• Nenhum resultado encontrado

Neste trabalho, buscou-se investigar a prática científica em contextos supostamente periféricos, nos quais o conhecimento científico produzi-do é diminuíproduzi-do a uma condição de inferioridade ante outros contextos. Mostramos que a prática cotidiana da ciência nesses contextos é orientada por valores e procedimentos, conscientes ou não, de periferização, ou seja, processo científico com conteúdo valorativo e pragmático próprio, cujos elementos foram acima discutidos. A periferização é eficaz na medida em que se torna prática rotineira nos espaços de produção de ciência, reforça--se por meio da trajetória dos cientistas, nas interações cotidianas e na estrutura material que sustenta a ciência em seus mais diversos contextos. Essas dimensões articuladas produzem uma ordem científica autodepre-ciada, de baixa autoestima, periférica e estável, aqui chamada de regime de administração da irrelevância.

Os elementos acima discutidos se reforçam, constroem-se como causa e consequência uns dos outros, o que garante a estabilidade do regime no tempo. Eles mostram uma adesão generalizada a agendas científicas globais nesses espaços, enraizadas por meio de diversas práticas que, por serem posteriores, são compreendidas como produtoras de conhecimento atrasado e de menor qualidade. Como consequência, tem-se estratégias de direcionamento das pesquisas para temas e objetos que atraem pouca ou nenhuma atenção da ciência “central”, sem potencial de formar agendas globais, de pouco impacto no sistema de publicação internacional.

As estratégias identificadas acima acabam por “exotizar” os objetos científicos nesses espaços, supostamente por serem incapazes de seguir protocolos “centrais” de pesquisa, pela inabilidade de reproduzi-la em nível de excelência e inovação comparáveis ao “centro”. Os regimes de administração da irrelevância, paradoxalmente, operam localizando tais espaços de prática entre o submisso e o exótico. Esta localização, assim, é um limbo editorial para cientistas, que se percebem entre a desatenção do “centro” e o desinteresse da “periferia”.

Esta dinâmica atencional, seguindo a discussão feita por Zerubavel (2015), produz fluxos assimétricos de pesquisadores que, por estarem atentos aos “centros” legitimados, tendem a preferi-los em detrimento da “periferia”. Como consequência desses fluxos, a ordem hierárquica na ciência é reproduzida sem questionamento e o regime de administração da irrelevância reforçado. Os fluxos funcionam também como meios de transporte de recursos simbólicos – objetos, teorias e métodos – que são recebidos sem a devida mediação das condições locais de produção cien-tífica e tecnológica. Essa recepção segue a dinâmica de “traduções assimé-tricas” (Medina, 2013), ou seja, com base na reprodução dos pressupostos valorativos e atencionais enraizados em regimes de administração da irre-levância, não se coloca em questão a legitimidade e a validade dos recursos simbólicos trazidos/traduzidos do “centro”, que são tomados como legíti-mos e válidos espontaneamente.

Os quatro elementos acima, experimentados cotidianamente por pes-quisadores, compõem um regime de valores e práticas que opera no sen-tido de legitimar e sustentar uma divisão geopolítica do conhecimento. Para o caso da dinâmica de periferização, emerge um regime específico que administra a irrelevância do que é feito em todas as dimensões da atividade científica nos contextos nos quais opera. Nesses contextos, a originalidade pode acarretar muitas consequências para a legitimação e o financiamento da pesquisa: a inovação pode ser punida, agendas nacionais abandonadas e objetos deslegitimados.

A dinâmica entre “local” e “global”, enraizada nos contextos de prá-tica científica, deve ser observada a partir de processos de “centralização” e “periferização” sem limites territoriais definidos, ou seja, não se deve to-má-la em função do contexto nacional, nem como estável. Quer-se dizer que os processos de “centralização” e “periferização” e a formação de regi-mes de administração da relevância/irrelevância não respondem a critérios geográficos, podendo ocorrer em um laboratório na Suécia, nos Estados Unidos ou no Brasil. O modelo da comunidade central da ciência ultra-passa fronteiras políticas e instaura-se mesmo em laboratórios renomados. O que se quis dizer é que a ideia de “centro” e “periferia” circula como expectativa, como um valor (Luhmann, 1986), que orienta as seleções na prática cotidiana dos cientistas e estrutura a dinâmica da atenção.

Mais que orientar a prática para processos de subalternização científi-ca, os regimes de administração da irrelevância são portadores de

concep-73

ções políticas a respeito do lugar que ciência e tecnologia têm e deveriam ter em tais contextos. Nesse sentido, os pressupostos hierárquicos assumi-dos em regimes de prática científica informam as decisões que se consubs-tanciarão em políticas, estratégias de investimento privado e critérios de avaliação de ciência e tecnologia.

Tais constatações deveriam valer também para o próprio “centro” dos estudos sociais da ciência e da tecnologia. Recorrentemente, o mainstream da área se atualiza com categorias, valores, teorias, práticas, que são caras aos contextos europeus e norte-americanos (Law; Lin, 2015). Há uma completa falta de atenção e interesse para o que vem ocorrendo em outros contextos de produção dos science studies, embora haja atualmente um mo-vimento, rudimentar, em sentido contrário, ainda que venha de contextos e indivíduos supostamente “periféricos”. Tal movimento poderá produzir dinâmicas colaborativas que superem, para além de linguagens, práticas e normas particulares, as hierarquias consolidadas cuja consequência é tão somente o desconhecimento de si e de outros contextos de produção de ciência.

Referências

ALATAS, Syed F. Academic dependency and the global division of labour in the social sciences. Current Sociology, v. 51, n. 6, p. 599-613, 2003.

