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Notas introdutórias: questões semânticas, cuidados, riscos e possibilidades de

2 RE-CONHECENDO-ME NO ENCONTRO COM AS MINHAS MEMÓRIAS

2.1 Notas introdutórias: questões semânticas, cuidados, riscos e possibilidades de

Antes de contar minhas histórias, convém reservar um espaço para minimizar um dos problemas em que freqüentemente esbarra a pesquisa no campo das ciências não-exatas: a polissemia dos termos com os quais elas operam. No caso específico deste texto, importa que eu faça algumas elucidações sobre os termos “memória”, “autobiografia”, “biografia”, “histórias de vida” e “narrativas” a fim de que possa situar cada um deles dentro das perspectivas teóricas com as quais me orientarei na tarefa de escrever sobre os lugares onde construí parte da minha história. Apresento, a seguir, uma síntese do que apreendi a respeito de cada uma dessas expressões.

O termo “memória” adquire diferentes significados de acordo com o campo de referência de onde é pensado (biologia, psicologia, sociologia, educação, história, antropologia, informática etc). As definições de “memória” encontradas nos dicionários remetem à idéia de passado, de lembranças acumuladas. O “Mini Dicionário” de Aurélio Buarque de Holanda, por exemplo, apresenta, dentre outras, a definição de “memórias” como “escritos em que alguém conta sua vida ou narra fatos a que assistiu ou de que participou”.5

Considerando essa definição, pode-se dizer que o conteúdo de tais escritos comporta lembranças de pessoas, lugares, fatos ou acontecimentos ligados à biografia de alguém. Quando esse alguém é o próprio escritor, o termo “memórias” poderia ser entendido como “autobiografia”. Aproxima-se dessa concepção Daniel Bertaux (1981), para quem “autobiografias” seriam escritos sobre a vida de alguém cujo escritor é o próprio narrador.6

Assim como “biografias” e “memórias”, o termo “narrativas” - hoje bastante presente nas pesquisas em ciências humanas - tem sido empregado de diferentes modos para identificar textos memorialísticos, biográficos ou autobiográficos. No campo da educação, esse conceito assume variações conforme a dimensão que lhe é atribuída. Galvão (2005), em

5 Miniaurélio Século XXI Escolar, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Editora Nova Fronteira, 2000. 6 Um refinamento conceitual sobre diversos termos e expressões referentes às modalidades de estudo com histórias de vida pode ser visto em Daniel Bertaux (1981, p. 7-9), na introdução de Biography and society: the

life history approach in the social sciences. Para o autor, há distinções entre estórias de vida (relatos sobre a vida de alguém narrados oralmente pela própria pessoa), autobiografias (escritos sobre a vida de alguém cujo escritor é o narrador), histórias de vida (trabalho com diversos tipos de documentos com vistas a estudar a vida de uma pessoa, ou grupo, e que, portanto, inclui as outras abordagens). Em qualquer um dos casos não é necessário que se aborde o percurso inteiro de vida e nem todos os seus aspectos. Uma outra distinção feita pelo autor é a de que as autobiografias escritas têm um único autor, enquanto que as estórias de vida gravadas têm, de fato, dois autores, pois, quando publicadas, são o resultado de uma interação social. Mais adiante voltarei a falar sobre as “memórias”, desta vez colocando-as no quadro das discussões a respeito do seu papel na formação docente.

um estudo sobre as abordagens da narrativa nos estudos em educação, destaca as seguintes dimensões: (a) método de investigação, com pressupostos metodológicos firmados na interação entre o investigador e participantes, tanto na coleta de dados como na sua interpretação; (b) método de análise que pressupõe o domínio de técnicas lingüísticas de interpretação de textos, baseada na análise dos discursos dos narradores; (c) potencial como processo de investigação (que permite eleger temáticas específicas de investigação sobre as experiências do professor), de formação (que evidencia os fatos investigados em confronto com o desenvolvimento profissional do professor) e de reflexão pedagógica (que permite ao próprio professor, autor da narrativa, compreender as razões e conseqüências de sua atuação, além de criar novas estratégias em processo de reflexão, investigação e nova reflexão).

Baseando-me na classificação de Galvão (2005), escolhi, para a produção deste texto, enfocar a “narrativa” como uma forma de expressão, de intenção comunicativa, como parte de um processo de autoformação. Sei que essa demarcação é por demais porosa para que sejam excluídas as outras dimensões (de investigação e análise). A narrativa que compõe este texto é, ela própria, carregada de crenças e de valores, ambos localizados no tempo e no contexto em que foi produzida. Creio que essa escolha quer expressar, apenas, o desejo de estar mais próxima da idéia de “experiência” (trans)formadora, de Larrosa, conforme abordada no primeiro capítulo deste trabalho.

