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3.3 Metodologia de Análise

4.1.1 Alguns Esclarecimentos

As estratégias criativas e expressivas procedurais tendem a ser confundidas com determinadas práticas, ideias e conceitos que, embora sejam de certa forma similares ou relacionados a elas, não são a mesma coisa. Isso pode levar a um prejuízo na compreensão plena das Poéticas Procedurais, seja por parte do público (no momento da fruição das obras), seja na pesquisa acadêmica realizada sobre estas práticas ou mesmo na própria produção artística na área. Procuramos abordar a seguir algumas das questões que consideramos mais evidentes. Veremos que as Poéticas Procedurais não se limitam (1) a manifestações específicas e (2) a determinados conceitos ou aspectos específicos, (3) não são absolutas ou definitivas, (4) não compartilham de todos os aspectos de abordagens similares, (5) não se referem a poéticas de natureza essen- cialmente estática e, finalmente, (6) não são necessariamente superiores (ou inferiores) a outras estratégias de criação.

135Grifo nosso. Documento digital sem numeração de páginas. Texto original: “By emphasizing the process

rather than the object, the computer enables formalizing of the creative act and the application of formal categories of discourse. Graduating from the hand to the brain and becoming ’intelligent’, the tool gives new meaning to the concept of artistic creation and endows the visual artist with a new attitude which leads to ’procedural art’.”

1) Não se limitam a manifestações específicas

Algumas práticas, obras ou artistas específicos tendem a ser confundidos com a noção mais ampla de Poéticas Procedurais. Este é o caso de algumas das suas manifestações mais comuns, como as Artes Permutacional e Generativa, as narrativas procedurais ou os jogos. Apesar destas manifestações compartilharem a mesma base procedural, cada uma delas apresenta uma abordagem específica, com aspectos e características próprias.136

O conceito da criação procedural às vezes também se encontra associado a uma determinada obra ou mesmo artista específico, seja por conta da sua excelência e pioneirismo, ou mesmo por outros fatores relacionados de maneira menos direta à prática artística, como a popularidade ou o sucesso comercial. O artista Joshua Davis, por exemplo, foi um dos primeiros artistas a ganhar uma visibilidade significativa explorando o Flash (aplicativo para edição de conteúdo multimídia interativo da Adobe) na produção de Arte Generativa, no final dos anos 90 - por algum tempo a estética específica do seu trabalho foi uma das principais referências entre artistas e criativos interessados em explorar estratégias criativas procedurais (fig. 16a:123).

As Poéticas Procedurais também tendem a ser associadas a determinadas ferramentas especí- ficas, como aconteceu com o próprio aplicativo Flash, e depois a linguagem Processing.137 O

mesmo acontece com métodos mais específicos de criação, como um certo uso das funções ou recursos de um determinado aplicativo, por exemplo.

2) Não se limitam a determinados conceitos ou aspectos

Existem determinados conceitos que tendem a ser associados às Poéticas Procedurais, apesar de não se tratarem de elementos fundamentais ou mesmo exclusivos a estas práticas. É o caso da emergência (a noção de que um comportamento complexo ou mesmo inesperado pode emergir a partir de um conjunto de regras simples), da inteligência artificial (e criatividade artificial) e da interatividade (fig. 16b:123, 2.3.3:80), por exemplo. Estes conceitos tem uma forte relação com a proceduralidade, mas não são indispensáveis a ela - tratam-se de ocorrências ou manifestações específicas.

3) Não são absolutas ou definitivas

A formalização de um determinado processo é um ato essencialmente arbitrário, isto é, seu produto não representa “a realidade”, mas sim uma possível interpretação dela, de acordo com determinados interesses, repertório e perspectiva - trata-se de um “conceito elaborado do real” (Plaza e Tavares, 1998) (2.1:47).

Da mesma forma, nas Poéticas Procedurais, o algoritmo não é uma representação “fiel” das ideias na mente do artista. Primeiramente, a relação entre o projeto (ou programa operacional) na mente do artista e a execução da obra propriamente dita não é rígida ou estática - o momento do embate entre o artista e a lógica do meio numérico pode influenciar ou mesmo modificar

136O conceito de Arte Generativa, por exemplo, geralmente se refere especificamente ao uso do algoritmo como

meio para gerar algo, como uma imagem ou objeto (o segundo uso descrito por Popper em 3.2:96). Além disso, esta prática tende a estar associada a processos matemáticos ou sistemas biológicos complexos, explorando as noções de emergência e aleatoriedade.

