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A discussão em torno dos PAEs abrange uma importante contribuição na identificação de estratégias de parceria entre os diversos atores do desenvolvimento de sistemas alimentares diferenciados. O grande desafio é transformar a política púbica em porta de entrada ou em uma ancoragem inicial para um desenvolvimento diferenciado. O principal problema da execução do PNAE em Santiago, a “falta de produtos”, fornece pistas de uma questão importante, o apoio à produção.

De acordo com Morgan e Morley (2002), o processo Europeu de relocalização da alimentação e da inserção dos contratos públicos80 como mercados estabelecidos para os agricultores da região trouxe algumas aprendizagens importantes: mais comida fresca e orgânica; a possibilidade de consumir produtos sazonais e com especificidades regionais; a abertura de uma demanda para produtos domésticos e não visados pelo comércio tradicional; a inclusão de agricultores marginais aos mercados convencionais. No entanto, essas estruturas de compras mais criativas, apesar da potencialidade de envolverem e viabilizarem pequenos empreendimentos, exigem novos conjuntos de habilidades (MORGAN, 2006). Tais habilidades, de acordo com Morgan (2006), afetam todos os atores do processo, desde professores, estudantes, manipuladoras de alimentos, pais, atores públicos envolvidos até os agricultores. Os mercados institucionais determinam uma série de habilidades que os agricultores familiares não dominam na íntegra, as quais estão relacionadas à produção, ao gerenciamento, à distribuição, ao processamento, à embalagem e à escala (MORGAN e MORLEY, 2002; MORGAN, 2006;).

Bastia (2007) aponta a necessidade de se trabalhar com todos os agentes envolvidos no fornecimento da alimentação escolar para que as ações realmente sejam de baixo para cima e não o contrário. Assim, articulações em nível local se fazem necessárias para que o mercado funcione de forma organizada e a alimentação escolar alcance o potencial que representa, em termos de inclusão dos agricultores de pequena escala. Os autores Sumberg e Sabates- Wheeler (2011) também comentam que as intervenções de proteção social envolvendo os alimentos podem ser usadas para promover a mudança transformacional em sistemas de agricultura familiar, todavia, são necessários alguns arranjos para que os agricultores

80 A experiência dos contratos públicos Europeus, discutidas por Morgan e Morley (2002), tem como referência

familiares consigam atender esse mercado. Os autores afirmam que os agricultores precisam desenvolver algumas habilidades para acessar os mercados, pois as estratégias e estruturas de localização da agricultura não são fomentadas em larga escala pelas políticas agrícolas, ao contrário, há uma estrutura que não favorece esse tipo de iniciativa. Dessa forma, esperar que os agricultores, por si só, organizem-se para acessar esses mercados seria apostar no enfraquecimento do potencial de desenvolvimento que os mercados institucionais possuem.

Autores que estudam o PRONAF81 apontam que a distribuição dos recursos dessa política pública está concentrada nos agricultores familiares mais capitalizados em algumas culturas e mais concentrados na AF da região sul. Assim, os agricultores mais empobrecidos estão ficando às margens da política. Essa questão, embora analise outra política pública, pode ser um indicativo da necessidade da criação de estratégias para que as políticas públicas sejam direcionadas aos agricultores familiares, os quais se encontram com dificuldades de acesso aos mercados e às próprias políticas.

Analisando os estudos de autores que explicam amplamente os PAEs e a realidade do PNAE e da agricultura familiar no Brasil, já discutido no segundo capítulo desta tese, pode-se inferir que há a necessidade de ações que objetivem o desenvolvimento dos mercados, a partir, principalmente, da mobilização das habilidades dos agricultores. Papel que poderá ser desempenhado por ações de extensão rural. Portanto, a extensão rural tem papel relevante na mobilização desses agricultores e na facilitação do desenvolvimento de estratégias para que esses consigam acessar o mercado proposto pelo PNAE. Caso contrário, o percentual mínimo de 30% dos alimentos para a alimentação escolar, provenientes da agricultura familiar, será atendido por aqueles agentes mais fortes da cadeia, como por exemplo, pelas grandes cooperativas com número significativo de agricultores familiares associados. Como já apontado neste estudo, as grandes cooperativas fazem pressão para acessar as chamadas públicas do município de Santiago, o que não deve ser diferente em outros locais.

