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Algumas trajetórias dos migrantes e as representações sobre o trabalho escravo

Capítulo 2: O trabalho escravo na indústria de confecções

2.3 A discussão conceitual sobre trabalho escravo contemporâneo: legislações e tratados,

2.3.2 Algumas trajetórias dos migrantes e as representações sobre o trabalho escravo

Neste tópico, buscaremos evidenciar as palavras dos migrantes da costura. Em nosso trabalho de campo com os costureiros migrantes, muito frequentemente eles se posicionaram contrários à ideia de que houvesse trabalho escravo na cadeia em que se inseriam. A maior parte dos relatos colhidos vem no sentido de afirmar que o que existiria seriam pessoas esforçadas que trabalhavam intensamente e extensivamente como estratégia de acumulação e de ascensão social. No entanto, outros afirmavam terem sido eles mesmos escravizados, tendo uma experiência de privações, enredados em dívidas das quais não conseguiam se desfazer.

O relato abaixo é o de Alcina, uma boliviana dona de oficina. Sua fala foi transcrita anteriormente quando falávamos da lógica da produção nas oficinas subcontratadas. Alcina, como todos os donos de oficinas, negocia prazos e condições para a entrega do serviço. Ela frisa que é a dinâmica do setor que faz com que os migrantes desempenhem longas e extensas jornadas. Relata que os migrantes se adaptaram ao modo pelo qual é ativada a produção nas oficinas, de forma exacerbadamente sazonal, em que há período do ano em que o trabalho é intensíssimo e outros de ociosidade. Alcina relatou uma negociação com a coreana demandante de serviço. Além dos valores e do tempo para a entrega, ela negociava um churrasco que deveria ser oferecido pela coreana, quando o prazo era muito curto e necessitava de jornadas no final de semana. Alcina relata que o ritmo de trabalho é ditado pelas encomendas e que quem se dedica à costura deve

aproveitar o período das demandas.

É por isso [sazonalidade] que tem que trabalhar sábado e domingo, não

porque a gente é escravo, é porque compensa. Você ganha um pouquinho mais, em compensação se alimenta melhor no domingo. Agora, isso compensa

porque janeiro e fevereiro você pode ficar sem trabalhar uma semana, porque você já trabalhou sábado e domingo nos outros meses que tem pedido, então fica descansando como se fossem férias. Então um trabalho compensa pelo out o.àÉàassi àoà ossoàt a alho.àágo aàte àpessoaà ueàfalaà est àt a alha doà

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sábado e domingo, coitado, nãoàsai,à àes a o .àN oà à ueàaàge teà oàsaia,à à

que é esse o tipo de serviço que a gente faz. (...) Para decidir quem ia trabalhar oàfi alàdeàse a a,àeuà ha a aàosà ostu ei os.à Te àesseàse içoàa uiàpa aà entregar segunda-feira. Quem quiser trabalhar vai para cá, quem não quiser t a alha à passaà pa aà l .à Po ueà osà p eçosà eà asà a tage sà po à t a alha à oà domingo são essas: o preço é um pouquinho mais, vai ter churrasco, quem oàt a alha à oà aiàte àdi eitoàaàisso.àN oà àjusto?àáà aio iaàfala aà euà ou ,à

s à fi a aà u à ouà dois,à asà pessoasà ueà a o a a à aà po aà ah...à oà euà

p e isoàsai .àásàpessoasàsaia ,à hega a às à oàdo i goàdeà oiteàeàoà estoà trabalhava. Então trabalha, porque só dá para aproveitar quando tem [encomenda]. Quando não tem, a gente descansa sossegado sabendo que aproveitou, agora como é que eu vou descansar tranquila sabendo que eu não aproveitei? Então é assim que funciona.

O relato de Alcina expressa que não se deveria definir o trabalho escravo em função do tamanho e intensidade da jornada. Ela conclui que se os costureiros trabalham sem folga, é porque compensa. Para Alcina, o compensar da jornada extensa nesse período refere-se justamente ao modo como o setor se estrutura. O migrante da costura precisa necessariamente se dispor ao trabalho intenso no período em que há demanda, pois no restante do ano as encomendas são intermitentes. É a entrada no circuito das encomendas que define as jornadas, o ritmo e a intensidade de trabalho. A principal causa do crescimento da presença de migrantes no setor é devido ao fato de eles se disporem a trabalhar intensamente em alguns períodos do ano, quando a demanda é alta e se virarem

nos períodos de baixa – momento em que frequentemente costumam retornar aos locais

de origem.

