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2.4 SISTEMA DE ERGATIVIDADE

2.4.2 Alguns estudos de ergatividade em língua portuguesa

Destacamos desde já que existe uma bibliografia muito escassa a respeito do estudo da ergatividade na língua portuguesa na perspectiva sistêmico-funcional. A maioria dos trabalhos disserta sobre a ergatividade em língua inglesa ou centra seus estudos em língua ditas propriamente ergativas, diferenciando-as das que não o são.

Em trabalho direcionado à aquisição da linguagem, Pontes (1986) destaca o caso da interpretação feita por crianças de construções com apenas um participante. Segundo a autora, quando essas construções ocorrem com o participante em posposição ao sujeito, as crianças tendem a atribuir a este participante as mesmas características do objeto direto (em termos da GT) de construções com dois participantes. Para exemplificar, a autora usa o exemplo “Vai acaba as páginas”,

transcrito da fala de uma criança, mostrando que, ao não fazer a concordância do termo “as páginas” com o verbo, a criança interpreta este termo como um objeto direto, e não como um sujeito. Ao fazer essa referência, a autora destaca que devem ser levados em consideração: a posição dos termos ocorrendo após o verbo, o não desencadeamento de concordância verbal e a propriedade agentiva dos participantes como não humanos e inanimados. Em termos sistêmico-funcionais, diríamos que ocorre a interpretação do termo como uma Meta, e não como um Ator, sinalizando que a dificuldade de identificar este termo como Ator ou Meta também ocorre na fase de aquisição da linguagem. A autora destaca, ainda que, de acordo com essa hipótese, haveria uma aproximação do padrão da língua portuguesa com o padrão próprio das línguas ergativas.

Já para Abraçado (1999), essa hipótese é mais complexa, e existem problemas em identificar o participante de construções como “Vai acabá as páginas” como sendo um objeto direto (em termos da GT). Para a autora, ocorrem casos em que essa concordância é observada, como em “Chegaram os meninos”, o que implica em considerar o termo “os meninos” como sujeito e não como objeto. Diante disso, a autora acrescenta que essa diferença deve levar em consideração as características agentivas do participante que está envolvido, a saber, se ele é humano e animado ou não humano e inanimado. Assim, se compararmos os exemplos “O João veio” e “A bicicleta caiu”, teremos que, no primeiro caso, “o João” será sempre interpretado como sujeito, independentemente da ordem dos termos (Em “Veio o João” interpretaríamos João também como sujeito; já no segundo caso, “a bicicleta” pode ser interpretada diferentemente, tendendo a ser identificada como objeto direto caso este termo esteja posposto ao verbo, como em “Caiu a bicicleta”.

Abraçado (1999) também acrescenta que esse fenômeno, embora perceptível em estudos na aquisição da fala por crianças, pode ser percebido na fala de falantes adultos nativos do português. Esse seria, portanto, o principal indicativo de que a língua portuguesa passa por um processo de mudança, o que a aproxima das línguas ergativas.

Em outra obra, Abraçado e Vale (2014) destacam que

os verbos de uma língua apresentam graus de causalidade, isto é, de acordo com os propósitos comunicativos dos falantes, prestam-se a revelar as causas de um processo, ou deixarem-nas implícitas. Nesta linha, em que a ergatividade se define dentro de uma teoria concernente às causas, o

ergativo não implica ausência de uma causa, mas sim uma maneira mais implícita de apresentá-la. (ABRAÇADO; VALE, 2014, p.127)

Isso significa afirmar que a ergatividade não é responsável pelo apagamento do agente que causa um evento, mas sim o seu enfraquecimento ou sua omissão. É válido ressaltar que não existem eventos que ocorrem sem uma causa, mas sim com uma causa implícita.

Ainda sobre a diferença entre as ordens SV(O) (sujeito-verbo-(objeto)) e VS (verbo-sujeito), Pezatti (1993) afirma que essas duas ordens representam padrões de construção sintática nomeados respectivamente como nominativo e ergativo. Assim, orações na ordem SV(O) representariam um padrão nominativo, enquanto a ordem VS caracterizaria um padrão ergativo. Por possuir essa dupla possibilidade, a autora identifica o português como sendo uma língua de ergatividade cindida.

Assim, a ergatividade cindida consiste em representar o fato de que uma mesma língua pode operar ora sobre uma base ergativo-absolutiva e ora sobre uma base nominativo-acusativa. Segundo a autora, existem dois fatores aplicados ao português que determinam essa ergatividade cindida: a natureza semântica do participante e a do verbo. Diante disso, existiria uma ordem hierárquica de características para que o falante de uma língua interprete o participante como agente responsável pela ação ou não. Sendo assim, em primeiro lugar teríamos o falante, como sendo o agente por excelência, em segundo lugar, o destinatário, após, seres animados não humanos e, por último, seres inanimados. Em termos sistêmico-funcionais, a Figura 13 representa a ordem hierárquica proposta por Pezzatti (1993)

Fonte: (adaptado de PEZZATI, 1993)

Destacamos, neste momento, que a noção de que atribuir a um participante a noção de que ele é o agente responsável parece extremamente conectada à identificação de seus traços característicos como, pelo menos, humano e animado.