Feitas essas considerações, os recortes selecionados para compor o relato da minha história serão denominados, de ora em diante, indistintamente, de “memórias”, “memórias autobiográficas” ou “autobiografia” (porque dizem respeito aos escritos que eu mesma fiz sobre as minhas lembranças), ou ainda “narrativas autobiográficas” (por se tratarem de uma forma de comunicar intencionalmente algo sobre mim, tendo como filtro, o objetivo de ser um instrumento reflexivo e, fundamentalmente, aquilo que penso ser as expectativas do leitor acerca das minhas reflexões).

Quais seriam os riscos de tomar a sério as narrativas autobiográficas como fontes informativas e de reflexão? Para responder a essa questão, recorro a Bourdieu (1996) apoiando-me num texto de sua autoria, bastante provocativo, denominado “A ilusão biográfica”.7 Ao analisar certos aspectos que envolvem a escrita autobiográfica, o autor reflete sobre algumas implicações relativas (1) a tomar as recordações ou aos relatos orais sob a

7 BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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óptica de uma sucessão cronológica isenta do contexto social que as engendrou, (2) à sua reconstrução textual e (3) ao endereçamento desses relatos.

Em “A ilusão biográfica”, Bourdieu (1996) faz, logo de entrada, uma crítica à

“história de vida” como “uma dessas noções do senso comum que entraram como contrabando no universo científico; inicialmente, sem muito alarde, entre os etnólogos, depois, mais recentemente, com estardalhaço, entre os sociólogos” (p. 184). Para o autor, os relatos autobiográficos aparecem com a preocupação de dar sentido, tornar razoável, “extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância [...]”, propondo “acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão cronológica [...], tendem ou pretendem organizar-se em seqüências ordenadas segundo relações inteligíveis” (p. 185).

Bourdieu (1996) chama a atenção para o fato de que, ao produzir uma história de vida como um relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, estar-se-ia, talvez, conformando-se com uma ilusão retórica da existência, isto é, desconhecendo-se o real como descontínuo, formado de elementos que surgem incessantemente, de forma imprevista, aleatória e, por isso mesmo, muito difíceis de serem apreendidos. Nas palavras do autor,

tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um "sujeito" cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado. (BOURDIEU, 1996, p. 189, grifos do autor).

Para Bourdieu (1996), os relatos autobiográficos mostram uma certa propensão do narrador em tornar-se um “ideólogo da própria vida, selecionando, em função de uma intenção global, certos acontecimentos significativos e estabelecendo entre eles conexões para lhes dar coerência [...]” (p. 185, grifos do autor). Além disso, por detrás da construção “[...] dessa espécie de artefato socialmente irrepreensível que é a história de vida” encontram-se, na verdade, “relatos de vida [que] variam tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, segundo a qualidade social do mercado no qual é oferecida [...]” (p. 189). Em outras palavras, a esses relatos se aplicam as mesmas leis que “regem a produção dos discursos na relação entre um

de acordo com os “diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado.” (BOURDIEU, 1996, p. 189).

Sendo assim, não se pode “compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento

social, que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimento biológico)” sem conhecer os “estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente [...] ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis [acontecimentos].” (BOURDIEU, 1996, p. 189). E ao investigar sobre a biografia de alguém, tanto o investigador quanto o investigado (o sujeito e o objeto da biografia) devem despir-se da ilusão do “postulado do sentido da existência narrada (e, implicitamente, de qualquer existência).” (BOURDIEU, 1996, p.185, grifos do autor).

Diante das necessárias descontextualizações, deslocamentos, descontinuidades, interesses e ideologias inerentes às narrativas autobiográficas, não seria ilusório pensar que esses escritos tenham algum valor? Não seria essa produção apenas um artefato sem vigor informativo e sem potencial reflexivo? Se as narrativas não representam uma realidade objetiva, se são repletas de censuras, falhas, contradições, como garantir o rigor de uma pesquisa/reflexão sobre dados autobiográficos? Em meio a tantas objeções, por que motivos os estudos das narrativas autobiográficas têm sido vistos com bons olhos nas pesquisas em educação?

Segundo Bueno (1998; 2002), o interesse por esse tipo de pesquisa situa-se nas primeiras décadas do século passado, em meio às rupturas que foram surgindo no campo das ciências humanas quando começam a questionar a crença na racionalidade e objetividade importadas das ciências experimentais e que inspiraram a construção dos métodos de investigação em educação. Esses questionamentos estão incluídos num movimento mais geral que se situa na perspectiva das mudanças no modo de conceber a própria ciência8, isto é, quando esta passa a ter como alvo não mais as regularidades, mas as instabilidades e as crises. Nesse entendimento, a objetividade científica e os métodos para produzi-la são postos em causa, abrindo flanco para uma virada que tira de foco a objetividade e enfatiza a subjetividade.