Em outro momento da entrevista, Alcina diz que havia trabalho escravo nas oficinas quando os empregadores eram coreanos. Mas, no momento atual, em que praticamente não há mais coreanos donos de oficinas e que os migrantes da costura são, eles mesmos, os donos das pequenas fábricas, não se poderia falar em trabalho escravo, mas em muito trabalho, uma vez que não existiria mais a restrição de liberdade.

Quando eu trabalhava na oficina de coreano, às vezes a gente virava a noite, era sábado e daí no domingo a gente descansava o dia inteiro, mas sempre de porta trancada. Eu me lembro que a coreana abria a porta, uma portinha assim, a porta tinha uma janelinha que abre. Ela batia, a gente abria e ela passava leite e pão por aí. Ela sempre deixava a porta trancada com chave, porque ela morava em outra casa por aí perto. Então, eu acho que na época poderia ser chamado de trabalho escravo, agora do jeito que a gente trabalha aqui, pelo menos do meu jeito, não é trabalho escravo. Tanto é que aqui eles trabalham, entram às oito horas da manhã, eles têm hora de almoço, de

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manhã já tem hora do café, às vezes faz meia-hora, ninguém põe horário para isso. Só põe horário para a hora do almoço. A noite eles jantam, às oito horas, e quando tem bastante serviço eles trabalham até dez horas. Que nem agora, eles não estão trabalhando, tem gente que está dormindo, por quê? Porque não tem serviço, esse ano está um pouco fraco. (...) O que acontece é que há discriminação com as oficinas bolivianas. A notícia que sempre rola diz que ah...à oli ia oàdeàtalàesta aàt a alha doàdeàes a o ,à asàeàa uelaà asilei aà que eu conheço que tem aquela oficina de costura e trabalha até tarde... Eu sei que trabalha também até às dez horas da noite? Agora e aquelas brasileiras que eu conheço também e que são bordadoras e que trabalham até de madrugada? Elas não são escravas?

O relato de Alcina evidencia a oscilação do mercado ao longo do ano e o fato de o tempo estipulado para a confecção das roupas ditar a intensidade do trabalho nas oficinas. Para ela, praticamente não há trabalho no período de baixa, no primeiro trimestre do ano e em junho/julho, após os dias das mães. O setor volta a ficar aquecido nos meses que antecedem o final do ano: de agosto até meados de dezembro. É justamente nesse período que os migrantes da costura desempenham as maiores jornadas de trabalho, muitas vezes chegando a 16 ou até mesmo 18 horas diárias, de domingo a domingo, sem folga aos finais de semana. Os migrantes entrevistados informam que são nesses períodos que, trabalhando por produção, eles conseguem juntar o dinheiro que lhes vai garantir o ano. Ainda, seguindo as palavras da entrevistada, percebe-se como a gestão do tempo de trabalho e o da vida do trabalhador acabam por se confundir no ambiente da oficina. A oficinista apresenta o cronograma e a definição dos horários de trabalho dos costureiros. A vida particular dos trabalhadores e a dinâmica do trabalho na oficina se confundem, os donos das oficinas apresentam bastante poder para ditar esses ritmos.

Chegando ao final da conversa, Alcina diz conhecer alguns patrícios seus que traziam trabalhadores da Bolívia, eles vinham pelo Paraguai, onde a fiscalização é menor e há a possibilidade de trazer adolescentes. Os donos das oficinas que traziam os trabalhadores firmavam um contrato informal, no qual deveria ser garantida a fidelidade de, em média, um ano de serviço. Alcina diz que o serviço era remunerado pelo período do

contrato, no entanto o patrão retinha o pagamento e só o efetivava após o término da

combinação. Ao se estabelecer esse tipo de relação, em que a forma de trabalho se torna imobilizada, o dono da oficina estaria em condições privilegiadas para definir os valores, as condições e os ritmos de trabalho. Neste momento, Alcina cintraia o que tinha dito anteriormente, quando afirmara que não havia escravidão entre os bolivianos.