Aos moldes do difusionismo, a extensão rural tinha por objetivo a transferência de tecnologia para a mudança do padrão de produção dos agricultores, do tradicional para o moderno, impactando dessa forma, a produção e a produtividade. Assim, a ação da extensão difusionista relaciona-se aos aspectos técnicos da produção vegetal ou animal e muito mais como assistência técnica do que como extensão. De acordo com Peixoto (2008), extensão é diferente, conceitualmente, de assistência técnica, pois a extensão compreende um processo educativo de comunicação de conhecimentos de quaisquer naturezas, já a assistência técnica,

não tem, necessariamente, um caráter educativo, pois visa à resolução de problemas específicos, pontuais, sem capacitar os agricultores.

Erroneamente, esperava-se que a ação da Extensão Rural com os agricultores que acessam o PNAE em Santiago fosse mais difusionista e mais voltada às orientações técnicas e tecnológicas. Essa hipótese, apesar de não formulada no projeto de pesquisa, pois não era objetivo deste, esteve sempre presente até o momento da realização das entrevistas com os agricultores. Uma hipótese formulada por um direcionamento da pesquisadora, que desenvolveu uma dissertação de mestrado82, criticando o difusionismo e propondo uma extensão rural construtivista. No entanto, o que se observa é uma extensão que tem negligenciado completamente as questões técnicas e tecnológicas.

Os agricultores de Santiago manifestaram que sentem necessidade de orientação para o manejo dos agroecossistemas, uma vez que gostariam de produzir “sem veneno”. O PNAE tem como diretriz a alimentação saudável, de preferência, agroecológica. Essas questões apontam para a urgência de uma extensão rural diferenciada. Baseados em Gliessmann (2000) e em Balem (2004), pode-se inferir que os sistemas de produção do PNAE precisam de uma ação de extensão capaz de construir conhecimentos adaptados à realidade. Como Balem (2004) afirma, essa construção de conhecimentos não acontece a revelia dos saberes herdados e construídos pelos agricultores, mas também não parte do princípio de que esses conhecimentos são suficientes para o manejo dos agroecossistemas. Agroecologia não é retorno ao passado, mas, sim, construção de uma forma de interação entre produção agrícola, modos de vida, cultura e interações sociais. Nesse sentido, a aproximação entre os conhecimentos dos agricultores com os conhecimentos modernos sobre manejo sustentável de agroecossistemas se faz necessária (GLIESSMANN, 2000).

Em Santiago, existem duas equipes técnicas relacionadas a ATER, uma vinculada à Secretaria Municipal de Agricultura e Pecuária e outra à Emater-RS. A equipe da Secretaria de Agricultura e Pecuária é formada por um Engenheiro Agrônomo, um Técnico Agrícola e uma Veterinária. Como a secretaria gerencia todas as obras no rural, desde estradas a projetos de abastecimento de água, o Agrônomo foi destinado para gerenciar tais obras. O Técnico Agrícola também ocupa a maior parte do seu tempo com as obras e, esporadicamente, realiza atendimentos pontuais de Assistência Técnica. A Veterinária foi contratada exclusivamente para trabalhar com o sistema de inspeção municipal.

A equipe de ATER da Emater em Santiago é constituída por dois extensionistas

técnicos de nível superior (Agrônomos), uma extensionista de bem-estar social, um extensionista técnico de nível médio (Técnico Agrícola) e um assistente administrativo. Historicamente, a ATER tem sido designada à equipe do Escritório Municipal da Emater-RS.