Ainda, para ilustrar o padrão de ergatividade cindida do português, Pezzati (1993) apresenta a comparação entre dois exemplos:

João abriu a porta.

(PEZZATI,1993)

A porta abriu. Ø

(PEZZATI, 1993)

No primeiro exemplo, temos “João” como agente-sujeito15

em padrão nominativo e “a porta” como absolutivo. Já no segundo, percebemos a manutenção do padrão absolutivo de “a porta”, mas assumindo a posição de sujeito (em termos da GT). Isso define que o primeiro exemplo é uma construção nominativa, enquanto o segundo representa uma construção ergativa. A autora justifica, ainda, que essas

15 Notemos que “sujeito” é um conceito da metafunção interpessoal. Ao se referir ao sujeito gramatical

duas construções diferem quanto ao papel semântico exercido pelo sujeito gramatical básico: a primeira construção tem como sujeito gramatical “João” (o agente), enquanto a segunda tem “a porta” (o paciente). Em sua visão, isso demonstra que, em construções ergativas, o participante paciente (absolutivo) assume toda a importância, omitindo o participante agente. Para Pezzati (1993), esse tipo de construção é frequente quando a explicitação do agente não é relevante para o propósito discursivo.

Para Bittencourt (2001), causatividade e ergatividade estão intimamente relacionadas, não se podendo separar uma da outra. Assim, a autora estabelece a separação entre o causador e o causado. Nessa perspectiva, o evento causado é dependente da ação do evento causador, em que a causatividade está pautada por participantes com os traços humano, animado e voluntário.

Cançado (2005) destaca que é necessário distinguir as propriedades semânticas que são relevantes na interface entre semântica e sintaxe. A partir de um trabalho empírico, a autora determinou como características relevantes: ser desencadeador de um processo, ser afetado por esse processo, estar em algum estado, e ter o controle sobre esse desencadeamento, processo ou estado.

Observamos, então, que em exemplos como “João quebrou o vaso”, João é desencadeador do processo porque tem o controle sobre o processo, sendo possível a criação de exemplos como “João decidiu não mais quebrar o vaso”. Entretanto, na configuração de exemplos como “João quebrou a perna”, o participante João não mais possui o controle sobre o processo, já que não seria coerente a construção “João decidiu não mais quebrar a perna”.

Ciríaco (2007) destaca que a formação de um par causativo-ergativo só ocorre quando o verbo é causativo. Segundo a autora, um dos participantes deve assumir, necessariamente, o papel semântico de desencadeador do processo e o outro, de afetado pelo processo. Caso um desses dois papéis não ocorra, também não ocorre a formação do par ergativo. Para ilustrar tal possibilidade, Ciríaco (2007) apresenta exemplos como “João recebeu uma carta” e “João subiu a montanha”. No primeiro, não temos a formação do par causativo-ergativo (*Uma carta recebeu) porque “João” não é o desencadeador do processo; no segundo, não ocorre a formação do par (*A montanha subiu) em virtude de a montanha não ser afetada pelo processo.

Souza (1999) demonstra preocupação com a classificação de um participante como humano ou não humano. Segundo o autor, as orações que possuírem construções com um participante humano afetado são diferentes daquelas com um participante não humano afetado. Afinal, seres humanos são agentes causadores típicos, o que revelaria uma maior ambiguidade nas construções com um único participante presente na oração, como seria o caso de “Eu preocupei minha mãe / Minha mãe preocupou”. Fica ambíguo, na segunda oração, se o participante “minha mãe” foi afetado por uma preocupação ou se é objeto de uma preocupação desencadeada por um agente externo.

Percebemos, então, que em diferentes autores que investigam a ergatividade em língua portuguesa, já existem definições de critérios puramente semânticos na inter-relação com processos sintáticos de construção.

Após o levantamento dos estudos sobre a ergatividade conforme a perspectiva sistêmico-funcional e sobre a ergatividade em funcionamento na língua portuguesa, passaremos ao próximo capítulo, no qual detalhamos os procedimentos passo a passo para a realização desta pesquisa.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Neste capítulo, apresentamos a metodologia utilizada para a realização da pesquisa. Inicialmente, mostramos uma contextualização geral da pesquisa. Após, a definição dos corpora utilizados, bem como os critérios para as escolhas de ambos. Por fim, temos o detalhamento dos passos dados para a realização da pesquisa.