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Lá na Bolívia mesmo tem muita gente que sai no jornal também, os bolivianos mesmos escravizam os bolivianos, mas não são todos. Eu ouvi falar de bolivianos que pegam da Bolívia 20 ou 30 pessoas e faz contrato lá na Bolívia, com garantia de uma casa, dos que estão vindo para cá, daí eles tem que continuar trabalhando com eles, trabalham dois ou três anos assim na mesma casa, no mínimo um ano. Eles recebem, é claro, mas eles só recebem quando vão embora. Quando termina o contrato. Eu já conheci pessoas que trabalharam desse jeito.

Mas e se quiserem sair mais cedo? Mudar de oficina?

Não podem. Aí perdem tudo. Isso está errado. Isso está muito errado. Conheci uma pessoa que trabalhou. (...) Uma mocinha que eu conheci que trabalhou numa oficina lá na Casa Verde. Só que ela saiu antes, ela apanhou da mulher porque decidiu sair. Apanhou, tiraram as roupas dela e os documentos, mas ela saiu fugida só com a roupa do corpo.

Virna, outra boliviana também dona de oficina, produzia para a confecção intermediária que repassava para a Zara e foi fiscalizada pelo MTE (os auditores lavraram

autos de infração apontando que os trabalhadores – tanto os costureiros como a dona da

oficina – estavam reduzidos a condições análogas à de escravo). Ela comenta a ação dos

auditores fiscais e sua compreensão sobre trabalho escravo. Como se observa, para Virna, a definição do que é trabalho escravo, conforme lhe explicou o auditor fiscal, é resumida à ideia das longas jornadas de trabalho.

(...) Eu já entendi o que eles chamam aqui de trabalho escravo. Todos nós nos submetemos a isso porque nós recebemos muito pouco das empresas. Assim, com esse valor que a gente recebe não dá para trabalhar só oito horas e produzir o suficiente. Como vou sobreviver? Nós mesmos somos obrigados a trabalhar mais para ganhar mais.

O auditor fiscal do trabalho nos disse que tinha explicado toda a situação do que é trabalho escravo, conforme a lei, e que você concordava com a lei brasileira que define o trabalho escravo.

Eu entendo, mas porque é chamado trabalho escravo? Eu não sou escravo. Eu me submeto a ser escravo por causa das horas que eu trabalho, porque eu preciso, porque pagam pouco por peça. O Cami foi lá e disse que nós somos escravos. Não somos escravos, nós somos gente que quer trabalhar. Nós somos gente que trabalha!

Nos dois casos, percebem-se como os migrantes frisam o fato de serem trabalhadores muito esforçados, isto vem no sentido de se contrapor à ideia de uma total

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objetivação e assujeitamento no processo de trabalho. No caso de Virna, de forma ainda mais forte, ela expressa que os trabalhadores são gente, esta ideia se contrapõe exatamente à ideia de que seriam animais ou objetos, seres ou coisas sem subjetividade alguma.

Freire, em sua pesquisa de campo com migrantes bolivianos, colheu um relato bastante claro de como seu interlocutor negava a discussão que relacionava os bolivianos à ideia de trabalho escravo. Não se tratava de negar a exploração, mas enfatizar que a presença desses migrantes em São Paulo vai muito além da definição redutora de suas experiências em São Paulo. A noção de trabalho escravo para este migrante se relaciona à definição antiga de escravidão. Em oposição a um discurso assujeitador, que cria e marca

estigmas – com uma série de consequências deletérias –, que olha o migrante apenas

como vítima e não como protagonista de sua história, ele afirma.

(...) você quer fazer um trabalho sobre a Bolívia, sobre a cultura boliviana, sobre a nossa comunidade? Se você quer falar sobre escravidão não tenho nada a dizer. Nós não temos bolas amarradas em nossos pés.

Gabriel, outro costureiro entrevistado121, relata a situação a que foi submetido.

