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O modo de pensar, de sentir, de agir foi se constituindo ao longo da existência do ser humano, ao ponto de cada um ser chamado hoje de sujeito. Esse processo, denominado de subjetivação, erigiu-se também graças à interação com os animais, numa construção que se arrasta desde a Pré-história.

Para a maioria das pessoas, o conceito de animal que ocupa suas mentes é de um ser mecânico constituído por células, quase autômato – diferenciando de um autômato por não ter raciocínio e sua vontade limitar-se a saciar suas necessidades básicas, como fome, sede; isso na melhor das hipóteses, pois tudo isso deve ser instintivo como o sexo. Então, como aplicar esse conceito aos cães de companhia – alguns até “pedem colo”, de tanto que gostam do contato com o ser humano.

Vejamos os conceitos relativos ao vocábulo “animal” enumerados em Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986, p. 124). Pode-se dizer, de certa forma, que tais conceitos correspondem às representações sociais presentes acerca da figura do animal:

Animal. [Do lat. Animale.] S. m. 1. Ser vivo organizado, dotado de

sensibilidade e movimento (em oposição às plantas). 2. Qualquer animal que não o homem; animal irracional. 3. Pessoa muito ignorante, estúpida; animalejo, alimária. 4. Pessoa desumana, bárbara, cruel. 5. V. cavalo (2). 6. A natureza animal, em oposição à mente ou espírito. 7. Bras. Cavalo (1). 8.

Zool. Ser organizado, com a forma do corpo relativamente constante, órgãos

na maioria internos, tecidos banhados em solução que contém cloreto de sódio, células revestidas de membranas, com crescimento, e provido de irritabilidade ou sistema nervoso, que lhe permite responder prontamente aos estímulos. 9. Bras., PE. Égua (1). 10. Bras., S. Animal cavalar, principalmente o macho. [Aum.: animalaço e animalão; dim.: animalzinho,

animalejo, animálculo.]. Adj. 11. Relativo ou pertencente aos animais: reino animal. 12. Proveniente de animal: gordura animal. 13. Próprio de animal;

animalesco. 14. Material, por oposição à mental ou espiritual. 15. Sensual, lascivo, lúbrico. ~ V. carvão -, espíritos –ais, magnetismo -, psicologia – e

reino - . Animal inferior. Zool. Qualquer animal invertebrado. Animal

irracional. Qualquer dos animais superiores, à exceção do homem; qualquer

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alimária.] Animal racional. O homem. Animal sem fogo. Bras. CE Animal

ainda não marcado. Animal sem rabo. Bras. Pessoa muito grosseira, estúpida. Animal superior. Zool. Qualquer animal do filo dos vertebrados.

Façamos uma breve análise dos conceitos sobre o vocábulo “animal”. Quanto ao primeiro conceito, a palavra “sensibilidade” deve estar sendo empregada na acepção 3 (1986, p. 1570): “(...) Propriedade do organismo vivo de perceber as modificações do meio externo ou interno e de reagir a elas de maneira adequada; excitabilidade: sensibilidade ao calor; sensibilidade de pele; sensibilidade estomacal. (...)”. Portanto, parece estar de acordo com a idéia de um animal ser apenas um ser “quase autômato”.

Na acepção 3, temos uma comparação de um ser humano ignorante, estúpido a um animal. Aqui encontramos uma generalização, pela qual todos representantes do reino animal têm incluída em sua natureza a ignorância e a estupidez. Como a “força de expressão” humana pode ser grotesca... Os cães utilizados para resgate de seres humanos em perigo de vida, por exemplo, não podem notar tal atitude insensata. Ainda bem. Os critérios para tal analogia e decorrente apropriação do vocábulo “animal” para designar tal ordem de pessoas parece se fundar também na onipotência do humano sobre todos os seres vivos.