BARNES, Barry; BLOOR, David; HENRY, John. Scientific Knowledge. A so-ciological analysis. London: Athlone, 1996.

BOUND, Kirsten. Brazil: the natural knowledge economy. London: Demos, 2008.

BURKE, Peter. As fortunas d’O Cortesão. São Paulo: Editora Unesp, 1997. BURRIS, Val. The academic caste system: prestige hierarchies in PhD exchange networks. American Sociological Review, v. 69, p. 239-264, 2004.

COLLINS, Harry; PINCH, Trevor. O Golem: o que você deveria saber sobre ciência. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

CUETO, Marcos. Excelencia científica en la periferia. Lima: Tarea Asociación Gráfica Educativa, 1989.

DAGNINO, Renato; BRANDÃO, Flávio C.; NOVAES, Henrique. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: Tecnologia social: uma

DAGNINO, Renato; THOMAS, Hernán; DAVYT, Amílcar. El pensamiento en ciencia, tecnología y sociedad en Latinoamérica: una interpretación política de su trayectoria. Redes, v. 3, n. 7, p. 13-51, 1996.

DASGUPTA, Deepanwita. Scientific practice in the contexts of peripheral science: C. V. Raman and his construction of a mechanical violin-player.

Pers-pectives on Science, v. 24, n. 4, p. 381-395, 2016.

DE GIORGI, Raffaele. Periferias da modernidade. Revista do Direito Mackenzie, v. 11, n. 2, p. 39-47, 2017.

FERREIRA, Mariana. Periferia pensada em termos de falta: uma análise do campo da genética humana e médica. Sociologias, v. 21, n. 50, p. 80-115, 2019. FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.

HERCULANO-HOUZEL, Suzana. Suzana Herculano-Houzel: “Fazemos ci-ência no Brasil e em condições miseráveis”. Entrevista a Érika Kokay. Época, 19 ago. 2015. Disponível em https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/08/ suzana-herculano-houzel-fazemos-ciencia-no-brasil-em-condicoes-miseraveis. html. Acesso em: 10 dez. 2020.

HESS, David. Ethnography and the development of Science and Technology Studies. In: ATKINSON, Paul et al. (ed.). Handbook of ethnography. London: Sage, 2001. p. 234-245.

KEIM, Wiebke. Conceptualizing circulation of knowledge in the social sciences.

In: Keim, Wiebke et al. (ed.) Global knowledge production in the social sciences.

Made in circulation. London: Routledge, 2014. p. 87-113.

KEIM, Wiebke. Social sciences internationally: the problem of marginalisation and its consequences for the discipline of sociology. African Sociological Review, v. 12, n. 2, p.22-48, 2008.

KNORR-CETINA, Karin. La fabricación del conocimiento: un ensayo sobre el carácter constructivista y contextual de la ciencia. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2005.

KUHN, Thomas. Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.

KUHN, Thomas. O caminho desde a estrutura. São Paulo: Editora Unesp, 2006. LATOUR, Bruno. Science in action. Cambridge: Harvard University Press, 1987.

75 LAW, John; LIN, Wen-Yuan. Provincialising STS: postcoloniality, symmetry and method, 2015. Disponível em: http://heterogeneities.net/publications/La-wLinProvincialisingSTS20151223.pdf. Acesso em: 10 dez. 2020.

LIVINGSTONE, David. Putting Science in its place: geographies of scientific knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.

LONGINO, Helen. The fate of knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2002.

LUHMANN, Niklas. Sistemas sociais. Petrópolis: Vozes, 2016.

LUHMANN, Niklas. The autopoiesis of social systems. In: GEYER, Felix; ZOUWEN, Johannes van der (ed.). Sociocybernetic paradoxes. London: Sage, 1986.

MARQUES, Fabrício. Financiamento em crise. Pesquisa FAPESP, n. 256, jun., p. 20-29, 2017.

MEDINA, Eden; MARQUES, Ivan da C.; HOLMES, Christina (ed.). Beyond

imported magic: essays on Science, Technology, and Society in Latin America.

Massachusetts: The MIT Press, 2014.

MEDINA, Leandro R. Objetos subordinantes: la tecnología epistémica para producir centros y periferias. Revista Mexicana de Sociología, v. 75, n. 1, p. 7-28, 2013.

MERTON, Robert K. The Matthew effect in science: the reward and commu-nication system of science. Science, v. 199, p. 55-63, 1968.

NEVES, Fabrício. A contextualização da verdade ou como a ciência torna se periférica. Civitas: Revista de Ciências Sociais, v. 14, p. 556 -574, 2014.

NEVES, Fabrício. A diferenciação centro periferia como estratégia teórica básica para observar a produção científica. Revista de Sociologia e Política, v. 17, p. 241-252, 2009.

NEVES, Fabrício; COSTA LIMA, João Vicente. As mudanças climáticas e a transformação das agendas de pesquisa. Liinc em Revista, v. 8, p. 248- 262, 2012. PICKERING, Andrew. Science as practice and culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

PINHEIRO, Joaquim. A geopolítica do conhecimento em periódicos científicos

in-ternacionais: a controvérsia entre editoras e editores sobre as questões agrária e

camponesa. 2018. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996.

SHILS, Edward. Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992.

XIE, Yu. Undemocracy: inequalities in Science. Science, v. 344, n. 6186, p. 809-810, 2014.

ZERUBAVEL, Eviatar. Hidden in plain sight: the social structure of irrelevance. New York: Oxford University Press, 2015.

Ciências “duras” e normais: objetivos