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Quem está fazendo os desenhos? Quem é o responsável? O programa é um artista? Que

parte disso tudo é arte?

(Cohen, 1982:4)171

As Poéticas Procedurais podem se manifestar de diversas maneiras, em diferentes momentos e intensidades, sobre diferentes aspectos e elementos do processo criativo e da obra finalizada. Em comparação com as práticas criativas tradicionais, as estratégias procedurais de criação tendem a envolver mais elementos, influências e contribuições (3.3.2:103), tornando sua análise e interpretação particularmente complexa e trabalhosa.

Com base na abordagem definida pela metodologia de análise apresentada no capítulo 3 (3.3:100), propomos a seguir algumas perspectivas de reflexão sobre as Poéticas Procedurais, de acordo com: (1) a etapa do processo criativo em que são empregadas, (2) os elementos sobre os quais atuam e (3) sua contribuição à poética predominante da obra.

1) De acordo com a etapa em que são empregadas

A abordagem procedural pode existir em três momentos do processo criativo: (1) a obra final pode ser de natureza procedural (por exemplo, uma instalação ou uma produção de Software Art);172 (2) a criação procedural pode ser um estágio intermediário no processo - o artista cria

um programa que, por sua vez, gera a obra final (por exemplo, quando Aaron é utilizado para gerar uma imagem - o artista não cria o produto final, mas sim o programa que o gera);173

(3) a estratégia procedural pode ser empregada como ferramenta auxiliar ao processo criativo, mas não diretamente na produção da obra (é o caso do CLA, o agente de auxílio à criação de coreografias visto anteriormente).174

A divisão entre estes três momentos não é rígida - a primeira situação pode ser vista como um caso particular da segunda, se for feita a distinção entre o programa em execução, de natureza procedural, e seu algoritmo, de natureza estática (nas notas de rodapé desta página mencionamos algumas perspectivas alternativas).175

171Grifo nosso. Texto original: “Who is making the drawings? Who is responsible? Is the program an artist?

What part of all this is art?”

172Neste caso, como vimos, embora a poética seja de natureza procedural, a criação em si segue um processo

estático - isto é, a digitação do código (a não ser que o algoritmo seja ele próprio gerado a partir de outro algoritmo - uma situação complexa e pouco comum, envolvendo dois níveis de metacriação).

173Neste caso, geralmente o produto final é de natureza estática, como a imagem no caso de Aaron, por exemplo

(note que o conteúdo gerado pode ser ele próprio de natureza procedural, como na situação mencionada na nota de rodapé anterior).

174Tanto Aaron quanto o CLA são tratados no início da dissertação (respectivamente, págs. 22 e 29).

175As Poéticas Procedurais também podem servir exclusivamente como inspiração para uma determinada obra.

Por exemplo, um músico pode criar uma composição tomando a estética da música serial como inspiração e referência, porém não empregar ele próprio estas estratégias. Estas práticas não tratam-se de Poéticas Procedurais, uma vez que não há o emprego de uma estratégia procedural propriamente dita no processo criativo.

2) De acordo com os elementos sobre os quais atuam

Da mesma maneira que uma obra de arte nunca é inteiramente “artística” (sempre haverão ele- mentos que não foram considerados de maneira poética ou expressiva pelo artista), nas Poéticas Procedurais nem todo elemento envolvido no processo criativo e nas obras pode ser de natureza procedural - sempre existirá um elemento estático em algum nível fundamental.

Isso se relaciona à noção da medida de intensidade de processo (ou “process intensity”), in- troduzida pelo designer de jogos e pesquisador Chris Crawford, que representa a proporção do conteúdo gerado dinamicamente (isto é, a partir de estratégias procedurais) em contraste ao conteúdo estático ou pré-definido. Há um limite máximo para esta medida, pois sempre haverá um elemento estático envolvido em algum nível fundamental.176

Por exemplo, em uma animação representando flores flutuando ao vento, o movimento delas poderia ser governado por um algoritmo, enquanto que as flores em si seriam estáticas (ou pré- definidas). Se as próprias flores fossem geradas proceduralmente, o elemento estático poderia ser cada pétala individual, e assim por diante. O artista digital Andreas Müller explora este conceito de maneira poética em Hana, um projeto ainda em desenvolvimento, que envolve justamente o processo de descrever algoritmicamente a topologia de uma flor.