A título de curiosidade, tomando agora um conceito antônimo ao de estupidez, grosseria, o conceito de “etiqueta”, é interessante notar que além de todos os dados que atestem a superioridade do homem sobre todos os elementos do reino animal, o homem desenvolveu a “(...) ritualização laicizada de todas as relações corteses, resultando no império da etiqueta (...)” (MENDONÇA DE FIGUEIREDO, 1992, p. 94). Norbert Elias conceitua a etiqueta como

(...) um sistema de auto-apresentação da corte, um dispositivo representacional mediante o qual se construíram as identidades através de trocas altamente codificadas de gestos, falas e olhares, modos de se

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apresentar e interagir (...). (em MENDONÇA DE FIGUEIREDO, 1992, p. 94).

O mesmo se aplica ao conceito 4: “(...) Pessoa desumana, bárbara, cruel (...)” (FERREIRA, 1986, p. 124). A propósito, Hobbes expõe sem eufemismos a selvageria natural do homem, seu egoísmo, sua destrutividade, a vontade, o poder e toda sorte de seus excessos. Para esse autor, para a manutenção da sobrevivência da espécie humana, estabeleceu-se um contrato básico segundo o qual cada ser humano renuncia a determinados impulsos e poderes e transfere determinados direitos aos representantes dos interesses de todos, ou seja, um soberano (em MENDONÇA DE FIGUEIREDO, 1992, p. 98). Pode-se pensar que foi a partir dessa tendência a organizar a sociedade de modo a controlar os instintos, por intermédio de uma figura poderosa, soberana, que o homem “coroou” o leão como o rei dos animais – uma projeção de sua forma de organização para o reino animal.

Ao nos determos diante do conceito 6, estamos diante de uma caracterização enobrecedora do humano, colocando de fato os animais numa posição inferior: “(...) A natureza animal, em oposição à mente ou espírito (...)” (FERREIRA, 1986, p. 124). Será que de fato os animais superiores não são providos de uma organização mental? E a posse de espírito exclusivamente pelos seres humanos já os arrebata na escala da Criação. O conceito 14 “(...) material, por oposição a mental ou espiritual. (...) (FERREIRA, 1986, p. 124)” encerra o mesmo raciocínio, apenas acrescentando que o organismo de fato se restringe ao que é de ordem material, não sendo animado por um espírito ou alma, conforme o pensamento religioso construído pelas civilizações cristãs.

O pregador religioso e reformador político Savonarola (MENDONÇA DE FIGUEIREDO, 1992, p. 25) ao comparar o homem com os outros animais coloca que:

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De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais insaciável que todos os animais, não lhe sendo suficientes todos os alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não procura satisfazer a sua natureza, mas o seu desejo desenfreado (...) Do mesmo modo supera todos os animais na bestialidade da luxúria, pois, ao contrário dos animais não observa os tempos nem os modos devidos (...). Também os supera na crueldade (...)

Ao comparar-se com os animais, o homem toma o reino animal como um ponto de referência; este como sendo uma advertência para no que pode se tornar, caso não consiga dominar seu desejo. Ao volver os olhos para os quadrúpedes, seres alados, anfíbios, seres aquáticos, répteis, enxerga-os como um recurso mnemônico para afirmar sua honrosa superioridade. Ainda na passagem abaixo, podemos notar a validade dessa assertiva:

(...) Se o assunto da meditação for coisa invisível, como são nesta os pecados, a composição do lugar consistirá em ver com os olhos da imaginação, e em considerar a minha alma encarcerada neste corpo corruptível, e a mim mesmo, isto é, meu corpo e minha alma, neste vale (de lágrimas) como desterrado entre brutos animais. (INÁCIO DE LOYOLA, em MENDONÇA DE FIGUEIREDO, 1992, p. 62)

A acepção 8 é própria da Psicologia Animal, cuja base está no Comportamentalismo: “(...) e provido de irritabilidade ou sistema nervoso, que lhe permite responder prontamente aos estímulos. (...)” (FERREIRA, 1986, p. 124). Destarte, um animal teria sua existência mediada apenas por respostas a estímulos... E quando um cãozinho que – ao se sentir sem atenção do dono, que se ocupa com seus afazeres – leva sua bolinha de borracha até aquele, como um convite para brincar?