Gabriel tinha 28 anos e estava no Brasil há sete. Ele veio ao país após ouvir o anúncio na Rádio Esplendor, em La Paz, que ofertava trabalho em diversos países, como no Brasil, Argentina, Espanha, dentre outros. Prometia-se 200 dólares por mês para o costureiro recém-chegado em São Paulo e que, em pouco tempo, poderia receber 500 dólares mensais (esses valores se referem a quando Gabriel veio ao Brasil, em 2001). Gabriel resolveu, então, vir com sua esposa para São Paulo, onde se vislumbrava a possibilidade de acumular algumas reservas. A viagem para o Brasil foi toda organizada pelos donos das oficinas responsáveis pela excursão de migrantes para a RMSP; eles iriam dividir os custos do transporte e a alocação dos costureiros em suas oficinas assim que chegassem à cidade. No ônibus vieram 30 bolivianos: 27 costureiros e três donos das oficinas. Em La Paz, o dono da oficina e o costureiro firmaram um acordo oral no qual havia duas

cláusulas: 1 – o costureiro deve pagar a dívida do transporte, que seria descontado pelo

trabalho; 2 – o costureiro deveria dar fidelidade de um ano para o empregador, após

cumprido esse prazo, ele estaria livre para buscar outros postos de trabalho. Como garantia do acordo, o dono da oficina retinha os documentos do costureiro.

121àEstaàe t e istaào o euàe à a çoàdeà ,àfoià ealizadaàpo à i àeà“io h àM G ath,à à po aàelaàfaziaàoàt a alhoàdeà a poàdeà

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Eu fui trazido por uma pessoa que eu não conhecia, um boliviano. Como, aliás, a maioria das pessoas que chega aqui faz. (...) Eu fui superexplorado por um tempo mais ou menos de quatro meses. Não tinha liberdade para sair à rua, a porta ficava sempre fechada. Eu devia um montante de 120 a 150 dólares pela passagem, daí eu tinha que pagar essa dívida e depois podia sair. (...) A gente [o grupo de migrantes que veio com ele, em torno de 12] trabalhava de seis da manhã até umas quatro da manhã, duas da manhã, de segunda a segunda. Era uma coisa triste mesmo. Mas, na época, eu não sabia que aquilo não podia. (...). Eles ficavam com os documentos porque eu estava devendo muito. E aí não dava para escapar sem documentos, se saíssemos a Polícia e os delegados poderiam nos expulsar da fronteira. Na verdade, não sabíamos, podia ser que sim ou que não. Mas pensávamos sempre pelo pior. Antes de vir nos disseram, na Bolívia, que um boliviano sem documentos havia sido morto pelo polícia.

Você disse que tinha um contrato firmado na Bolívia, o contrato era trabalhar um ano para quitar a dívida?

Não. Para quitar só o contrato mesmo, não para pagar a dívida. Como foi ele que trouxe, antes de eu poder mudar, eu tinha que trabalhar nessa casa por um ano, mesmo que pagasse a dívida. Esse era o contrato, mas no papel não existia, existia só na conversa. Documentos também, depois de pagar tudo, eles davam de volta. Eu tinha dois documentos, um era o RG e o outro o do serviço militar. Um documento eles devolveriam quando terminasse o contrato e o outro quando eu quitasse toda a dívida. Primeiro mês eles não pagaram nada, diziam que estávamos aprendendo, eu não sabia costurar, eu realmente estava aprendendo, eu não sabia o que era a máquina, mas eu dizia que sabia costurar. Pois sabia manejar a máquina doméstica. Logo aprendi a mexer com a máquina industrial. No primeiro mês foi teste, não ganhávamos nada. Depois ganhávamos mais ou menos 80 reais. Pouco a pouco foi subindo. Nessa oficina, o máximo que cheguei a receber foi mais ou menos 220 reais, trabalhando de segunda a segunda [em 2001].

E você ficou quanto tempo lá até pagar a dívida?

Quatro meses. Mas eu não paguei a dívida, eu fugi. Deixei tudo. Saí com minha jaqueta, vesti umas duas roupas, duas camisetas e saí. Normal. Eu tinha um radinho que tinha comprado por uns 300 bolivianos, levei ele e só isso. Deixei tênis e outras coisas. (...) Depois de oito ou doze meses eu voltei na casa e recuperei meus documentos. Eu fui na casa e falei que eles tinham que dar os meus documentos, se não eu iria denunciar, eu já sabia que a Polícia não

poderia me prender. E ela falouàpa aà i à o,à o àte à ueà e o he e àoà

ueà euà fizà po à o ,à o à te à ueà eà ag ade e .à Euà disseà o,à o à eà

e plo ou .à Hou eà u aà dis uss oà eà elaà ho ou.à E aà u aà ulhe à eà oà u à homem, ela morava com um outro rapaz que não era marido dela, tinha uns cinco filhos, tinha irmãos, mãe... estava cheia de problemas. Daí eu fiquei um pouco triste também, porque ela chorou, por causa da necessidade dela. Ela mostrou tristeza. Foi graças a ela que eu estou aqui, então eu dei entre 100 e 150 reais para que me devolvesse os documentos, assim ficava tudo certo.