O trabalho da extensão em Santiago, orientado pelo PNAE, tem sido exclusivamente na organização dos agricultores, no trabalho burocrático e administrativo da Coopersaf, na captação de recursos de outras políticas públicas e na atuação na construção do espaço público e projeto político de alimentação, assim como na concertação social entre os diversos atores envolvidos no processo de personificação da política. Essa questão, além de mostrar que eu estava propensa a forçar a interpretação da realidade a partir de percepções pré- concebidas e generalistas, também me mostrou que é necessária muita cautela nas interpretações de realidades que não conhecemos com profundidade, como era o caso.

Embora não defenda uma orientação da ATER apenas para os aspectos produtivos, em que os técnicos estão com o olhar voltado para os cultivos ou criações e tendem a perceber somente aqueles problemas técnicos que de uma forma ou outra possam comprometer a produtividade, esse tipo de intervenção sempre será no sentido de evitar que isso aconteça e as respostas para esses problemas normalmente têm sido os pacotes tecnológicos, intensivos em agroquímicos desenvolvidos para cada cultura. Através dos processos de investigação e compreensão da realidade, percebi que em Santiago, a falta de orientações técnicas é o principal fator que leva à “falta de produtos” e ao não cumprimento do cronograma de entrega dos produtos demandados nas chamadas públicas. Assim, como o PAE poderá atuar como ancoragem para o desenvolvimento de sistemas agroalimentares alternativos se faltam conhecimentos de produção e de manejo de agroecossistemas para os agricultores?

A afirmação de Sumberg e Sabates-Wheeler (2011), de que os agricultores precisam desenvolver novas habilidades, pois as estratégias e estruturas de relocalização da agricultura exigem conhecimentos que esses não dominam ou perderam com o processo de modernização, é coerente para a realidade de Santiago. O grande desafio é problematizar o papel da Extensão Rural sem cair no discurso difusionista que, para mim, não é referência, uma vez que toda a perspectiva de sucesso estaria nas mãos da Extensão, como se essa fosse a solução mágica dos problemas. A ideia base defendida aqui é que a ATER é necessária e que é possível uma intervenção em um processo de mediação transformadora, tendo como ideal uma ação extensionista construtivista, segundo aponta Balem (2004). A ATER construtivista parte de uma aliança entre os conhecimentos dos agricultores, os conhecimentos técnicos modernos de Agroecologia e manejo de agroecossistemas, aliados a interpretações da realidade social e ecológica local. Essa aliança possibilita a construção de um conhecimento

apropriado pelos agricultores e em consonância com as características da realidade.

É importante considerar que o desenvolvimento de sistemas agroalimentares alternativos dialoga diretamente com os preceitos de sustentabilidade, sendo necessário, outro agir dos agricultores no meio ambiente. Os agricultores entrevistados foram enfáticos com relação à intenção de desenvolverem sistemas de produção agroecológicos ou “sem venenos”, como eles se referem, no entanto, argumentam que estão com dificuldades de conduzir os sistemas convencionais, que são os que eles mais conhecem. Para eles, a produção agroecológica é mais complexa e mais difícil, o que exige conhecimentos que eles não dominam. Essa última questão vai ao encontro do Gliessmann explica (2000), a complexidade do manejo e da interpretação dos sistemas de produção agroecológicos exigem dos agricultores um olhar também complexo e, principalmente, de interação e observação da natureza, já que esses sistemas de produção são desenvolvidos de forma análoga aos ecossistemas naturais.

Um agricultor argumentou que eles sabem produzir sem veneno em pequenas quantidades e nas hortas para o consumo, pois, nesse contexto, se uma praga ataca e eles perdem a produção, não há prejuízos econômicos, porém produzir em escala maior é diferente, argumenta o agricultor, “não dá para perder um canteiro inteiro de beterraba, como

já aconteceu, as sementes são caras e tínhamos o compromisso de entregar aquele produto”.

As inúmeras perdas produtivas que os agricultores tiveram fazem com que esses fiquem temerários em investirem em determinadas culturas. Como são agricultores com pouca capacidade de investimento, acabam optando por produzir aquelas culturas que eles têm mais domínio. As assertivas abaixo demonstram a dificuldade enfrentada e manifestada por todas as famílias entrevistadas em produzir cenoura, um dos produtos com a maior problemática na entrega.