Mas é claro que essas conjecturas precisam ser mediadas pelo pensamento científico. Conforme Bezerra Júnior (1982, p. 28),

(...) entre as coisas que nos são ‘ensinadas’ com mais insistência encontra-se a idéia da cientificidade ou do conhecimento científico como instrumento

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indispensável ao nosso relacionamento com o mundo e com os outros homens, vale dizer, com a nossa própria vida.

E isso se aplica também, é claro, ao olhar lançado sobre às espécies animais. Por muito tempo um animal tem sido considerado apenas um animal segundo as acepções vistas anteriormente. No entanto, a cientificidade que permeia o convívio do homem com animais tem se guiado pela Psicologia Animal, que, como foi dito anteriormente, se fundamenta na Psicologia Comportamental. Fugindo desse esquema de encarar o convívio do homem com os animais, Boris M. Levinson (1969), acreditando numa real interação homem- animal, a partir da década de 60 começa a publicar seus trabalhos; dentre eles, vários artigos pelas revistas Mental Higiene, Psychyological Reports, etc; na década de 70 os livros Pet-

owned child psychotherapy, Pets and humaan development, Pet-oriented child

psychotherapy. Um de seus editores, Charles C. Thomas, observa que Levinson foi o primeiro psicólogo clínico a utilizar animais de companhia como co-terapeutas.

Podemos entender a origem desse olhar sobre o animal, ao mesmo tempo temeroso e de desprezo, voltando um pouco à época da Renascença. Mendonça de Figueiredo afirma que naquele período havia a presença do medo às fronteiras e aos seres fronteiriços (1992, p. 38), de modo que tais intensas reações emocionais “(...) decorrem da exposição à variedade das coisas, quando esta tende a escapar ao controle, gerando misturas e combinações extremamente ameaçadoras à estabilidade e à ordem do mundo” (MENDONÇA DE FIGUEIREDO, 1992, p. 38).

Dessa forma, a relação homem-animal foi marcada pelo olhar temeroso em direção ao animal doméstico tão-somente enquanto um organismo vivo dependente, subordinado, subserviente ao homem, justamente para assegurar o status quo dos seres

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componentes da nossa biosfera. Atualmente, o homem inseriu o animal em atividades antes somente dignas de serem executadas por humanos como os únicos capazes. Então, o animal passa a fazer parte de equipes terapêuticas, como co-terapeuta, como por exemplo nas terapias mediadas por animais17.

E a propósito da ciência, Freud (1997, v. 8) grifa que o intenso avanço das atividades intelectuais se originou do desenvolvimento da onipotência de pensamentos. Ele sublinha que o amor-próprio – bem como o pensamento onipotente – dos homens sofreu até o momento três severos golpes por parte das pesquisas científicas. Primeiramente, a queda da teoria geocêntrica, provocada por Copérnico, tirando o homem do centro do universo, uma verdadeira destruição da ilusão narcisista; um golpe cosmológico – nas palavras de Freud. Em seguida, sua arrogância e presunção que revestiam sua crença de ser dominante sobre todas as outras criaturas do reino animal também vai por terra, com Darwin. Vale sublinhar que essa arrogância não se acha presente nas crianças, como não se encontrava entre os povos primitivos, que até atribuíam sua ascendência a um ancestral animal (totemismo). E por fim – ou melhor, por enquanto – o terceiro golpe dado pela filosofia, e posteriormente abordado pela própria Psicanálise, sobre a importância psíquica da sexualidade e a inconsciência da vida mental, demonstrando-as em questões que tocam pessoalmente cada indivíduo e o forçam a assumir alguma atitude em relação a esses problemas. Assim, passamos a considerar que nossos instintos sexuais não podem ser inteiramente domados, e que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas, não muito dignas de confiança.

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Como veremos no capítulo “4. ALGUNS LUGARES DOS ANIMAIS – DOS CERCADOS AOS

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