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Gabriel relata como foi difícil a sua chegada e inserção no mercado de trabalho em São Paulo. Num primeiro momento, teve seus documentos confiscados e trabalhava longuíssimas jornadas sem descanso. Este caso configura todos os aspectos necessários para a caracterização de redução do trabalhador à condição análoga à de escravo, conforme constam nos documentos do MTE. Tem-se a servidão por dívida, retenção de documentos, jornadas exaustivas e ameaça psicológica. Por mais que Gabriel tivesse sido superexplorado, como ele mesmo diz, o costureiro concluiu que deveria arcar com as dívidas supostamente contraídas, uma vez que os donos das oficinas foram quem pagaram a passagem da Bolívia para São Paulo. Além disso, ele tinha rompido o contrato de fidelidade, pois não ficou no trabalho pelo período de um ano, como havia sido combinado. Em tom de indignação e quase escárnio em relação à própria trajetória, Gabriel relata o périplo traçado em diferentes locais de trabalho nos três primeiros anos em São Paulo. Trabalhando intensamente em diversas oficinas, ele acumulou apenas 400

dólares em três anos de trabalho. No grupo focal realizado122 com diversos migrantes,

dentre os quais Gabriel, todos os donos de oficina frisavam que os trabalhadores não podem ser ingratos e que as dívidas devem ser cumpridas. Afirmava-se que os oficinistas ajudam os migrantes ao trazerem os compatriotas para o Brasil. Assim, deve haver fidelidade. A informação se aproxima do que o Pe. Sidney Silva (1997) identificou em seu trabalho de campo nos anos 1990.

Os gastos da viagem geralmente são pagos pelo empregador, uma vez que a maioria deles não tem a quantia de US$ 150 dólares necessários para a viagem. Assim sendo, inicia-se na Bolívia um processo de endividamento e dependência em que o empregador cobre as despesas da viagem e documentação, cujos gastos adquirem o caráter de favor e ao mesmo tempo permanecem como um débito que fica pendente, que são descontados pouco a pouco, ou quando o empregado decide mudar de emprego. (...) Dessa forma, cria-se uma relação de dependência entre o empregador e o empregado, do qual se exige fidelidade, pelo menos por um ano, posto que este lhe deve um favor por tê-lo trazido ao Brasil e lhe dado emprego. (SILVA, 1997, p. 121)

Em outro momento, Gabriel analisa a especificidade do chamado trabalho escravo dos migrantes. É impossível ao migrante admitir uma dominação total, um processo de subjetivação que o torne coisa, tal como a ideia de trabalho escravo alude. A subordinação nunca é total e, por conta disso, sempre haverá receio em se admitir enquanto escravo, justamente porque essa noção remete ao passado escravista, no qual as pessoas eram

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tidas como mercadorias negociáveis. De todo modo, isso tampouco quer dizer que no passado houvesse uma subordinação total, ainda assim havia negociação e margens para disputa dos escravos.

Eu creio que na verdade nós não fomos escravos, escravos de outros, mas escravo do trabalho. É diferente. É diferente ser escravo do patrão e ser escravo do trabalho. Hoje em dia somos escravos do trabalho, por que é assim? Porque os coreanos pagam pouco e nós, para tirarmos um pouco mais, temos que forçar mais, por isso é que somos escravos do trabalho.

Gabriel analisa que eles não são escravos à moda antiga, propriedade de seus patrões, mas são escravos do trabalho, isto é, se subordinam a jornadas e condições extensas devido ao modo que se organizou o setor: em que a subcontratação torna os trabalhadores concorrentes entre si e, por isso, precarizam cada vez mais as condições de trabalho e os valores acordados para a remuneração do serviço.

A forma de organização produtiva do setor faz com que diminuam as chances de organização dos trabalhadores para a reivindicação de melhores condições de trabalho e de remuneração. Trata-se da falência da organização sindical dos costureiros e dos donos de oficinas subcontratadas. Deixa de haver valores e salários acordados em convenções