Tinha que ter uma assistência técnica para os agricultores. Um agrônomo para vim na tua propriedade para gente saber o que plantar e como plantar. Aí a gente fica jogando para ver o que dá e têm coisas que não dá. Na nossa terra não dá cenoura, já tentei de todas as formas e ela dá uma forquilha e não fica vermelha, fica amarela. E a gente tá questionando faz tempo.

O que a gente precisaria era um auxílio da Emater. Precisa de uma orientação: “faz assim ou assim”. A cenoura a gente não consegue produzir. A gente não tem orientação. Quanto tem dúvida a gente fica tentando, perdendo mudas, perdendo produção e vai tentando. Não têm orientação. Nunca fiz curso de formação. A gente tá sempre falando que precisamos de orientação, mas eles tão alegando que estão em poucos na Emater, mas que vão tentar. Eu planto a céu aberto e planto até que eu consigo plantar no verão, aí depois eu desisto. Não uso sombrite, não sei como usar. Tenho que melhorar isso para aumentar a produção. Agora, com a feira, a gente falou que precisava de orientação, eles falaram que vão ver o que podem

fazer.

Por outro lado, essas assertivas também enfatizam a ausência de orientações técnicas e tecnológicas relacionadas à produção. Percebe-se que os agricultores não querem uma receita, mas, sim, mudar a compreensão de como produzir esses produtos. Uma das agricultoras entrevistadas afirmou que não dava para produzir alimentos para as crianças da mesma forma que eles produzem fumo e feijão. Esse relato demonstra o amadurecimento dos agricultores e a compreensão de que os pacotes tecnológicos são insuficientes para garantir a produção de acordo com o que eles preconizam, ou seja, uma produção “sem veneno”. O que novamente reitera a importância de um serviço de ATER, no qual Agroecologia e a construção do conhecimento sejam os horizontes de ação.

O que foi constatado na realidade de Santiago é que a ação da ATER tem sido a soma de ações isoladas e fragmentadas, muito mais orientada para demandas pontuais do que para um processo de desenvolvimento. Não há uma atuação da equipe de ATER, ao contrário, cada extensionista tem ações isoladas, enquadradas em uma determinada área, que não se comunicam entre si. Assim, o técnico que é responsável pelo PNAE não é o responsável pela assistência técnica de frutas e hortaliças, por exemplo. E o responsável pela área de frutas e hortaliças, não tem um trabalho com os agricultores da Coopersaf porque esses são assistidos por outro técnico. Dessa forma, o projeto da alimentação escolar não é um projeto da instituição de ATER, mas do técnico envolvido com o PNAE. Foi comum, durante a pesquisa, ouvir dos outros extensionistas: “Você está pesquisando sobre o PNAE? Então tens que falar

com o Fulano, pois quem trabalha com o PNAE e com a Coopersaf é ele”. Pareceu que o

envolvimento do EM da Emater-RS com o PNAE em Santiago se deve muito mais pela ação e vontade individual do extensionista envolvido do que por um comprometimento institucional com o projeto local.

Nota-se que esse posicionamento institucional da ATER talvez esteja relacionado a sua dificuldade de realizar uma extensão rural adequada a políticas públicas como o PNAE e de perceber o potencial das políticas públicas para o desenvolvimento. É necessário considerar que a formação dos extensionistas não considera a AF, a agroecologia, os mercados de circuitos curtos, o manejo de agroecossistemas, a construção de mercados como conteúdos válidos, conforme apontam Froehlich (2010) e Balem e Silveira (2015). Para Froehlich (2010), a noção de agricultura sustentável, amparada pelas mudanças de discussões sobre desenvolvimento na contemporaneidade, aponta para a necessidade da mudança do perfil profissional dos técnicos. O autor salienta que a formação científico-tecnológica para a