8 Bueno se refere às discussões de Ilya Prigogine e Isabelle Stengers em A nova aliança: metamorfose da ciência (op. cit.). Na obra citada, Prigogine e Stengers fazem instigantes reflexões sobre as novas relações entre o homem e a natureza e a mudança de alvo das investigações científicas. Destacam que o interesse da ciência não deve estar mais nas regularidades do universo fragmentado, mas nas instabilidades, evoluções, crises, gênese e mutações das normas que interferem nos comportamentos sociais.

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Com essa nova visão, a subjetividade não só deixa de ser um empecilho à pesquisa, como também passa a ser pensada como um objeto de investigação. Dentro dessa perspectiva, pode-se dizer que as narrativas memorialísticas e autobiográficas, de um lado, carregam as marcas da censura social (e isto quer dizer que não se pode descartar nenhum dos perigos que isso acarreta), de outro, têm exatamente neste aspecto o que se pode reivindicar como legítimo enquanto potencial de pesquisa.

O valor heurístico do método biográfico e a sua legitimidade decorreriam, portanto, do caráter específico da narrativa (de tudo o que ela pode informar como tal) e também do fato de que a biografia exprime o que há de intencional na comunicação entre o escritor e o leitor e as relações de poder que envolve a ambos. Há, então, um potencial a ser explorado nesses relatos, se percebidos na “micro-relação social” (conforme Bueno, 2002) estabelecida entre o narrador e a quem se destina o relato, e na condição de impossibilidade de narrar acontecimentos sem levar em conta as relações de poder envolvidas na intenção comunicativa.9

Para a realização deste trabalho, propus-me a acreditar no potencial heurístico das narrativas autobiográficas, mas, ao mesmo tempo, quis ter em mente as considerações feitas por Bourdieu (1996). Assim, creio que terei de estar alerta para a compreensão de que esta narrativa se impõe como um artefato que tem uma ordem artificial, dessincretizada, deslocalizada e descontextualizada, filtrada pela necessidade de comunicação com o leitor e censurada pela minha posição como sujeito no jogo do Campo do Poder. Assumindo o perigo de deslocá-la da trama social em que foi produzida, farei um esforço de narrar experiências que mais me passaram, no âmbito pessoal e profissional, num tempo e num lugar onde foram

9 Possibilidades e limites da utilização de narrativas pessoais dos professores na pesquisa são temas bastante discutidos. Ver CATANI, D. B. A memória como questão no campo da produção educacional: uma reflexão.

História da Educação, ASPHE, n. 4, set. 1998; CATANI, D. B. Lembrar, narrar, escrever: memória e

autobiografia em história da educação e em processos de formação. In: BARBOSA, R. L. L. (Org.). Formação

de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: UNESP, 2003; CATANI, D. B. Ensaios sobre a produção e

circulação dos saberes pedagógicos. 1994. Tese (Livre-docência) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 1994, p. 28-57. Ver revisão sobre o estatuto epistemológico e metodológico dos estudos com histórias de vida em: BUENO, B. O. O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de professores: a questão da subjetividade. Educação e pesquisa, São Paulo, v. 28, n.1, p. 11-30, 2002. A perspectiva autoformadora das biografias é tratada por diferentes autores na coletânea organizada por NÓVOA, A.; FINGER, M. (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde, Departamento de Recursos Humanos da Saúde/Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional, 1988. Nessa coletânea estão, dentre outros, dois artigos de DOMINICÉ, P. “O que a vida lhes ensinou” (p. 131-153) e “O processo de formação e alguns dos seus componentes relacionais” (p. 51-61) e um artigo de JOSSO, M-C. “Da formação do sujeito... ao sujeito da formação” (p. 35-50). Esse tema também é abordado em DOMINICÉ, P. L’histoire de vie

comme processus de formation. Paris: Edition L’Harmattan, 1990, além de JOSSO, M-C. História de vida e projeto: a história de vida como projeto e as “histórias de vida” a serviço de projetos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 25, n. 2, p.11-23, 1999.

construídos os caminhos que me levaram ao encontro dos Kaiowá e Guarani. Tentarei pensá- las criticamente, buscando refletir, com os olhos do presente, sobre as condições de sua produção e sobre como se tornaram elementos importantes da processualidade da minha formação como professora. Estou ciente de que a minha escrita carrega as marcas do destinatário. E ainda que me incomode saber que o destinatário possa cercear, censurar e filtrar as formas e os conteúdos daquilo que poderia ou não ser dito, quero crer no potencial formativo dessa produção. Tenho a expectativa de que ao narrar ao meu percurso darei uma chance a mim mesma de tornar-me sujeito de reflexão.

2.2 O trabalho de organizar e narrar memórias: tempo de encontro com lugares de