A ideia é que nenhum processo na criação das flores é escondido do computador, nenhum bitmap é usado e o mínimo possível de decisões humanas são [embutidas de maneira estática] no software. (Müller, 2008)177

A declaração sugere o reconhecimento de um limite - o trecho “o mínimo possível de decisões humanas” implica que este elemento sempre estará presente. Note também que existe uma forte carga poética na motivação do artista em relação a este projeto, que serve como uma espécie de homenagem ao computador.

Hana é sobre dar algo em troca aos computadores que me ajudam no meu trabalho todos os dias. Eu queria dar a eles uma nova experiência, e o mais distante que consegui pensar de um computador foi uma flor (...) Se o computador tivesse a capacidade, ele deveria ser capaz de pensar e sentir ao máximo o processo de criação das flores.178

176Note que, a princípio, o inverso também é verdade - isto é, de certa forma o aspecto procedural sempre

existe em alguma medida. Além do mais, a distinção entre conteúdo “estático” e “procedural” é relativa. Como vimos, um algoritmo é de natureza procedural quando executado, porém é estático quando considerado como uma sequência de caracteres. Da mesma forma, um objeto de Arte Cinética, por exemplo, é “procedural” no sentido em que tem a sua composição definida por uma série de regras ou instruções, contidas na sua própria estrutura (este objeto pode ser interpretado como uma espécie de “computador”, embora evidentemente sem a complexidade e o nível de controle e abstração de uma máquina digital).

177Texto original: “The idea is that no process of creating the flowers is hidden from the computer, no bitmaps

are used and as few human decisions are hardwired into the software as possible.” Note que a citação original utiliza o termo “hardwired”, que indica uma determinada configuração ou condição que se vê definida de maneira estática em um dado sistema. Este texto faz parte de um relato do artista que acompanha o registro em vídeo da obra, disponível no seguinte URL: www.vimeo.com/5195844

178Texto original: “Hana is about giving something back to the computers that help me do my work every day.

I wanted to give them a new experience and the furthest I could think of from a computer was a flower (...) If the computer had the capability, it should be able to think and feel it’s way through as much of the creation of the flowers as possible.”

É importante considerar que, como veremos no próximo item, a intensidade de processo não é necessariamente um indicador da sua influência na poética da obra final. Um determinado artista pode empregar a proceduralidade de maneira mínima e ainda assim extrair dela uma expressividade significativa, enquanto outro pode produzir uma obra completamente dinâmica, porém sem que este aspecto tenha um grande impacto na poética predominante do trabalho.

3) De acordo com a influência na poética predominante da obra

O emprego de estratégias procedurais no processo criativo não determina por si só a sua influência na poética da obra finalizada. É necessário considerar a intenção do artista por trás de cada gesto e escolha realizadas ao longo do processo criativo.

Consideremos um trabalho como A-Volve (Christa Sommerer e Laurent Mignonneau, 1994- 1995), no qual o público interage com seres virtuais, cujo comportamento se baseia na simulação computacional de leis biológicas. Neste caso, a poética da obra reside justamente em reflexões sobre os processos biológicos, e portanto se baseia diretamente nas estratégias procedurais em- pregadas. Por outro lado, há produções artísticas nas quais a poética da obra final envolve mais elementos, e o aspecto procedural influencia apenas parcialmente.

Outro fator a se considerar é que nem sempre a influência de um determinado elemento pro- cedural no processo criativo é proporcional aos seus efeitos ou visibilidade na obra final. Por exemplo, na prática do Live Coding, como vimos, estes dois aspectos praticamente coincidem - o código é exibido juntamente com o seu resultado (1.1:31). Mas em uma área como na produção de efeitos especiais para filmes, por exemplo, geralmente a técnica não aparece no produto final. Além disso, como vimos anteriormente, há artistas que tomam a estética procedural unicamente como inspiração para produções de natureza estática - isto é, apesar da estética da obra sugerir que houve o emprego de estratégias procedurais, este elemento não está presente (veja a nota de rodapé 175:135).

Concluímos assim a apresentação das Poéticas Procedurais e das perspectivas de análise a partir das quais abordamos estas manifestações artísticas e expressivas no contexto deste estudo. No capítulo a seguir apresentamos as duas reflexões principais da pesquisa.

Tomando como ponto de partida a manifestação artística definida pelas Poéticas Procedurais (conforme apresentamos no capítulo anterior), e com base no percurso realizado até o presente momento nesta dissertação, apresentamos neste capítulo as duas reflexões principais da pesquisa:

1. Investigamos como as estratégias procedurais de criação podem servir como Um Olhar Sobre o Pensamento Artístico (5.1:145).

2. Examinamos o papel fundamental destas práticas na consolidação do Meio Digital Como Forma Expressiva independente (5.2:155).