(a) Tropism (Joshua Davis, 2007) (detalhe de imagem da série)

(b) Don’t Give Up!

(Graziele Lautenschlaeger, 2008)

(c) Tendril (Ben Fry, 2000) (detalhe) (d) Protomembrana

(Marcel.lí Antúnez Roca, 2009)

(e) Técnica de desenho Pixel Art (f) Ferramenta de desenho customizada

completamente a própria poética original (3.1:91). Além do mais, não há uma analogia absoluta entre os mecanismos da mente e aqueles da máquina. Assim, qualquer correspondência que pode ser definida entre estes dois sistemas deriva de escolhas arbitrárias, e que representam uma perspectiva específica. Por exemplo, a obra Tendril (Ben Fry, 2000) na qual textos na internet são representados na forma de ramos que se bifurcam e conectam, é apenas uma interpretação e materialização das informações e fluxos da rede, entre tantas outras possíveis (fig. 16c:123).138

4) Não compartilham de todos os aspectos de abordagens similares

Existem determinadas abordagens e conceitos que tendem a ser associados às Poéticas Procedu- rais mas que, apesar de algumas similaridades, não compartilham necessariamente das mesmas características ou objetivos. É o caso do conceito da “máquina semiótica” (referente ao emprego do computador como máquina simbólica, na interpretação e produção de significado),139 dos

sistemas especialistas (ou “expert systems”, voltados para aplicações específicas, e desprovidos de intenção poética) ou do emprego da tecnologia como prótese ou auxílio ao corpo ou à mente, supostamente estendendo ou ampliando as suas capacidades (fig. 16d:123), entre outros.140

5) Não se referem a poéticas de natureza essencialmente estática

Um aspecto essencial às Poéticas Procedurais é, evidentemente, a proceduralidade - isto é, a existência de uma representação algorítmica de um determinado gesto, conceito ou comporta- mento poético, e que pode ser executado pelo computador. Assim, a digitalização ou produção de conteúdo em meio digital através de métodos estáticos de criação não se configura como uma estratégia procedural, apesar do computador em si funcionar a partir de mecanismos procedu- rais. É o caso da técnica de desenho em Pixel Art, por exemplo, na qual a imagem é construída pixel a pixel, de maneira manual (fig. 16e:123).141

Convém lembrar que nem todo emprego que se faz do aspecto procedural é necessariamente poético, e nem sempre um elemento procedural envolvido no processo criativo participa da poética predominante de uma obra. Além do mais, uma poética procedural pode se manifestar na forma de uma obra de natureza estática - por exemplo, uma música gerada a partir de algoritmos pode preservar sua natureza (ou origem) procedural mesmo quando apresentada em forma linear, em um suporte estático.

6) Não são superiores (ou inferiores) a outras estratégias de criação

Na arte, de uma maneira geral, a escolha por uma estratégia criativa específica (em detrimento das demais) não se dá a partir de critérios objetivos - pelo menos não integralmente. É uma

138Saiba mais sobre a obra Tendril no URL: www.benfry.com/tendril

139O conceito de “máquina semiótica” está associado à noção do computador como uma entidade “criadora

de informação nova” (Barbosa e Torres, 2001; Nöth, 2002). Também se relaciona às discussões em inteligência artificial sobre a existência de algum tipo de “consciência maquínica”. Como procuramos mostrar ao longo desta dissertação, da mesma forma que a instrução na memória do computador não contém em si a intenção de quem a programou, a princípio uma máquina não poderia conter ou produzir significado (pelo menos não da mesma forma que a mente humana), pois isso implicaria a existência de uma consciência.

140A criação procedural pode ser considerada como uma forma de extensão das capacidades humanas. Entre-

tanto, nos interessa o que o meio numérico tem de próprio, não seu potencial para emular e estender capacidades já existentes em meios tradicionais.

