só os meninos [os homens] se posicionaram?”, “ver como e o que posso mostrar pra eles... se eles podem ver as peças do laboratório de anatomia... como é isso na sua cultura?”

Essas expressões são uma pequena mostra do ‘campo de provas’ por que passou o modelo da racionalidade técnica que estava na base da minha formação profissional quando me vi diante da necessidade de falar sobre ciências naturais com alunos kaiowá/guarani. Em diversas outras ocasiões mencionei o planejado, o pensado, o preparado que saiu diferente do esperado: “não houve tempo de finalizar o conteúdo previsto”, “a aula tomou outro rumo diante das perguntas dos alunos”, “tive de introduzir esse assunto por insistência dos alunos e dos professores-assistentes”. Anotações cujas entrelinhas pareciam me dizer: a razão instrumental, focada na previsibilidade e na técnica, não foi capaz de lhe dar as respostas teóricas e metodológicas necessárias para lidar com a realidade da sala de aula. Uma realidade que não é universal, passível de generalização; ao contrário, é sempre complexa, singular, incerta, inusitada e não se encaixa em modelos pré-estabelecidos.

É fato que a imprevisibilidade e a intuição se constituíram componentes importantes do fazer-me professora com os Kaiowá e Guarani no Projeto Ara Verá. Não quero dizer, com isso, que atuei de modo espontaneísta e descompromissada com os objetivos do Projeto. Ao contrário. Quero ressaltar que a turbulência foi a marca desse meu processo de formação. Jamais consegui viver com os alunos indígenas a tranqüilidade e a comodidade de ter sob total controle - regulados e reguláveis - os conteúdos e os métodos de ensinar ciências naturais. Sem ter como circunscrevê-los no âmbito do previsível, fui desafiada a desenvolver capacidades de caminhar em terreno movediço e na ausência de linhas de ação delimitadas a

priori. Devagarzinho, e não sem esforço, fui aprendendo a lidar com a dúvida, o conflito e até mesmo (quem diria!) a me sentir confortável dentro dessas condições.