141Embora uma imagem de aparência “pixelada” (isto é, com os pixels aparentes) possa ser gerada procedural-

decisão que acontece naturalmente no processo criativo, com base em uma série de fatores, desde os mecanismos mentais do insight, passando pelas ferramentas à disposição do artista, seu repertório e experiência, e assim por diante. Isto é, não existem escolhas “melhores” ou “piores” (e tampouco “erradas”) na arte, uma vez que o processo criativo é essencialmente subjetivo, baseado na intuição - o critério de sucesso é definido pelo próprio artista.142

A noção de que podem existir estratégias “melhores” para a concretização de uma determinada proposta criativa pressupõe a existência de uma ideia original “pura”, que independe dos méto- dos, meios e ferramentas que serão empregados na sua materialização. Isso também sugere que, no caso das Poéticas Procedurais, existe uma “ideia essencial” que precede a formalização em meio digital, e que supostamente seria mais complexa, ou mesmo mais autêntica e “humana”. Entretanto, a própria “escolha” por uma estratégia procedural já faz parte do processo criativo, e como tal, também faz parte da poética.

Por exemplo, consideremos um algoritmo que descreve uma determinada ilustração. Se o artista executar manualmente as instruções contidas no código e produzir ele próprio a ilustração, o resultado deste processo não é necessariamente “mais humano” do que se o algoritmo tivesse sido executado por um computador. Da mesma forma, se o artista deixa a execução do algoritmo por conta da máquina, isso não leva necessariamente a uma “perda de humanidade”, se esta escolha faz parte da proposta criativa em si (assumindo que o artista conhece os mecanismos - e as implicações - do emprego das estratégias procedurais).

Além disso, mesmo quando a poética que se configura na mente do artista é de natureza proce- dural, o computador não é necessariamente a “melhor” maneira de realizá-la. Um músico pode idealizar uma composição generativa, mas preferir executar ele mesmo as instruções, de forma a permitir a influência da sua subjetividade ao longo do processo, por exemplo.

Esta questão remete à ideia de uma arte automática, proposta por Abraham Moles. Como vimos, o autor sugere a perspectiva de uma “arte do futuro” gerada exclusivamente por computadores, baseada em permutações ou variações sobre uma obra matriz original, levando a uma “arte de massa”.

A Arte Permutacional, jogo delicioso dos mandarins que o executam, tem uma im- portância considerável numa sociedade de consumo à qual traz a diversidade pessoal

na uniformidade de um mesmo algoritmo. Cada cliente de Woolworth disporá do

seu tampo em fórmica com um motivo único e insubstituível de embutido persona- lizado, fornecido apenas para ele, por uma máquina artista que é capaz de debitar milhões de outros ao preço de um mesmo programa. É a idéia de múltiplo. (Moles, 1990:106)143

142Há casos em que a estratégia procedural é empregada como uma maneira de simplificar o processo criativo,

ou de torná-lo mais eficiente. Por exemplo, para desenhar uma árvore, ao invés de desenhar as folhas uma por uma, é possível criar um pincel customizado com este padrão (fig. 16f:123). Neste caso, como a escolha pela estratégia de materialização sucede a intenção criativa, a poética não é de fato procedural - trata-se de um emprego exclusivamente prático (ou operacional) da proceduralidade.

Note que, na proposta de Moles, a permutação serve como base para uma espécie de “fábrica de arte”, não como estratégia poética. Embora a noção de aliar “a preciosidade do único à pregnância do jogo” (Moles:141) seja uma proposta artística válida, a intenção poética se perde quando a estratégia é adotada com objetivos puramente comerciais - no caso, a produção de mais “unidades” para atingir um maior “público consumidor”. Além do mais, na previsão de Moles, esta “arte do futuro” também substituiria todas as demais formas de expressão.144

Enfim, as Poéticas Procedurais não são necessariamente uma alternativa “melhor” ou “mais prática” a outras abordagens criativas, tampouco uma “evolução” da arte (no sentido de substi- tuir práticas anteriores) - trata-se de uma estratégia fundamentalmente diferente. Por exemplo, no caso do “pintor virtual” Aaron, mencionado anteriormente, a intenção de Harold Cohen não é de “facilitar” o trabalho do artista, mas sim de propor uma estratégia alternativa para a produção de imagens, e refletir sobre este processo.

AARON é uma entidade inteligente autônoma: não muito autônoma, ou muito in- teligente, ou muito bem informada, mas muito diferente, fundamentalmente diferente de programas projetados para serem “apenas” ferramentas. (Cohen, 1986:194)145